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Em termos de natureza do saber, o nosso A SÉRGIO (1971: 115) dá-nos uma visão do Iluminismo francês que é coerente com

a forma político-administrativa que acabou por ser estruturante

do sistema de ensino:

"Notemos, porém, que, assim como Voltaire assimilava os resultados de Locke e Newton sem haver atingido o espírito, os

métodos, a força impulsiva, a tendência investigadora donde eles

saíram, assim Montesquieu descreve a constituição da Inglaterra por aquilo que aprendera no livro de Locke sobre o

Governo Civil, sem ter visto a sua causa, a verdadeira realidade,

o nó da questão: a administração independente das pequenas circunscrições, o governo local, a iniciativa política do cidadão consciente, a descentralização, em suma. Eis o erro inicial e básico, donde vem a absurda engrenagem política em que a França se debate há mais de cem anos, e com a França

Portugal, a vítima por excelência do "morbo gaulês": o querer realizar o círculo quadrado, quer dizer, o parlamentarismo centralista, a centralização parlamentarista, - esse monstro de contradições que o jacobinismo deu ao mundo".

É esta realidade que, por um lado justifica e, por outro lado, perpetua o "acto de circular, enquanto se conversa". De facto, como é próprio deste momento da peripécia, o que faz o tema da conversa à volta do qual se circula é a impossibilidade de passar da teoria à prática, precisamente porque a teoria, que se estruturou sobre interesses e relações particulares, os representou como devendo ser universais sem mediação da vida social.

Compreende-se, assim, que a sujeição à obrigatoriedade escolar não possa contar com n e n h u m tipo de adesão espontânea, pelo contrário, ela supõe um trabalho social e político de conquista e transformação dum espaço privado num espaço público, cuja arma principal consiste, precisamente, na invocação dos resultados da ciência sobre a natureza e sobre a sociedade. E nisto convergem tanto os discursos e as iniciativas dos reformadores políticos, preocupados com as crises sociais, como as "lições das coisas", inscritas nas exigências das transformações dos processos produtivos e das técnicas de produção (POPKEWITZ, 1994:25-57).

Todavia, a escola, enquanto projecto social global, que visa transformar-se em programa de reinstitucionalização de crenças, atitudes e práticas, tanto individuais como colectivas, constitui uma forma de construção social, cujo sentido não pode ser definido sem referência a um modelo global de sociedade. Ora, este modelo estará sujeito a antagonismos tanto mais radicalizados quanto menos a sociedade disponha de mecanismos

de diferenciação e de integração que canalizem os focos de tensão e, por essa via, reduzam o seu potencial de confronto.

A emergência da escola, postulada a partir da sua necessidade social, surge precisamente para criar e organizar essa diferenciação, isto é, para integrar mais funcionalmente a sociedade existente. Só que os meios de prova acerca da bondade do modelo de u m a escola, universal e obrigatória e, portanto,

independente de interesses particulares, não estão em condições

de vencer os seus antagonistas, enquanto não demonstrarem que os interesses em presença não são mutuamente exclusivos5.

E o problema é tanto mais complexo quanto a natureza dos interesses em confronto se constitui segundo um processo social

5 - Foi o que acabou por acontecer, no auge da querela religiosa, designadamente em Portugal, quando estava em causa se o ensino público poderia ser aberto aos clérigos.. Como exemplo da força que a retórica ocupava enquanto base da argumentação para a resolução do litígio, eis um passo do Discurso sobre a liberdade do Ensino, pronunciado por José Estêvão, no Parlamento, n a sessão de 23 de Maio de 1862: "Assim como o clero não pode admitir que o secular ensine a teologia divina, também o estado não pode admitir que o clero esteja exclusivamente a ensinar a teologia política, o nosso dogma, a nossa crença - Deus, pátria e liberdade. Não queremos que este dogma seja ensinado fora das inspirações da religião, nem da essência dela; porque pátria e Deus não são a mesma coisa, mas confundem-se no coração do homem, sem ofensa à lei divina Queremos que o ensino civil do padre seja dado fora da influência religiosa; m a s não que lhe seja atribuída ou por vontade da lei, ou contra a vontade dela, por abuso manifesto, reconhecido e j á anunciado" Discursos, Porto, Livraria Chardron,

onde não é discernível o modo de operatividade teórica (o modo de justificação racional) do modo de operatividade prática, ou seja da lógica que suporta os mecanismos de juízos de valor, pelo que a adesão a um modelo de escola é indissociável da ideia de uma coisa desejável, o que é outra maneira de exprimir o peso da ideologia que, nos termos de MONNEROT (in HAMELINE, o . c : 155) é "uma oferta intelectual correspondendo a um pedido afectivo".

Ao universalizar-se como um direito sem sujeito, a instrução circula, pois, durante quase dois terços do século XIX6, entre nós,

num registo entre a ambiguidade e a indiferença pública, como um discurso errante que visa, ao mesmo tempo, constituir o seu sujeito e o seu objecto. Ele cumpre assim aquilo que HAMELINE (1994a) considera ser o ciclo típico inerente ao percurso duma "grande" ideia pedagógica que, por falta de apoditicidade interna, tem de procurar a insinuação social para poder afirmar-se como entimema, que é uma forma de raciocínio intuitivo, com base na inferência retórica (MEYER, 1991:14), cuja legitimidade é o senso comum.

