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É, a este título, eloquente o que a investigação, no campo da organização do trabalho, tem vindo a revelar no que respeita a

aquisição de competências sociais e profissionais próprias, que os

trabalhadores constroem, à margem ou contra as práticas

explícitas da formação formal. Na base desse processo, que a

ergonomia, designadamente, tem estudado, está um conjunto de

características que integram a inteligência prática e em cujo

desenvolvimento participam tanto o corpo como a mente, num processo indissociável da prática e dificilmente explicitável em termos conceptuais. DEJOURS (1993) caracteriza, globalmente, esta inteligência como astúcia, um misto de intuição e de cálculo, a que o corpo dá viabilidade e visibilidade práticas e que se manifestam apenas em acto, desaparecendo com ele para reintegrar a totalidade dinâmica do agente.

Tendo sido reduzido, pelo taylorismo, a gesto inútil tudo o que fugisse ao modo operatório cientificamente estabelecido, a "Organização Científica do Trabalho" bloqueou esta inteligência prática e, com ela a psicodinâmica que a anima, ou seja: a unidade funcional corpo/espírito, a prevalência dos resultados sobre o caminho para lá chegar, a personalização dos procedimentos segundo um controlo antecipante (MALGLAIVE,

1995:165) e, ainda, o poder criador, a que DEJOURS l.c.) reconhece um carácter "pulsional" decisivo não só para a produtividade, como para o equilíbrio psíquico e social do trabalhador e do meio familiar e social que o cerca. De facto, a subutilização do poder criativo é, frequentemente, patogénico, como estabelece o próprio DEJOURS em obra já antiga, mas posteriormente reeditada com actualizações (1993b), com base em estudos de casos amplamente documentados.

O reconhecimento de que o trabalho é patogénico, quando a organização que o estrutura é bloqueadora da criatividade do trabalhador, significa, para DEJOURS, a condição de não reconhecimento da própria dignidade do trabalhador que se acha impedido, por essa via, de exercer aquilo que DEJOURS designa por direito à contribuição, complementar do direito a ser retribuído. É nesse direito à contribuição pessoal no campo do trabalho que se joga a possibilidade de a sua vida ter um sentido,

de poder construir a sua identidade. De acordo com este pressuposto, DEJOURS pode concluir que,

"se não há incompatibilidade fundamental entre o direito à contribuição e a organização do trabalho, é porque esta última, sofrendo sempre de inacabamento, de imperfeição e de defeitos, admite, na prática, ser completada e ajustada pela contradição dos "executantes", isto é, por u m a contribuição que releva da "concepção".

Como mostraram os ergónomos, existe sempre uma diferença entre a tarefa (aquilo que se deve ou deveria fazer segundo as prescrições) e a actividade (o que se faz, de facto, para atingir, ao máximo, os objectivos da tarefa"(1993:59).

Nestes termos, podemos afirmar que, pela sua ressonância simbólica, o trabalho ultrapassa o seu valor de troca para se constituir n u m a forma privilegiada de construção do sentido da vida, tanto mais complexa quanto ele actualiza toda a experiência

pessoal e social do trabalhador. À luz desta perspectiva, uma relação de trabalho não se pode submeter, exclusivamente, à lógica da eficácia da produção, contrariamente ao que pretendeu a racionalidade científico-técnica; ela é sempre uma relação bio- socio-técnica, que sendo, por isso, intersubjectivamente mediada, remete para o contexto organizacional a qualidade da sua expressão. Assim é que, quando o tipo de organização do trabalho não favorece o desenvolvimento da prática comunicativa em termos que promovam as competências que exprimem as formas particulares do exercício do direito à contribuição pelo trabalho, que são essenciais à reflexão da identidade do trabalhador, ocorrem comportamentos defensivos, a maior parte das vezes sob a forma dum individualismo assumido que se exprime, quer como rotina, quer como afirmação competitiva. Estes comportamentos de sinal contrário agravam, obviamente, as possibilidades de

exercício do sentido contributivo do trabalho, cujas condições tendem a ser explicadas, não no plano das relações vivenciadas no interior da organização que, desta forma, se autoriza a reforçar o seu controlo, mas no quadro duma causalidade externa, representada como uma ordem fatal, que HABERMAS (1993:375) designou como causalidade de um destino.

