• Nenhum resultado encontrado

1.2 PRINCIPAIS CONCEITOS E TIPOLOGIAS DE ANÁLISE

1.2.3 Tipologias dos grupos de interesse envolvidos

Desde a CDB, a questão da gestão do saber tradicional e o próprio conceito de biodiversidade vêm ganhando importância e modificando a percepção da sociedade acerca da natureza.

O acesso a esta biodiversidade e saberes que até então, era entendido legalmente, como um regime aberto, ainda que regulado culturalmente por normas costumeiras nas populações, paulatinamente vem sendo modificado com a implementação de contratos e instituições que visam a sua regulamentação dentro

das normas previstas pela CDB.

A dinâmica política e diplomática que envolve a criação desse novo regime de acesso em níveis nacional e internacional é lenta, mas se pode notar que já houve o estabelecimento de grupos de interesse dispostos a negociar ou contrapor-se às determinações desse novo regime.

Para classificar e mapear inicialmente os diferentes interesses, este trabalho parte de uma tipologia desenvolvida por Escobar (1998). Segundo este autor, quatro diferentes grupos de interesse poderiam ser identificados na rede da biodiversidade e do saber tradicional:

- Globalcêntrica: Seria a visão da biodiversidade produzida pelas instituições dominantes, tais como o Banco Mundial e as principais ONGs ambientalistas do Norte (World Conservation Union, Nature Conservancy, World Resources Institute e World Wildlife Fund, entre outras) apoiadas pelos países do G8. Este grupo centra sua visão na gestão dos recursos naturais, oferecendo prescrições para conservação e uso sustentável em nível internacional, nacional e local. Sugere mecanismos apropriados para sua conservação, planejamento nacional da biodiversidade e o estabelecimento de mecanismos apropriados para a compensação e utilização econômica dos recursos da biodiversidade, mediante propriedade intelectual e outros direitos. Esta perspectiva assenta-se em visões dominantes da ciência, do capital e da gestão. A própria CDB ocuparia um lugar fundamental na divulgação dessa perspectiva e, embora se reconheça aqui um papel aos saberes tradicionais, este se baseia, antes de tudo, na prática da bioprospecção.

- Soberania: Apesar de existir grande variação entre os países do chamado Terceiro Mundo, esta seria a perspectiva de países geralmente pobres em capital, mas ricos em biodiversidade que buscariam negociar os termos dos tratados e as estratégias da biodiversidade, algumas vezes, coletivamente. Entretanto, dificilmente este grupo se contrapõe fundamentalmente ao grupo Globalcêntrico.

- Biodemocracia: Este grupo representa a perspectiva de ONGs progressistas, para as quais a posição do grupo Globalcêntrico representaria uma forma de bioimperialismo. Os simpatizantes dessa perspectiva enfatizam o controle local dos recursos naturais, a suspensão dos megaprojetos de desenvolvimento e subsídios para as atividades do capital que destroem a biodiversidade, o apoio às práticas baseadas na lógica da diversidade, a redefinição de produtividade e

eficiência e o reconhecimento da base cultural da diversidade biológica. Este grupo opõe-se ainda ao uso da biotecnologia como instrumento de manutenção da biodiversidade e à propriedade intelectual como ferramenta de proteção dos saberes tradicionais e recursos genéticos. Em contraposição, é proposta a defesa de direitos coletivos e a articulação do ativismo local em escala transnacional e global.

- Autonomia cultural: Esta perspectiva parte da crítica ao conceito de biodiversidade enquanto construção hegemônica. Busca construir uma estratégia política para defesa e reconquista de territórios, preservação cultural e da identidade, gerando uma política cultural mediada por considerações ecológicas que abre espaço para a configuração de táticas de desenvolvimento culturalmente apropriadas, opondo-se a tendências mais etnocêntricas. O interesse desse grupo não é apenas a defesa dos recursos ou da biodiversidade, mas sim a defesa de todo o projeto de vida dessas populações. Apesar de essa abordagem guardar semelhanças com o grupo da Biodemocracia, ela possui caracte rísticas próprias tanto em termos políticos quanto conceituais, pois muitas vezes, parte de um modelo cultural que apreende o natural de modo distinto, sem diferenciar nitidamente os seus aspectos biofísicos, humanos e supranaturais.

A escolha do emprego dessa tipologia deve-se ao fato dela ter sido criada a partir da discussão da própria questão do regime de acesso à biodiversidade. Acredita-se que conta em seu favor também o fato de que ela não parte exclusivamente de princípios ou critérios institucionais, locacionais ou governamentais, mas da organização de aspectos históricos, político-econômicos e discursivos expressos pelos diferentes grupos participantes do debate sobre a implementação deste regime de acesso.

Nesse contexto, entende-se que ela permita uma análise mais aprofundada, porque há um avanço na percepção dos objetivos e problemas de cada grupo mantendo-se as suas idiossincrasias e semelhanças.

A segunda tipologia a ser trabalhada neste estudo trata dos diferentes conceitos e definições do saber tradicional que permeiam o debate da sua gestão.

