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3 A ZONA DE CONTATO CONHECIMENTO CIENTÍFICO X SABER TRADICIONAL

3.4 BIOPROSPECÇÃO E BIOPIRATARIA

Para esclarecer esse fato, interessa aqui apresentar, na forma de um embate, dois conceitos que se propõem esclarecer o modo como se dá a dinâmica de apropriação do conhecimento tradicional na sociedade capitalista, a saber: bioprospecção e biopirataria.

Segundo Laird (1995:2), bioprospecção é:

[...] a exploração da biodiversidade para a descoberta de recursos genéticos e bioquímicos de valor comercial. Tipicamente, amostras de organismos são coletadas em países que são ricos em biodiversidade, mas financeiramente pobres, e despachadas para avaliação em laboratórios de países industrializados. O conhecimento local pode ser usado para guiar essa pesquisa, por exemplo, tendo em vista os usos tradicionais das plantas como medicamentos.

De maneira análoga, porém mais concisa, para RAFI (1999), bioprospecção seria a exploração, extração e avaliação da biodiversidade e do conhecimento tradicional para obtenção de recursos genéticos e bioquímicos comercialmente valoráveis.

Idealmente a bioprospecção seria um processo que se inicia com o recurso genético e o saber tradicional e termina com a geração de um novo fármaco para o mercado. No entanto, uma série de atividades está envolvida neste processo, destacando-se: a coleção e identificação de amostras biológicas, extração e exame das amostras biológicas, isolamento e determinação da estrutura dos compostos com ação farmacológica, pesquisas pré-clínicas e testes em animais, análises clínicas e o desenvolvimento do medicamento em escala industrial. (AYLWARD, 1996; BALICK e outros,1996).

Para Shiva (2007), a bioprospecção seria um termo criado em resposta à problemática relação entre os interesses comerciais globais e os recursos genéticos e saber tradicional de comunidades locais. A autora também remarca que a visão da bioprospecção, como a exploração comercial da biodiversidade e saber tradicional potencialmente lucrativos desconsidera que esses elementos são a base de culturas e economias vivas, uma vez que nesse contexto “a biodiversidade e a diversidade cultural conservam-se mutuamente”. (SHIVA, 2007, p.307).

Uma outra crítica é de que o termo evocaria práticas de prospecção mineral para explicar o processo de desenvolvimento de fármacos, o que implica em assumir erroneamente que, antes da prospecção, estes recursos e saberes jaziam enterrados, escondidos, desconhecidos, sem uso ou valor. “a metáfora da bioprospecção esconde os usos e saberes prévios, bem como os direitos associados a estes recursos”. (SHIVA, 2007, p. 310). Nesse sentido, para a autora, a bioprospecção seria uma mera forma sofisticada de biopirataria, uma maneira “camuflada” de descrever esse mesmo processo.

Já o termo biopirataria, segundo Dutfield (2000), foi cunhado originalmente pelo então grupo de advocacia norte-americano Rural Advancement Foundation International, hoje conhecido como ETC Group, como parte de uma estratégia de contra-ataque pelos países do Sul que estavam, naquela ocasião, sendo acusados de “pirataria intelectual” em alguns setores industriais.

Para Shiva (2001, p.27), a biopirataria poderia ser entendida como a segunda chegada de Colombo. Explica-se:

[...] quinhentos anos atrás bastava ser uma cultura não-cristã para perder quaisquer posses e direitos. Quinhentos anos depois de Colombo, basta ser de uma cultura não-ocidental com uma visão de mundo característica e sistemas de conhecimento diverso para perder quaisquer posses e direitos. A humanidade dos outros foi anulada bem como os seus intelectos estão sendo

anulados agora. Territórios conquistados foram tratados como despovoados nas patentes dos séculos XV e XVI, pessoas foram naturalizadas como “nossos súditos”. Na seqüência dessa conquista por meio da naturalização, a biodiversidade é definida como natureza – as contribuições culturais e intelectuais dos sistemas de conhecimento não-ocidentais são sistematicamente apagadas. As patentes de hoje possuem uma continuidade com aquelas concedidas a Colombo, Sir John Cabot, Sir Humphrey Gilbert e Sir Walter Raleigh. Os conflitos desencadeados pelo tratado do GATT, pelo patenteamento de formas de vida e conhecimentos indígenas estão assentados em processos que podem ser resumidos e simbolizados como a segunda chegada de Colombo.

Ao apresentar a biopirataria como uma reedição do colonialismo através do processo de apropriação indébita do conhecimento tradicional, tratado como res nullius pelas grandes empresas multinacionais, Shiva busca enfatizar o que seria uma nova forma do Capital invadir as “colônias” e dar continuidade ao seu processo de acumulação, renovando-se em uma nova forma de pacto colonial.

Entretanto, não nos cabe aqui o estabelecimento de um julgamento moral da história, o que seria certamente maniqueísta e ingênuo, mas apresentar um contexto para uma análise historicizada do atual fenômeno da apropriação indébita do saber tradicional.

