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CAPÍTULO I A Avaliação do Desempenho Docente

1.2. Avaliação: Definição Polissémica e Complexa

O conceito de avaliação é polissémico, transdisciplinar e não unívoco (Scriven, 1991). A sua polissemia é invocada por diversos trabalhos (Caetano, 1998; Figari, 1996; Guba & Lincoln, 1989; Hadji, 1994; Paquay, 2004), nos quais se pode observar que este constructo se formou ao longo de um processo de desenvolvimento, de construção e de reconstrução das várias influências, sendo validado e conferido com base numa legitimação social e política (que envolve também a negociação entre avaliadores e avaliados), desenvolvendo-se como reflexo dos contextos históricos, dos propósitos e das intenções filosóficas dos avaliadores, teóricos e práticos, ao longo dos tempos.

É neste sentido que Alves (2004) advoga que

“a avaliação, além de constituir um dos temas que tem sido objecto de atenção mais intensa nos últimos anos, tem vindo, ao longo das épocas, a adquirir uma grande variedade de significados, de acordo com a evolução da própria sociedade: alterações económicas, sociais, políticas e culturais originaram diferentes concepções de educação e, consequentemente, diferentes modelos de ensino-aprendizagem e de abordagens de avaliação” (p. 31).

Apesar de o ato de avaliar ser passível de ser encontrado em todos os contextos da atividade humana, é em particular no contexto escolar que ele assume um lugar privilegiado, uma vez que se constitui como instrumento que permite à organização escolar realizar um “olhar sobre si mesma, procurar uma explicação, um sentido para a ação empreendida, melhorar os resultados ou a sua eficácia” (Clímaco, 2000, p. 5).

O conceito de avaliação não é um conceito atual uma vez que, historicamente, remonta aos finais do século XVIII, tendo Madaus e Stufflebeam (2000, p. 20-21) identificado diversos períodos de avaliação até aos nossos dias. Todos estes períodos encontram-se impregnados de condimentos históricos, de justificações filosóficas e conceptuais, que crivaram um cunho na avaliação. Estes autores caracterizam, assim, os seguintes períodos da avaliação:

a) Idade da Reforma (1792-1900) – este longo período integra a Revolução Industrial, que levou a alterações ao nível da consciência social e da estrutura das organizações, passando a avaliação a ser alargada, nomeadamente, aos alunos e à própria escola.

b) Idade da Eficiência (1900-1930) – é uma época marcada pelos trabalhos de Frederick Taylor, que deu origem ao movimento de gestão científica, cuja ênfase é colocada na sistematização, normalização e eficácia, sendo possível compararem-se sistemas, através de testes estandardizados.

c) Idade de Tyler (1930-1945) – que marca a época do culminar dos objetivos válidos que foram atingidos, como parte integrante de um programa de educação. É uma abordagem que apela à medição dos objetivos comportamentais definidos, centrando-se nos resultados da aprendizagem.

d) Idade da Inocência (1946-1957) – caracteriza-se pelo desenvolvimento técnico da avaliação com o crescimento dos testes estandardizados. Os princípios estatísticos da abordagem experimental começam a ser utilizados.

e) Idade do Desenvolvimento (1958-1972) – marcada pelo desenvolvimento de projetos de avaliação do currículo em larga escala e o aparecimento de novas teorias, métodos de avaliação, bem como novas funções para os avaliadores. f) Idade da Profissionalização (1973-1983) – o campo da avaliação começa a

consolidar-se e surge uma rutura entre as abordagens positivistas/quantitativas e as abordagens qualitativas, o que implicou mudanças na prática da avaliação. g) Idade da Expansão e Integração (1983-2000) – caracterizada por um aumento de

atividade no desenvolvimento e na utilização de normas de avaliação.