Sua importância reside no fato de que, para se avaliar a gestão do saber tradicional, deve-se tentar antes compreender como o próprio é conceituado pelos seus gestores, populações tradicionais, empresas, ONGs e demais grupos de interesse, afinal, ao assumir-se o desafio de informar e analisar sobre a gestão do saber tradicional, ficam implícitos superar o desafio de compreender e categorizar os

seus diferentes usos e denominações.

Posto de outro modo, o fator complicador a ser superado por esta categorização é que para se avaliar as diferentes perspectivas de gestão do saber tradicional, é necessário apreender antes as suas distintas definições.

Newing (2005) sugere a seguinte tipologia, modificada por este autor: -Saber tradicional como mercadoria: O saber tradicional consistiria de itens discretos de conhecimento que podem ser gravados, em formas abstratas e usados na geração de hipóteses sobre o valor comercial de diferentes recursos biológicos. Por exemplo, se curadores tradicionais usam determinada planta para curar malária, esta informação pode levar ao desenvolvimento de uma nova droga antimalária para distribuição comercial. A ênfase prática desta abordagem está na documentação do conhecimento e nos mecanismos relacionados à propriedade intelectual, incluindo-se o consentimento prévio informado, patentes e acordos de repartição de benefícios.

-Saber tradicional como componente técnico do manejo ambiental sustentável: O saber tradicional consistiria de itens discretos que podem prover informações e contribuições para sistemas de manejo ambiental convencional. Por exemplo, populações detentoras de conhecimento podem informar pesquisadores e gestores ambientais sobre as condições em que certas espécies de árvores tendem a ocorrer, sobre movimentos sazonais de diferentes espécies de peixes ou sobre a etologia de diversos tipos de mamíferos. Este tipo de conhecimento também está sujeito, em certa medida, à abstração e à descontextualização, uma vez que está intimamente ligado a um ecossistema específico. Na prática, esta perspectiva está associada a pesquisas exploratórias para uso em gestão ambiental, baseada em abordagens técnicas convencionais conduzidas por pessoas estranhas à comunidade.

-Saber tradicional como sistemas de conhecimento: Em seu sentido mais amplo, o saber tradicional constitui-se um sistema complexo e dinâmico de conhecimento regulado por sistemas tradicionais de autoridade e organização social. Estes sistemas determinam direitos costumeiros acerca do território e uso dos recursos, observam o uso e manejo diário dos recursos e delimitam os processos de transmissão e inovação desse saber. O saber tradicional abstrato é apenas uma parte deste, assim como o conhecimento abstrato é apenas uma parte do manejo ambiental convencional. Os sistemas de saber tradicional são sistemas voltados

para o funcionamento de uma gestão ambiental proativa; e, neste sentido, ele é inseparável da questão dos direitos de populações tradicionais e povos indíg enas.

-Saber tradicional como ferramenta política: Nesta perspectiva, o saber tradicional é entendido como um elemento eminentemente discursivo empregado pelas populações tradicionais e povos indígenas visando à reconquista e à demarcação de territórios e à recompensa financeira devida pelo emprego de seu conhecimento no processo de inovação tecnológica.

De maneira geral essa é a perspectiva das lideranças das populações tradicionais e povos indígenas, que visam basicamente a garantir o direito à autodeterminação, além de seus direitos costumeiros. (NEWING, 2005).

As tipologias descritas acima sobre definições de saber tradicional e grupos de interesse envolvidos na sua gestão serão integradas nesse estudo, dando origem a uma nova tipologia que engloba tanto a descrição do grupo de interesse quanto sua definição de saber tradicional.

A integração das tipologias será feita da seguinte maneira:

Quadro 1 - Tipologia dos grupos de interesse envolvidos no debate da gestão do saber tradicional e sua definição de saber tradicional correspondente.

Grupos de interesse Definição de saber tradicional correspondente - Globalcêntrica - Saber tradicional como mercadoria

- Soberania - Saber tradicional como componente técnico do manejo ambiental sustentável

- Biodemocracia - Saber tradicional como sistemas de conhecimento - Autonomia cultural - Saber tradicional como ferramenta política

Fonte: Elaboração própria a partir de tipologias criadas por Escobar (1998) e Newing (2004).

Espera-se que com esta integração das categorias de análise, as opiniões, representações e posições políticas dos entrevistados possam ser articuladas e analisadas de maneira coerente e integrada.

Acredita-se que esta nova tipologia permite obter maior clareza nas respostas de algumas questões- chave para esse trabalho como: O que seria a gestão do saber tradicional no Brasil a partir da Ecologia Política pós-colonialista

integrada com a sociologia das emergências de Boaventura de Sousa Santos? O que se aprende com esta leitura? Qual é o limite do seu escopo de análise? Como esta abordagem enriquece a atual compreensão do tema? Quais as questões e problemáticas, até então desconsideradas, que ganham relevância com o emprego desta abordagem? Quais os avanços para o debate da gestão do saber tradicional que esta abordagem nos remete?

Para se trabalhar e responder a essas questões buscou-se explorar a metodologia qualitativa, associada a alguns procedimentos quantitativos. Os passos realizados no levantamento de campo serão tratados adiante, no capítulo 2.