A rotina como desinvestimento ou a afirmação competitiva exprimem, de igual modo, a não correspondência com as regras técnicas do trabalho, porque ambas vivem de "truques", umas por defeito, outras por excesso, qualquer delas relevando de fraudes

(as primeiras visando "ladear" as regras técnicas da organização; as segundas, as regras sociais da comunicação implícitas em qualquer colectivo de trabalho), fraudes que, todavia, dissimulam o respectivo carácter através duma aparente conformidade técnica, em que a rotina aparece como mestria cristalizada e a afirmação competitiva como zelo.

O mal estar, o sentimento de inutilidade, a perda de sentido e o anonimato, que acompanham a rotina, ou a ambivalência justificacionista do individualismo pragmático traduzem, por vias

opostas, a mesma estratégia de defesa contra uma ordem organizacional que pensa o trabalho como uma ordem de produção técnica e material exterior à produção social e humana, donde foram expulsas as motivações socio-culturais e bipsicológicas dos agentes do trabalho. A rotina e a afirmação competicionista tornam-se, então, interdependentes e ambas, activamente, geradoras da ordem que as mantém. O trabalho aliena-se num produto, cujo processo de produção, ao ser participado, inconscientemente, pelos agentes do trabalho, produz as condições da sua própria alienação.

A articulação dos modos de produção científico-técnica com os modos de produção social assume, portanto, no campo do trabalho, uma dimensão problemática que afecta a própria produtividade do trabalho, mesmo quando este seja, apenas, visado como mercadoria. Não é, por isso, de estranhar que as estratégias avançadas de gestão da produção contemporânea nas empresas de ponta se definam pela valorização do factor organizacional dos contextos de trabalho, tendo em vista, precisamente, promover a interacção entre os membros do colectivo de trabalho numa perspectiva de projecto empresarial que mobilize os factores psicodinâmios dos agentes de trabalho, designadamente, dos que presidem à criação de condições de sentimentos de pertença, fidelidade, autonomia e inovação (ENRIQUEZ: 1992), capazes de assegurar a auto-renovação permanente da própria organização.

Este movimento no sentido da destaylorização do trabalho comporta várias interpretações conforme o tipo de problemática a que se aplique e, sobretudo, conforme a cultura de poder que for possível construir no interior da organização. Uma leitura de tipo

managerial apresenta-se imediatamente evidente pelos benefícios

que ela anuncia no quadro de uma economia globalizada e, portanto, sujeita a uma u s u r a sistemática das competências adquiridas, que se vêm forçadas a uma constante renovação, o que só se torna possível a partir da organização qualificante do posto de trabalho, concebido agora como estrutura flexível e interdependente, eventualmente sobredeterminado pela lógica de equipa.

Todavia, se a concepção managerial da organização pressupõe a destaylorização do trabalho no sentido de que viabiliza o investimento psicodinâmico do trabalhador, porque valoriza as dimensões da sua inteligência prática, nada obriga, a

esse nível, que a ordem de produção transcenda o registo técnico- instrumental afectado às novas competências. O que admite a organização qualificante do trabalho, associada às correntes gestionárias manageriais, é a capacidade inovante que caracteriza o trabalhador, quando integrado n u m a estrutura que provoca a inovação. Só que, ainda que a inovação pressuponha e propicie competências que relevam de saberes relacionais ou saberes comunicacionais, o que a caracteriza, enquanto fonte de saberes enquadráveis n u m a perspectiva managerial é, ainda, o obedecer a uma lógica técnico-instrumental, já que a sua finalidade intrínseca, que é da ordem da produtividade, a promove como meio e não como fim.