Assim, sob o ponto de vista destes autores, e durante o decurso pelos quais o conceito de avaliação se transmutou, assistiu-se a um aumento da complexidade a nível

conceptual e técnico do constructo de avaliação, com vista a uma melhoria da aprendizagem, do ensino e da qualidade de vida da sociedade em geral. São visíveis, ao longo destes períodos, mudanças factuais no papel do próprio avaliador, na forma como este avalia e se relaciona com o avaliado e na forma como responde às questões éticas inerentes ao processo avaliativo.

Guba e Lincoln (1989) afirmaram que, neste processo evolutivo, a avaliação foi marcada por “quatro gerações diferentes” (cf. Quadro 1) que se distinguem em função dos contextos social, histórico, político e educativo, apresentando uma mudança progressiva na aceção do conceito em si, desde o século XIX até aos nossos dias.

Quadro 1

Quatro Gerações da Avaliação

Gerações Finalidades Papel do

avaliador Contexto histórico

Geração da

medida

Medir Técnico

Emergência das ciências sociais, aplicação do método

científico aos fenómenos humanos e sociais Geração da descrição Descrever resultados relativamente a objetivos

Narrador Emergência da avaliação de programas Geração do julgamento Julgar mérito ou valor Juiz Reconhecimento de que a avaliação tem duas faces: descrição e julgamento Geração da negociação Chegar a discursos consensuais Orquestrador de uma negociação Influência do paradigma construtivista Adaptado de Guba e Lincoln (1989)

Sob este prisma, a avaliação é vista por Guba e Lincoln (1989, pp. 253-256) da seguinte forma:

a) É um processo sociopolítico, na medida em que se deve considerar que os fatores sociais, políticos e culturais são inerentes ao processo avaliativo e constituem um elemento fundamental para a compreensão dos atos humanos e sem os quais a avaliação corre o risco de se tornar incipiente, inútil e sem significado.

b) É um processo colaborativo, na medida em que todos os stakeholders (os interessados) devem participar para que os objetivos de avaliação sejam atingidos plenamente, através de consensos e de negociações relativamente aos pontos de acordo.

c) É um processo de ensino-aprendizagem, já que o avaliador e os avaliados são elementos importantes que se ensinam mutuamente ao longo de todo o processo, clarificando cada um, as construções dos outros. Este é talvez o principal aspeto de mudança por comparação com as gerações anteriores.

d) É um processo contínuo, recursivo e altamente divergente, pelo que é infinito e inacabado, já que todos os produtos da avaliação não representam a verdade, mas apenas uma perspetiva informada sobre essa verdade, por isso, suscetível de revisões, modificações e substituições.

e) É um processo emergente, logo radicado no contexto específico de cada realidade em função de um conjunto contingente e imprevisível de fatores que só podem ser considerados a posteriori.

f) É um processo com resultados imprevisíveis, múltiplos e até mesmo contraditórios, que não podem ser previstos de forma determinista.

g) Por fim, a avaliação é um processo que cria a realidade colocando de lado as conceções “essencialistas”. A avaliação é aqui tida como uma (re)construção da própria realidade, uma criação em que os participantes colaboram, negoceiam e debatem as suas diferentes perspetivas.

Assinalamos, assim, que, com a evolução do conceito de avaliação, facilmente se assume a ideia de que não existe uma única e correta forma de o definir, uma vez que este acaba por derivar de construções mentais humanas, que lhe conferem um caráter ontológico indiscutível (Guba & Lincoln, 1989).

Por outro lado, a revisão dos diversos trabalhos sobre a temática da avaliação não esclarece se foi a massificação do uso da palavra “avaliação” que levou à “banalização” do conceito, acabando por exigir um “distanciamento” necessário para que se fale muito de algo que se julga conhecer quando, na realidade, a sua abrangência e complexidade apenas impedem um conhecimento mais perfeito. Sem dúvida que, desde os primórdios, os seres humanos foram ou estiveram perante situações em que era necessário determinar o “valor das coisas” (Popham, 1975), envolvendo-se, assim, diariamente, em vários atos avaliativos. Estes atos, incrustados na atividade humana, podem “cegar” as pessoas ao ponto de as fazer pensar que avaliar é fácil, intuitivo e se encontra ao alcance de qualquer um. Mas tal não acontece. Não restam dúvidas de que o processo avaliativo é um fenómeno complexo e

que, quanto mais conscientemente for realizado, mais dúvidas deixa a quem o realiza (Ventura, 2006, p. 208).