A par da definição apresentada por Shiva, é necessário destacar, à guisa de comparação, a definição de biopirataria dada pela RAFI (1999, p.1):

Biopirataria é o uso da propriedade intelectual para legitimar o controle exclusivo dos recursos biológicos, genéticos e do conhecimento tradicional associado sem reconhecer, recompensar ou proteger, os direitos dos inovadores informais (comunidades tradicionais), e sem atender as condições legais para acesso aos recursos da biodiversidade e conhecimento tradicional associado.

Apesar de seu cunho mais legalista, credita-se uma maior precisão a esta última definição em decorrência da maior ênfase dada ao papel da propriedade intelectual no processo de apropriação indébita de conhecimento tradicional.

Já Mgbeoji (2006) ressalta a existência de três aspectos correlatos que se reforçam na constituição da biopirataria. O primeiro seria o aspecto sociocultural, que refletiria a negação e a desvalorização da contribuição intelectual das populações tradicionais, seja na conservação da biodiversidade, seja na proteção do saber tradicional. Nesse aspecto, “o modo de conhecer dessas populações seria inerentemente inferior ao europeu, e, porta nto, suas inovações são vistas como não científicas”. (MGBEOJI 2006, p.87).

nesse contexto não teriam o reconhecimento devido, sendo vistos como “conhecimento popular”, “germoplasma selvagem” ou mero e insumo industrial.

Em segundo lugar, seria a continuidade da ação predatória de alguns jardins botânicos, bancos de germoplasma, empresas e outros centros de pesquisa públicos que continuam a demandar esses saberes e materiais biológicos a partir da premissa de patrimônio comum da humanidade, relocando-os sem a autorização ou compensação devidas. Em terceiro lugar, destacar-se-ia o uso da propriedade intelectual, como uma tentativa de legitimar a biopirataria, uma vez que ultimamente, poder-se-ia observar uma crescente redução e até negligência dos critérios de patenteabilidade visando o deliberado facilitamento e legitimação da apropriação desses recursos e saberes. (MGBEOJI, 2006).

Certamente, não há maneira segura de se atestar quanta biopirataria ocorre efetivamente e, apesar de os porta-vozes da indústria relutarem em admitir que o processo de “transferência tecnológica reversa” Khor (2002), característico da biopirataria, não existe o fato concreto de que as denúncias e acusações de ações de biopirataria em nível mundial só fazem aumentar. (RAFI 1999; WRI, 1994; SHIVA, 2001, 2002 e 2007; SANTOS, 1997; OMC, 2002; BUYDENS, 1999; COELHO, 1997; KHOR, 2002; REZENDE e RIBEIRO, 2001; DELGADO, 2002; MGBEOJI, 2006; PANTOJA e TAPAJÓS 2007).

Ao se examinar com minúcia as definições de bioprospecção e biopirataria citadas acima, o leitor mais atento pode constatar que existe, entre elas, uma grande sobreposição na descrição do processo de apropriação indébita do conhecimento tradicional. Daí pergunta -se qual a razão da apresentação dessas definições na forma de embate?

Nesse sentido, mais do que meras designações, os nomes biopirataria e bioprospecção tomaram, ao longo do tempo, cada qual, conotações e filiações político-ideológicas opostas na academia.

Mais precisamente, pode-se afirmar que o termo biopirataria ganhou corpo e um sentido de luta e enfrentamento contra a reedição perversa do pacto colonial. Desse modo, mais do que buscar revelar, o enfoque mercantilista dos termos legais apresentados pela Convenção da Diversidade Biológica, ao ganhar espaço na mídia e um certo respaldo popular, a biopirataria configura-se como um discurso de reivindicação dos direitos que têm sido historicamente negados às populações tradicionais e povos indígenas do Brasil, bem como de conscientização

do fato de que o conhecimento tradicional é tanto um processo, em seu caráter dinâmico, quanto uma forma de riqueza social e comercial.

Já a idéia da bioprospecção partiria de uma visão contratualista e apolítica, segundo a qual, resumidamente, dever-se-ia vender a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais para salvá-los. Desse modo, juntamente com a efetivação de uma normatização para o acesso e uso de conhecimentos tradicionais e recursos genéticos, bem como da chamada repartição de benefícios, a natureza e a cultura dessas populações seria “preservada” através de sua mercantilização. (MacAFEE, 1999; DELGADO, 2002).

Seguindo o raciocínio apresentado pelos seus expoentes tais como Swanson (1995) e Ten Kate e outros (2003), o desenvolvimento das comunidades seria alcançado gradualmente, através da completa apropriação desses recursos por parte da iniciativa privada, com o uso de instrumentos de propriedade intelectual, tais como patentes, marcas, denominações geográficas e outros instrumentos sui generis, transformando o valor de uso do conhecimento tradicional para essas populações em valor de troca para o mercado.

