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Esta relação de exterioridade que o objecto de instrução escolar pressupõe com o sujeito escolar representa, no âmbito do

processo da redefinição da identidade nacional através da

institucionalização da Escola, um postulado inerente à

modernização das formas de vida e dos modos de produção, que

são, agora, a condição do exercício dos novos direitos, ou seja, a

condição da nova identidade. A relação de exterioridade do

objecto escolar é, portanto, uma relação de ruptura com os laços

de identidade indiferenciada, característicos dos modos de

produção e organização espontâneos da vida comunitária (POPKEWITZ, 1994: 75 e ss) e, simultaneamente, uma relação de integração num espaço nacional invisível que se vai descobrindo/assimilando pela escola, isto é, à medida que se perdem os laços de dependência local e que se lhe substitui uma realidade cifrada de que é garante o código escolar. A produção de indivíduos, económica e socialmente administráveis, capazes de serem referíveis a valores de troca universalmente utilizáveis e de indivíduos politicamente responsáveis, isto é, sujeitos de direitos e deveres que os constituam juridicamente activos e individualmente imputáveis, torna-se a tarefa maior do estado moderno a partir do momento em que a ordem social, supondo a igualdade, não encontra outro referente para a autoridade que não seja o estatuto de cidadão nacional. É por este estatuto que o indivíduo se torna verdadeiramente homem, isto é, adquire uma identidade reconhecível no todo nacional que lhe prè-existe e que pela instrução se lhe revela. É neste sentido que os enciclopedistas comungam do empirismo inglês, designadamente do formulado por LOCKE, não apenas na perspectiva didáctica, mas também na ético-política, já que pressupõem uma natureza h u m a n a que, à partida, é uma tábua rasa, onde é possível inscrever os novos mandamentos duma nova humanidade. Daqui, procede que a construção do cidadão nacional é, também, a construção do súbdito nacional.

Tivemos já ocasião de nos referirmos ao contexto sócio- histórico e político que, no plano da reforma do pensamento, tornou possível u m a concepção de saber que, naturalizando a realidade, a objectivou em categorias racionais potencialmente universais. Vamos, de seguida, tentar reconhecer de que modo essa concepção de saber influencia a s u a própria transformação em saber escolar, ao mesmo tempo que hegemoniza uma concepção e prática da Escola que moldou a profissão docente

até aos nossos dias, não obstante as crises sucessivas a que o modelo tem sido sujeito.

Se bem que, no interior da profissão docente e, mesmo, ao nível da opinião pública, o termo instruir tenha caído em desuso e sido suplantado pelo de ensinar, não é líquido que a alteração terminológica tenha correspondido a uma obsolescência definitiva do modelo de Escola suposto no conceito de instruir com o consequente abandono das suas referências práticas.

Reconhecemos que o desenvolvimento das ciências da educação, designadamente daquelas que estão na origem da criação de poderosos meios didácticos, bem como daquelas que questionam a interdependência entre conteúdos e metodologias como indispensável a uma prática de ensino, têm contribuído, ao nível da representação auto-atribuída da actividade e da cultura dos professores, para uma descida ao limbo social do modelo em referência. Todavia, no sistema límbico dos professores, naquilo que corresponde às suas teorias implícitas, que dependem dos seus modelos de formação, do funcionamento estrutural do sistema escolar, onde o saber escolar é ontologizado, a prática profissional é solitária, a organização do trabalho individualizada, os ritmos e os lugares impessoais e os sistemas de controlo do rendimento verticais, há lugar para admitir que o instrucionismo, enquanto pólo de referência identitária, não tenha sido remetido definitivamente para o lugar do morto25.

25 .": HEIDEGGER (1964: Que significa pensar?, Buenos Aires, Editorial Inova, p. 20) num pequeno passo carregado de sugestões, fornece-nos algumas pistas essenciais para compreendermos a distinção semântica entre ensinar e instruir, bem como a transformação ontológica que a prática da distinção pressupõe: "O ensinar é mais difícil que o aprender porque

É em atenção a esse fenómeno que cabe esta reflexão. Por ela passa a possibilidade de compreensão duma teoria da formação do objecto das Ciências da Educação, que é também uma teoria da formação do sujeito da educação e, designadamente, dos professores.

A institucionalização da Escola e o seu funcionamento sob o modo dominante da instrução representam, certamente, um desfile de peripécias no sentido mais corrente do termo, ou seja no sentido de que o seu percurso está cheio de incidentes, de imprevistos, que, não obstante a controvérsia que geram, não alteram, no essencial, a sua vocação primordial, qual é a de salvaguardar e gerir a enormidade da norma.

Todavia, a sua peripécia maior foi a de ter construído esta vocação no sentido inverso ao do fundamento invocado para a sua necessidade social que foi o da emancipação e da igualdade,

mestre não deixa aprender nada mais que "o aprender". Por isso é que a sua obra produz a miúdo a impressão de que propriamente não se aprende nada com ele, se por aprender se entende apenas a obtenção de conhecimentos úteis. O mestre possui a respeito dos aprendizes como único privilégio o de que sabe que tem que aprender ainda muito mais que eles: o deixar - aprender. O mestre deve ser capaz de ser mais dócil que os aprendizes. O mestre está muito menos seguro daquilo que sabe do que os aprendizes. Daí que, onde quer que esta relação entre mestre e aprendizes seja verdadeira, nunca entra em jogo a autoridade do sabichão, nem a influência autoritária de quem cumpre u m a missão. Daí que continua a ser algo sublime o chegar a ser mestre, coisa que é inteiramente distinta da de ser docente afamado. É de crer que, quando todas as coisas se valorizam apenas para baixo e desde baixo, por exemplo, do

questão que, desde então, não tem deixado de ser objecto de intriga, de confronto e de reflexão apaixonada, reproduzindo, com alguma ironia, aquilo que é possível surpreender nos passos que subjazem à construção da própria metáfora de peripécia.