Afinal, como poderemos definir a avaliação?

O sentido e a polissemia da avaliação são percecionados de formas diversas pelos vários autores, sendo que há aqueles que se preocuparam em distinguir a avaliação de outros conceitos correlativos, como o de “medida” e de “investigação” (e.g., Guba & Lincoln, 1989; Rowntree, 1987); outros definem a avaliação como um processo de recolha de informações relacionado com determinados critérios ou padrões, culminando na determinação de um juízo de valor (Barbier, 1990), fazendo emergir o conceito de julgamento na avaliação (Nevo, 1997), e outros colocam a ênfase no conceito de tomada de decisão (De Ketele, Chastrette, Cros, Mettelin, & Thomas, 1988).

Na sua existência, a avaliação é um processo sociopolítico, colaborativo, de ensino- aprendizagem, contínuo, emergente, com resultados imprevisíveis e que cria a realidade colocando de lado as conceções “essencialistas” (Guba & Lincoln, 1989).

Talvez por isso a definição de avaliação se constitui como um conceito não “acabado”, nem “exacto”, na medida em que estamos constantemente a avaliar e a interpretar. Portanto, para Hadji, avaliar é “um acto de leitura de uma realidade observável, que se realiza com uma grelha predeterminada, e leva a procurar no seio dessa realidade, os sinais que dão testemunho da presença dos traços desejados” (1994, pp. 29-31).

No âmbito mais preciso da ADD, Simões (2002) define-a como uma “avaliação sistemática do desempenho do professor e/ou das qualificações relacionadas com a precisa função profissional do professor e a missão da área escolar” (p. 10) e, no contexto específico de educação, Hadji (1995, pp. 28-29) propõe a existência de quatro dimensões essenciais:

A ação de avaliar é “um acto de julgamento”, uma valoração, com um determinado fim e em que o avaliador se manifesta sobre o “sucesso ou fracasso” do projeto;

“Implica um duplo trabalho de modelização”, i.e., o avaliador tem de construir um referente, que deve ser composto por um conjunto de expectativas a ter em conta e a esperar do objeto avaliado, podendo constituir um referido, assinalando os aspetos observáveis no objeto;

A avaliação serve para preparar e explicar a “tomada de uma decisão de acção”, com vista a melhorar as ações posteriores;

A avaliação “constitui um acto de comunicação social”. O avaliador comunica aos atores sociais as respostas às questões colocadas.

Por estes motivos, o autor refere que avaliar é muito mais do que descrever ou julgar, pois é necessário para se tomar uma decisão e destiná-la a alguém. Acrescenta ainda que a noção de avaliação não pode nem deve ser dissociada das suas funções e a função não pode ser dissociada do objeto que está a ser avaliado.

Nesta sequência de ideias, Figari (1996, p. 33),na esteira de Cardinet (1986), aduz que a avaliação se constitui como um “processo de observação e de interpretação dos efeitos do ensino, que visa orientar as decisões necessárias ao bom funcionamento da escola”, pelo que deve privilegiar uma reflexão das possibilidades de melhoria, de forma a transformar as diversas problemáticas em proveito de uma sociedade melhor e mais justa, através de um “referencial”6. Nesse sentido, Figari, tal como Hadji (1994, 1995) tinha assinalado, assume que a avaliação coloca em confronto dois tipos de dados: o referido7 e o referente8, tendo em conta a referencialização9.

Na procura de uma definição para o conceito de avaliação, constatamos que existe uma parca unanimidade na sua conceptualização. O seu conceito, bem como as práticas relacionadas com os diversos sentidos que tem vindo a assumir (nomeadamente, de avaliação como medida, como descrição de resultados face a objetivos, como emissão de um juízo de valor ou como o resultado consensual de um processo de negociações), têm sofrido uma evolução ao longo dos tempos (Sanches, 2008).

