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É nestes termos que as figuras analíticas, construídas em torno da analogia da peripécia, a propósito do processo da

institucionalização da Escola, devem poder ser interpretadas:

como um meio de recuperar a intersubjectividade perdida da

experiência humana, reactualizando as lógicas dos diferentes

sistemas de acção que, em diferentes momentos, se foram

coisificando. Elas pretendem, 3*sim, dar conta duma espécie de

mecanismo de "compulsão da repetição" inerentes aos fenómenos

psico-sociais, historicamente mediados, e dos seus efeitos sobre

os agentes institucionais da Escola que representam a condição

da sua objectivação, isto é, da perda da sua dimensão intersubjectiva4.

4 - O recurso ao vocabulário psicanalítico tem em vista pôr em evidência o contributo que as correntes psicanalíticas, sobretudo das que se inspiram em LACAN com intuitos de análise histórico-institucional, podem constituir para abordar a questão da constituição da consciência psico-social nas s u a s relações com o processo histórico-cultural. O conceito de compulsão da

repetição, elaborado por Freud, é interpretado por LACHAUD (in

PÈQUIGNOT (1990: 166,/ nos seguintes termos: "Este automatismo de repetição requer, dirá Freud por outras palavras, uma interpretação que consiste em dizer que a repetição é apenas uma maneira de se lembrar de algo que não foi de modo nenhum esquecido, mas recalcado; e os seus motivos obedecem ao princípio do prazer. O recalcado reaparece até que o recalcamento seja removido. A partir do momento em que ele se lembra, o paciente já não repete mais: é impossível repetir e lembrar-se ao mesmo tempo(...). A perlaboração permitirá, pela cura e pelo transfert, que a repetição seja superada". Na interpretação de LACAN e ainda segundo LACHAUD (Id.,Ib.), "cada repetição aparecerá completamente diferente da anterior. Em cada ciclo, a repetição instaura um espaço, um desvio entre aquilo que é procurado e aquilo sobre que recai e se fixa esta procura", o que - acrescentamos nós - se fica a dever ao efeito de transformação que se opera no sujeito em resultado da sua actividade sobre si próprio. Na análise lacaniana, esta actividade é inconsciente, na medida em que se faz mediante a instituição da linguagem que, como instituição ideológica, separa cada vez mais o sujeito de si mesmo até o tornar puro objecto. Segundo P.L. ASSOUN (citado ainda por PUÉQUIGNOT (Id.Ib.), é uma noção deste tipo de repetição que Marx tenta extrair da análise da história: "A repetição é o jogo da necessidade histórica, a verdadeira astúcia da razão histórica, pela qual os sujeitos

históricos se suprimem como tais e demonstram a ilusão da individualidade jogando a comédia histórica. A repetição é, desde então, o fracasso da diferença".

Quanto ao que aqui nos interessa relevar, a repetição entende-se como um mecanismo cuja lógica se inscreve num jogo de tensões entre a prática social e a consciência possível. Dada a distância que existe sempre entre teoria e prática (lembremos que a prática nunca é uma aplicação da teoria) a repetição desempenha uma função de segurança ontológica":, o que tanto pode resultar da familiaridade própria, a que a repetição dá lugar, como da confiança alheia que assim é testada. Parece, portanto, demasiado restritivo entendê-lo tanto como um mecanismo alienante, como uma astúcia da razão, tese que pressupõe uma verdade exterior

Em termos psico-sociais, este processo de perlaboração pode entender-se como um trabalho de auto-reconhecimento dirigido à construção simbólica dos espaços de compatibilização entre o privado e o público (ou entre o desejo e a realidade).

2 .1 Primeiro momento: "circular enquanto se

conversa'*

No primeiro momento da peripécia - "circular enquanto se conversa" - o que confere espessura de acontecimento à conversa sobre a Escola é a proclamação da sua universalização como um direito, cujo potencial intrigante resulta, precisamente, de não ser socialmente reconhecido e, portanto, de não ser possível representá-lo como um facto ao nível dos que são constituídos como seus titulares. HERCULANO, entre nós, foi dos primeiros a assinalá-lo: Referindo-se aos "nossos grandes homenzinhos" que concluíam que a instituição dos jurados não convém ao país, porque os seus membros eram quase sempre os mesmos, por saberem 1er, e que isso constituía "um gravoso imposto de trabalho, que deveria ser repartido por cem ou mil, tornando-se assim não só suportável mas leve" HERCULANO contra-ataca:

"O que não convém ao Pais é o abandono em que vós tendes deixado o ensino em geral; o que não convém ao País é que, ainda quando se propaguem as escolas elementares e todos sejam obrigados a frequentá-las, se limite a instrução intelectual do povo àquilo que de futuro só lhe pode produzir encargos sem proveito material. (...). Para este fundamento de toda a liberdade (que é a ilustração) poder frutificar é preciso que o povo conheça e saiba que dele depende a sua felicidade. E como perceberá o povo que a ilustração é a fonte caudal de todo o bem, se os frutos imediatos que dela colhe são só trabalho e opressão?"(1984:105).