Nestes termos, a lógica da organização qualificante é ainda tributária duma visão tecnicista, onde a iniciativa dos actores é induzida estrategicamente através dum sistema de estímulos que tanto podem ser materiais (o recurso às novas tecnologias, por exemplo), como simbólicos (o discurso sobre as incertezas quanto ao sentido da evolução dos mercados, que assim se tornam um recurso ao serviço da inovação, para já não referirmos os simplesmente pecuniários). A inteligência prática pode, assim, encontrar um campo aberto à sua realização, exercendo-se entre um registo de prè-compreensão intuitiva e auto-regulação pelas acções, que integram o processo e o produto, cuja articulação já não é decomponível em operações sequenciais lineares, submetidas a uma via de desenvolvimento obrigatório.

Daí que o modelo produtivo que se estrutura em torno duma concepção qualificante dos contextos de trabalho transporte consigo u m a ambiguidade cuja pertinácia é tanto mais resistente quanto ele traduz o desenvolvimento duma lógica social contraditória. Na verdade, essa ambiguidade repousa, por um lado, no reconhecimento de que a produtividade e o êxito da

economia dependem, cada vez mais, da incorporação do factor humano, que não é objecto de apropriação técnica e, por outro, na impossibilidade sistémica de prescindir dessa apropriação, já que as condições de exercício do desenvolvimento do factor humano dependem de meios (nomeadamente, de produção e matérias primas) que lhe não são próprios, pelo menos na formação social dominante constituída pelo capitalismo. Esta ambiguidade reflecte, assim, o compromisso entre as reivindicações da inteligência prática, cuja capacidade de produção material é investida criativamente como meio de produção do reconhecimento pessoal e social e uma prática sistémica de produção organizacional que absorve essas reivindicações, reinvestindo-as produtivamente, sem transformação social, reinstalando a produção material como fim.

Todavia, o estado de interdependência que, objectivamente, o trabalho instaura entre a ordem do desenvolvimento social e a ordem de produção económica, tem vindo a ser explorado, na pista de estudos sobre as transformações operadas no seio das unidades produtivas, que se confrontam com as sequelas da organização centralizada, por certas correntes da sociologia do trabalho, que tendem a interpretá-lo como favorecendo a emergência dum modelo socio-produtivo apontando para a integração do trabalho no mundo da vida.

Tais interpretações que, empiricamente, se baseiam na crise generalizada dos eixos estruturantes da organização clássica do trabalho e que VELTZ e ZARIFIAN (1993:3-25) identificam como dizendo respeito aos modelos utilizados de operação (elementar, sequencial e prè-finalizada), de cooperação (aditiva, circunstancial e vertical) e de aprendizagem (diferida, estruturada por funções, técnica) legitimam-se, por sua vez, na tese de que

"dum modelo em que a eficiência exprimia a produtividade num mundo de operações e de objectos, passa-se para modelos onde a eficiência exprime sobretudo as capacidades periciais e de coordenação {mise en ordre) lógico-temporal dum mundo de acontecimentos"

e de que

"Esta capacidade pericial e de coordenação resulta directamente do grau de desenvolvimento da comunicação intersubjectiva que se acha projectada, por esse facto, no coração da eficácia industrial".

Na demonstração desta tese, os autores acentuam, como está explícito neste passo, a importância da comunicação, não como um meio de "difusão e aceitação de mensagens gerais", ou "um modelo de circulação de dados", mas enquanto um processo que se exprime em "intervenções capazes de dar sentido aos dados", sendo que esse sentido, entendido como compreensão intersubjectiva, implica "os três registos clássicos: o cognitivo, o normativo e o expressivo".