Assumindo as várias perspetivas propostas pelos diversos autores apresentados, podemos inferir que os olhares sobre a avaliação incidem, particularmente, nas

6

Modelo geral preexistente. 7

Referido (é o aluno, o professor real …): o que é constatável ou apreensível através do referente. É o conjunto de elementos observáveis considerados representativos do objeto. Aquilo que do objeto é registado através de grelhas de leitura.

8

Referente (é o aluno, o professor ideal…): conjunto de normas ou critérios que servem de grelha de leitura do objeto a avaliar. É um modelo que estipula o desejado, o esperado, o ideal. Desempenha um papel instrumental na produção de um juízo de valor.

9

Que consiste em assinalar um contexto e em construir, fundamentando-o com os dados, um corpo de referências relativo a um objeto (ou situação), em relação ao qual poderão ser estabelecidos diagnósticos, projetos de formação e avaliações. Pretende ser um método de delimitação de um conjunto de referentes e nisso se distingue do referencial que, por sua vez, designa um produto acabado e, mais exatamente, uma formulação momentânea da referencialização (Figari, 1996, p. 52).

transformações conceptuais de que esta temática tem sido alvo ao longo do tempo. Autores como Scriven (1991, 1994), Stake (2006) e Stufflebeam e Shinkfield (2007), sugerem que a avaliação é uma disciplina recente e que possui diversos domínios práticos de aplicação. Scriven (1994), por exemplo, designa de Big Six os seguintes domínios da avaliação: Avaliação de Programas, de Pessoal, de Desempenho, de Produtos, de Propostas e de Políticas. O mesmo autor, admite também a existência de uma Meta-Avaliação e de uma Avaliação Intradisciplinar, assim como, uma Avaliação do Currículo ou Ética Médica. Nesta linha de pensamento, a avaliação dos professores integra aquilo que Scriven descreve como sendo a Avaliação de Pessoal.

No fundo e tal como Fernandes (2008) advoga, a avaliação constitui-se como uma construção social de natureza complexa, que envolve pessoas numa interação em contextos particulares, detentoras de práticas e políticas próprias que envolvem a natureza daquilo que está a ser avaliado com objetivos lógicos e particulares. Assim sendo, o autor advoga que qualquer que seja a perspetiva (teórica ou filosófica), as avaliações atuais dificilmente conseguem contornar questões sociais, políticas e éticas que caraterizam o uso da avaliação, a participação dos diversos atores e seus potenciais utilizadores.

De facto, como “disciplina recente”, é necessário, no dizer de Fernandes (2008), que a mesma possa ser credibilizada e esta credibilização apenas é conseguida através do estabelecimento de ligações necessárias entre todos os domínios práticos, para que os mesmos possam ser articulados e para que possam ser desenvolvidos cenários (conceitos e linguagens) comuns, bem como todo o tipo de mecanismos e de procedimentos característicos do campo científico.

Por contraponto a este pensamento da necessidade de acolher a avaliação como uma disciplina científica, há autores que defendem exatamente o contrário (e.g., Guba & Lincoln, 1989; Scriven, 2003), ancorando-se no pressuposto de que a ciência não pode admitir juízos de valor. Na verdade, a produção científica, qualquer que seja o seu domínio, está sempre associada a alguma forma de avaliação, quer seja na apreciação mais ou menos crítica que se faz da literatura, da investigação existente ou de uma dada abordagem metodológica (Fernandes, 2009).

A questão central que se operacionaliza em torno da definição do conceito de avaliação está associada à complexidade de fundamentar e apoiar cientificamente os seus valores sociais e políticos; no entanto, “dado o seu caráter multifacetado e o seu vasto

campo de atuação, torna-se urgente refletir e compreender o termo, o respetivo significado e a importância da avaliação para melhor constituí-la enquanto ferramenta de análise e instrumento de aplicação” (Stufflebeam & Shinkfield, 2007, p. 4).