É em torno desta contradição - a da ilustração como um direito que envolve a sua negação prática, transformando-se num dever e num suplício, como diria CORREIA a propósito da institucionalização da Formação Contínua (1996a) que se constitui

peripatético originário, o de conversa circulante, porque sem

limites prè-definidos, resulta precisamente da incomensurabilidade do tema, do que HAMELINE designa por

enormidade da norma, por não poder ser pensado como conceito,

mas sim como ideia e, como tal, estar sujeito a interpretações, a projecções de interesses particulares que, todavia, são defendidos como universais como uma exigência da sua legitimidade social. A crença na universalização da Razão, como inerente à espécie h u m a n a e na eficácia do verbo, como sua expressão adequada e, portanto, unívoca, é, simultaneamente, a condição da afirmação do direito à instrução e a da sua inviabilidade real: é esta situação paradoxal que explica a circulação verbal, enquanto peripécia, em busca duma saída. HERCULANO (1984) tentou-a através da precedência do Estado no indivíduo:

"o homem que entra na vida, pertence primeiro à república do que a si próprio"(99).

Todavia, em concreto, reconheceu o princípio como tirânico:

"Os pais, a quem as sessões de jurados roubam muitos dias de trabalho de que se mantêm, consideram a instrução elementar que receberam como um mal-aventurado presente e olham como benefício feito a seus filhos o recusar-lhes o ensino elementar. (...). Limitada assim a instrução, a lei que a propagar e tornar obrigatória será da parte da sociedade uma lei egoísta, uma lei de sacrifício sem compensação; e não admira que o espírito público reaja contra o que ela contém de tirania"(104).

O que falta é, portanto, legitimar, individualmente, a instrução. Mais u m a vez, a enormidade da norma, agora por defeito. HERCULANO acusa, como responsável, a falta de exequibilidade da norma:

"A exequibilidade é a primeira virtude de qualquer instituição, e a exequibilidade em uma lei de instrução nacional só pode resultar de nunca o legislador esquecer esse pensamento fundamental da variedade na unidade, (sublinhado no texto) que deve presidir à feitura da mesma lei"(99).

Este argumento, como facilmente se reconhece, é o lugar comum a que recorre toda a "conversa enquanto se circula", porque cria a ilusão de que, localizando o universal, o torna manejável, permitindo que o discurso abandone o nível da teorização, isto é, o nível da compatibilização dos princípios e passe à acção, onde é pressuposto que a s s u m a uma dimensão técnica e não já política.

Se, todavia, nos interrogássemos sobre a não-exequibilidade da lei, reconheceríamos que a questão não é técnica, mas ainda política e filosófica no sentido de que os meios indispensáveis à exequibilidade, ou a ausência deles, representam uma dada relação com a realidade através da qual se viabilizam interesses que só são comuns quando essa representação é abstracta. É nessa condição de interesses abstractos que o discurso sobre a instrução pode passar de círculos restritos, onde a problemática

era a s s u m i d a como c o r r e s p o n d e n d o a i n t e r e s s e s de coerência

ética e, portanto, de natureza existencial, para círculos mais amplos, onde aquela dimensão agonística vai dando lugar à retórica e à sofística, em cujo âmbito os problemas são predominantemente assumidos do ponto de vista da gestão e administração social.

É por isso que, nessa primeira fase, o essencial do discurso

peripatético sobre a instrução se desenvolve sob o registo da

emancipação e do progresso social, n u m a esfera relativamente exterior ao Estado e, até frequentemente contra ele e, por isso, contra a experiência social instituída e não a partir dela para a

transformar, como tinha sido admitido por Hegel, onde o saber era conceptualizado como constitutivo do Estado. Esta circunstância faz com que o saber seja representado tanto como arma política de oposição, quanto como instrumento de civilização, com a comum condição, porém, de negar a realidade que visa, enquanto esta é tributária de práticas culturais e respectivos códigos de referência incompatíveis com uma mundividência que se estrutura a partir do universal. Daí a sua radicalidade, mas também a sua estranheza e exterioridade sociais.

Assim, se a instrumentalização política da instrução passa pela denúncia da ignorância como factor da opressão, não passa, em contrapartida, pela denúncia da opressão como factor de ignorância, pelo menos nas práticas dominantes do discurso político. Esta orientação do discurso político em prol da instrução, ao fazer a denúncia abstracta da ignorância como a raiz de todos os males, afirma a anterioridade causal das luzes como condição de resolução desses males, tanto no plano material, como moral, deixando suposto que a questão das relações materiais e sociais da vida só é um problema político, enquanto a política não resolver o problema da instrução. Esta visão intelectualizada da vida social que permite que a instrução se autonomize dela e a tutele, pressupondo como seu destinatário o sujeito individual, enquanto potencial cidadão, que é o mesmo que o sujeito abstracto (SUCHODOLSKI, 1976: 129 e ss), explica o carácter paternalista e, simultaneamente filantrópico do discurso instrucionista, típico duma elite intelectual, cuja experiência social, urbana e cosmopolita, opondo-se ao comunitarismo duma formação social fortemente ruralizada, reproduz, invertido, o esquema ideológico duma prática social e política, caracterizada pelo centralismo e pela hierarquização das relações de poder.

A dissociação entre o pensamento e a vida que supõe o

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