Não vamos acompanhar os autores na explanação minuciosa do domínio de significação que é atribuído a cada registo, mas percebe-se melhor o papel que eles reconhecem à comunicação, se os acompanharmos na ideia de que as competências supostas no desempenho da actividade profissional, qualquer que seja a sua natureza, são predeterminadas pela experiência comunicacional. O entendimento de que a qualidade do trabalho, hoje, depende, da capacidade de gerir os acontecimentos que se põem à produção ou de os provocar, dada a forma como o mundo dos objectos foi sujeito à u s u r a e ao ritmo das interacções, implica o corolário de que o conhecimento dos fenómenos, as decisões a tomar sobre eles e as disposições e atitudes, que lhes subjazem face aos acontecimentos, constituem um processo integrado em

permanente produção, cujo êxito implica um fluxo comunicacional onde a análise (o cognitivo), a discussão (o normativo) e a mobilização (o expressivo/afectivo) devem perfazer um todo ao nível do colectivo do trabalho.

Os autores reconhecem que há algum optimismo (Ib.:20) da sua parte ao admitirem que este modelo socio-produtivo possa vingar ao nível duma prática social generalizada no seio das unidades produtivas. Esse optimismo é, porém, tido como necessário, sobretudo quando se reconhece que, quando a comunicação é substituída por sistemas técnicos, por exemplo, pela via da informática, "o homem aparece como uma fonte de disfuncionamento", precisamente porque se bloqueia "a comunicação humana, com as suas irredutíveis ambiguidades"(23). Nessa base, os autores sentem-se impelidos a formular uma tese complementar:

"Quanto mais a comunicação fechada se desenvolve nos sistemas técnicos, quanto mais estes são integrados e complexos, mais o meio económico é variável, mais cresce a necessidade duma comunicação intersubjectiva aberta ao seio da colectividade humana".

A análise do modelo proposto por VELTZ e ZARIFIAN revela- se pertinente para a nossa problemática, se considerarmos que as suas potencialidades teóricas, sendo emergentes duma reflexão centrada sobre a relação teoria/prática mediada pela actividade industrial, podem ser consideradas como consistentes com toda uma prática de investigação que tem vindo a pôr em evidência, quer a irredutibilidade do trabalho, qualquer que seja a sua natureza, às suas prescrições normativas, quer a iniludível

m e d i a ç ã o social q u e e s t r u t u r a a s c o m p e t ê n c i a s individuais1 3. A i n t e r p r e t a ç ã o d a realidade sob a lógica do a c o n t e c i m e n t o , como

13 - Cabe aqui uma chamada especial para o trabalho pioneiro de VYGOTSKY (falecido em 1934) que, estudando a formação da personalidade segundo uma perspectiva inspirada no materialismo dialéctico, acentuara que a competência individual seria tanto mais elevada e diversificada quanto maior fosse a cooperação no grupo, de acordo com a tese, entretanto experimentalmente verificada ao nível das relações entre pensamento e linguagem, de que o desenvolvimento intrapsíquico (individual) é função do desenvolvimento interpsíquico (social e cooperativo). É este processo que permite e potencia a formação de estruturas multi-relacionais entre as funções mentais, visto que ele implica a transformação de relações entre as funções e não apenas o seu desenvolvimento cumulativo. (Cf. Pensamento e

linguagem, Lisboa, Edições Antídoto, 1979, p. 171 e ss..). Esta

mesma tese é reafirmada por certas correntes actuais, oriundas do campo etmometodológico, designadamente da que é protagonizada por CICOUREL, cuja teoria da cognição social distribuída assume o princípio de que o grupo dispõe de maiores competências e possibilidades do que o indivíduo isolado, razão por que a relação do indivíduo com o grupo é uma relação assimétrica, sendo, precisamente, esse facto que determina a situação de estímulo que fomenta o progresso permanente. E CICOUREL acrescenta que "estes estudos (da cognição social) sugerem que para dar conta da variedade das capacidades h u m a n a s , os investigadores devem modificar o seu objecto: interessar-se menos pelas propriedades cognitivas dos indivíduos do que pelas propriedades dos grupos, estudando-os no seu desenvolvimento natural" (In Sociologie du TravailL, 1994, n° 4, Paris, Dunod: La connaissance distribué dans le diagnostic médical, p. 249). Numa perspectiva de aplicação destes princípios aos contextos organizacionais, MOISAN (1995: Éducation

fazem os autores em referência, dramatiza, obviamente, a

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