O senso comum, que representa um modo de consciência social apaziguada em torno duma mensagem social complexa, convertida em lugar comum, pressupõe uma comunidade cognitiva (CORREIA, 1996a) que engloba, no processo da sua apropriação, uma disposição afectiva que é essencial ao seu reconhecimento prático, donde resulta que o senso comum é uma forma de metabolização psico-social que se alimenta, segundo

6 - Lembra-se que só em 1870, e com duração muito efémera, se cria entre nós o Ministério da Instrução Pública sob o impulso e desempenho de D. António da COSTA.

mecanismos particulares e, portanto, selectivos, d u m produto comum. Todavia, por ser selectivo, isto é, por permitir u m a apropriação particular do que é produzido socialmente, o processo de construção do senso comum não envolve o questionamento do sentido da própria adesão, precisamente porque participa n a s u a construção, sendo por isso que ele se objectiva em lugar comum através da linguagem, onde oculta a s u a ambiguidade, isto é, o poder de se instituir em regra de acção e em valor sob a forma de disposições naturalizadas7.

2.2 - Segundo momento: o trabalho oculto da retórica ■ separar em vez de superar ou a causalidade do destino

O processo de institucionalização da Escola e do modo de instruir que lhe é peculiar é indissociável da lógica psico-social que e s t r u t u r a a formação do senso comum. Para que isso aconteça, é necessário que o discurso perca a s u a estranheza, a s u a univocidade, a s u a dimensão de enormidade por excesso e se deixe apropriar segundo os quadros de reconhecimento social j á disponíveis, dentro dos quais ele é transformado psicologicamente, tornando o imprevisível aceitável. É nisso que consiste o trabalho da retórica, que sendo u m processo de participação social, essencial à sobrevivência da ideia, é também o

7 -SANTOS, B. S. (1989: 39 e ss) desenvolve a este propósito considerações pertinentes que, a despeito de serem formuladas segundo u m registo sociológico, e não propriamente socio-hisórico, mostram-se aqui de bom préstimo.

caminho da sua desvitalização. Ao procurar objectivar-se num sujeito social, o discurso da autonomia da razão e da emancipação h u m a n a expõe-se ao uso público, onde o sentido literal originário admite várias figurações, tornando possível, por isso, fazer reverter sobre o discurso original a acusação de cegueira. Ê neste sentido que MEYER (l.c:15) aventa que o interlocutor pode ser questionado acerca da real motivação do seu próprio discurso: ele exprime um interesse consciente ou uma posição inconsciente que considera como adquirida? E, neste contexto, declara:

"A retórica é nesse caso o agente da sua própria cegueira se não mesmo daquilo que ele quer fazer aceitar, a exemplo do argumento da liberdade que justifica a livre-troca, argumento usado pela burguesia do século XIX, uma burguesia por vezes cega ao seu próprio ponto de vista, projectado sobre o real e constituindo-o, como se fosse algo de universalmente óbvio". (Itálico no texto)

A circulação exterior da ideia de instrução pública des- sacraliza-a, retira-lhe aquilo que HAMELINE define como sendo a

idealidade da ideia, o que constitui o carácter próprio da sua inacessibilidade (1994: 157). Ela sujeita-se assim à contaminação

do passado, presente nos segmentos sociais que lhe prolongaram os interesses e representações e cujas linhas estruturantes sobre ela se repercutem, permitindo que a instrução pública reincorpore elementos que, tendo sido novos e significativos num contexto anterior, embora para outros problemas, são agora reactualizados miticamente, isto é, dotados de poder auto-realizativo, funcionando simbolicamente como força agregadora, capaz de sustentar o impulso para o futuro. Foi isso o que se passou, por exemplo, com o movimento político da Regeneração, a partir da segunda metade do século XIX, cujas representações míticas dum iluminismo pombalino, inspirou em grande medida, a retórica

sobre a instrução nacional (FERREIRA, 1979: 26), virada agora, quando a paz se tornara possível, para a reconstrução do cidadão constitucional. É neste contexto que se desenvolve um discurso unanimista sobre a imprescindibilidade da Escola cujo objecto primeiro corresponde à necessidade de instruir o público em geral acerca "dos princípios orientadores da lei, das normas constitucionais do viver colectivo e da conformação duma instrução moral e cívica" (FERREIRA, Ib).

Passava, então, e por agora, a segundo plano a questão do que deveria ser a "verdadeira instrução", problema que era iludido através da invocação dum espírito de missão que deveria presidir à obra de regeneração nacional. É neste espírito que se criam as primeiras escolas normais públicas (1862), decalcadas sobre modelos de formação eclesiástica (NÓVOA: 1987:437/8), o que, emblematicamente, significa uma orientação instrucionista que é muito mais que instrução. Nas palavras de NÓVOA, reportando-se ao discurso do primeiro director da primeira Escola Normal, "segundo Luiz F. Leite, a compreensão da 'alta missão que pertence ao apostolado que os alunos-mestres vão abraçar' exige a elaboração duma nova estratégia educativa de maneira a assegurar a educação e não simplesmente a instrução, dos futuros professores" (itálico do autor).

Esta nova estratégia representa, de certa forma, a antítese do que fora a instrução concebida como a realização da autonomia da Razão, uma vez que adopta uma perspectiva dominada pela preocupação de instaurar a conformidade social, através da norma constitucional, preocupação que não transparece apenas na conotação retórica do passo atrás citado, mas que se exprime de forma particularmente marcante no modelo de formação adoptado, bem como no perfil definido para os candidatos à formação, originários, de preferência dos meios rurais. A

transformação socio-cultural e política que o novo sistema

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