Cabe alertar aqui que o uso da denominação bioprospecção nesse estudo reflete também o maior alcance que este encontra na academia, sem dúvida que, ao relembrar que o foco desse trabalho é a apropriação indébita de conhecimento tradicional, o uso do termo etnobioprospecção seria a priori mais preciso, pois permitiria discriminar o processo de bioprospecção que parte, especificamente, do uso de conhecimento tradicional. (BANDEIRA, 2004).

Nesse sentido, vale acrescentar nessa discussão, mais um acrônimo que surgiu recentemente com o intento de precisar melhor a problemática da apropriação indébita do saber tradicional; o conceito de biogrilagem (CARVALHO, 2003), que tem sido usado nos debates da Organização Mundial da Propriedade Intelectual com objetivo de relevar o fato de que, usualmente, não ocorre um roubo de conhecimento tradicional, mas sim uma apropriação indébita.

Em termos advocatícios, o que se busca ressaltar com o uso desse termo é que não haveria uma pirataria no sentido estrito, pois esse termo implicaria em uma ação de roubo, mas sim uma grilagem, ou seja, a apropriação indébita do conhecimento tradicional mediante o uso de pedidos de propriedade intelectual ilegítimos.

ressaltar, paradoxalmente, entende-se que para os fins desse trabalho, o uso dessa atualização conceitual seria um retrocesso em termos analíticos. Explica-se: dada à relativa consagração pelo uso do termo bioprospecção, o uso do neologismo implicaria em uma maior dificuldade na comunicação da problemática estudada.

Feitas essas reservas, acredita-se que o uso do termo bioprospecção, apesar de mais genérico, reflete de modo suficientemente preciso para os fins desse trabalho, a concepção dos países do Norte acerca do processo de apropriação indébita de conhecimento tradicional.

Nesse sentido, pode-se retomar o embate conceitual, afirmando-se que, para os propósitos desse estudo, a idéia bioprospecção pode ser entendida como uma leitura que faz alusão ao modo como os países do Norte atuam face aos sistemas locais de conhecimento. Em contraposição, a concepção de biopirataria ilustraria a perspectiva dos países do Sul frente à problemática da apropriação indébita de conhecimento tradicional e a imposição de um modelo de desenvolvimento iníquo e insustentável.

Em um arrebate histórico, guardando-se as devidas ressalvas contextuais, poder-se-ia comparar o choque dessas duas leituras da questão analisada, com o choque ou desencontro que criou a alteridade colonizado x colonizador na ocasião do achamento do Brasil.

Sem dúvida, essa analogia remete-nos ao próprio conceito de biopirataria de Shiva (2001:27) que compara a apropriação indébita de conhecimento tradicional à segunda chegada de Colombo na América. Essa visão é corroborada por Santos (2004) que, ao analisar a relação conflituosa entre os interesses que dirigem a produção do conhecimento científico frente aos detentores de conhecimento tradicional, afirma que se o colonialismo acabou, a “colonialidade” como uma forma de poder que nega os saberes locais, ainda persiste.

Acredita-se que é do embate desses conceitos, oriundos de concepções de mundo tão distintas e até mesmo opostas, que este trabalho poderá compreender a interface dos sistemas locais de conhecimento com o conhecimento científico.

Em outras palavras, a problemática caracterizada pela questão da biopirataria e bioprospecção seria o momento, o ponto de articulação, a zona de contato que permite analisar de modo detalhado a dinâmica da relação entre conhecimento tradicional e científico. Acredita-se que, somente através do estudo aprofundado dessa fronteira e do caso de biopirataria a ser tratado no capítulo 6, se

delinearão alguns pressupostos para uma análise crítica da gestão sustentável e eqüânime do conhecimento tradicional.

Importa remarcar que, mais do que um embate semântico, a questão da biopirataria - bioprospecção traz enlevo para a discussão da apropriação indébita do conhecimento tradicional, na qual as formas de conhecimentos suprimidas significam, em última instância, grupos oprimidos.

O que esta perspectiva revela é uma concepção em que natureza e cultura devem ser preservadas através da sua comercialização priorizando-se o valor de troca sobre o valor de uso cotidiano desse saber. Em um quadro mais amplo, isso leva-nos a um dos pontos mais críticos da crise ambiental como um todo, que é a extensão das relações de mercado a setores da sociedade e a esferas da vida que ainda não se integraram à sociedade envolvente. Qual seria o efeito da extensão e radicalização destes princípios de mercado para as populações tradicionais? Ou como este processo afeta as múltiplas dimensões dos estilos de vida das populações tradicionais, até então, parcialmente excluídas dessa dinâmica? Como a própria Antropologia e as Etnociências vêm lidando com essa situação atualmente? Qual a sua implicação para agências de desenvolvimento, bioprospectores e movimentos sociais? Seria a “morte” do saber tradicional? Responder a tais perguntas é de crucial importância para entender o contexto atual da gestão do saber tradicional.

3.5 O SABER TRADICIONAL - CICLOS E INTERESSES NA SUA COMPREENSÃO