Ê, pois, sob as sugestões metodológicas contidas na ideia de

peripécia e em atenção às suas virtualidades epistemológicas,

que procuraremos explorar, que vamos tentar organizar esta reflexão sobre o significado da instrução escolar e dos seus efeitos sobre o próprio modelo de formação de professores.

1 - DA CONSTRUÇÃO DA ANALOGIA DA PERIPÉCIA E DA SUA PERTINÊNCIA PARA A ANÁLISE DO TRAJECTO DA ESCOLA COMO INSTRUÇÃO PÚBLICA

Os dicionários apontam, para o termo peripécia, a sua origem grega, onde o respectivo equivalente, derivado do verbo "peripateo", significa "o acto de circular enquanto se conversa". Sendo certo que "o acto de circular enquanto se conversa," não determina, à partida, um género particular de conversa que lhe circunscreva, quer a temática, quer a metodologia, a verdade é que o percurso do termo, como categoria semântica, sugere para

peripécia uma fenomenologia própria que a conota com um

campo de significação específica, cuja exploração é susceptível de revelar potencialidades interpretativas interessantes para o que agora interessa.

Assim, s a b e - s e q u e o p e r i p a t e t i s m o , t e r m o por q u e se

designa a filosofia de Aristóteles, igualmente derivado de "peripateo", ficou ligado ao facto de o filósofo ter por hábito explanar as s u a s lições passeando com os discípulos no perípato, passeio coberto que existia na casa onde fundou o "Liceu". Por outro lado, o termo peripécia é usado por Aristóteles na Poética como um recurso técnico essencial ao efeito do trágico no teatro, consistindo na introdução dum sucesso (no sentido de evento

inesperado) cujo reconhecimento opera a inversão dos acontecimentos até aí logicamente encadeados26. Na linguagem actual, o termo desvinculou-se daquele género dramático, conservando, todavia, a sua ligação à acção literária, onde significa "sucesso num poema, numa peça teatral, etc., que muda a face das coisas". Segundo Cândido de FIGUEIREDO, o termo tem ainda um uso familiar sob o registo de "sucesso imprevisto, incidente".

Não parece arriscado reconstituir a história semântica de

peripécia, pondo em destaque a forma como se articula a sua raiz

etimológica com o significado que lhe deu a escola aristotélica, a função que adquiriu no teatro e o seu uso familiar, tentando assim ver o que caracteriza este conjunto de transformações, desde o "acto de circular enquanto se conversa" até à instância de "incidente familiar".

Do ponto de vista das suas condições de emergência, como fenómeno social espontâneo, a peripécia como "acto de circular enquanto se conversa", associado ao "imprevisto", parece, naturalmente, ligado à existência dum acontecimento marcante que afecta as expectativas normalizadas dos sujeitos relativamente à ordem natural, social ou moral, determinando doravante uma relação problemática e intrigada com essa ordem até que seja encontrada uma explicação para o acontecimento. Pode acontecer que essa explicação ocorra, apenas, em consequência dos efeitos catárticos, produzidos pela conversa em comum, mercê da exteriorização/interiorização de argumentos pró e contra, que são intersubjectivamente actuantes, criando

26 - Cf. ARISTÓTELES, La Poétique, Paris, Éditions du Seuil, 1980, pp. 6 9 / 7 0 . Tradução e notas de R. Dupont-Roc e J. Lallot.

uma ordem de persuasão psicológica mais forte que aquela que já existia, antes de serem postos à prova os operadores

simbólicos socialmente disponíveis. Neste caso, não se produziu necessariamente um novo conhecimento, mas reforçou-se a eficácia do senso comum.

Todavia, esta prática de "circular enquanto se conversa", a

peripécia, não teria alcançado a ressonância literária e filosófica

que alcançou, se o acontecimento ou a irrupção do novo, que lhe deu origem, não se tivesse revelado uma problemática específica do mundo grego, cuja relevância se acentuou com a entrada da retórica na ocupação do espaço público. Daí a sua conotação particular com o mundo especializado do teatro e a sua crescente aplicação na vida judiciaria, donde se estendeu à regulação política, através dum uso tecnicamente regulado, assente na palavra, "como arte de 'forçar' a escuta"(BARTHES-HAVAS,

1987:139). A peripécia, de prática espontânea de partilha de perplexidades face ao imprevisto, vai-se tornando, gradualmente, uma técnica, um recurso em busca dum efeito inesperado, laboriosamente preparado, o que supõe a transformação do público visado e, portanto, a transformação da sua base social.

É assim que, do ponto de vista das suas condições de possibilidade social, "o acto de circular enquanto se conversa", sugere disponibilidade comum de tempo e de meios, interesse comum na temática, reduzido número de participantes, uma certa intimidade entre eles e um estatuto social próximo. Do ponto de vista temático, o "assunto" supõe matéria relevante ao nível da experiência pessoal e social (pelo menos na perspectiva dos parceiros da conversa), mas não urgente, e admitindo soluções controvertidas, exposto, por isso, a múltiplas abordagens e, portanto, não sujeito a um tratamento demonstrativo. Doutra forma, não suscitaria a necessidade de ser reflectido em comum, sob a forma de circulação, isto é, livre

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