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3 A ZONA DE CONTATO CONHECIMENTO CIENTÍFICO X SABER TRADICIONAL

4.3 A CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE BIOLÓGICA

Ao se expor a contextualização do debate do marco legal-institucional internacional que visa a encapar as discussões entre o conhecimento tradicional e propriedade intelectual, destaca-se a importância da Convenção da Diversidade Biológica.

A discussão dessa temática vem ganhando espaço no arcabouço institucional da ONU desde que o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), foi estabelecido pela resolução 2.997 da sua Assembléia Geral, em 15 de dezembro de 1972.

No entanto, somente vinte anos depois é que uma convenção que abarcasse a questão do desenvolvimento sustentável num âmbito mundial, com o objetivo de tentar reverter o quadro de pressão excessiva sobre os recursos naturais e estabelecer responsabilidades políticas individuais e coletivas para as partes contratantes ganhou corpo e nome. (DIAS, 2001).

Por sua amplitude, a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) é o mais importante acordo multilateral em matéria de meio ambiente e desenvolvimento, contando hoje com mais de 170 países signatários.

A assinatura da CDB pelo Brasil aconteceu durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, de 5 a 14 de junho de 1992. Sua ratificação pelo Congresso Nacional se

deu em 3 de fevereiro de 1994, por meio do Decreto Legislativo no 2, publicado pelo Diário do Congresso Nacional, em 8 de fevereiro de 1994.

De modo geral, os principais mecanismos para implementação da CDB são a Conferência das Partes (COP), o Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico Técnico e Tecnológico (SBSTTA), o Mecanismo de Intermediação (Clearing House Mechanism), e o mecanismo financeiro exercido pelo Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environment Facility - GEF).

Os objetivos da CDB abrangem a conservação da biodiversidade, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. Além de buscar estabelecer parâmetros para a utilização sustentável dos recursos genéticos, a CDB faz colocações acerca da conservação in situ e ex situ desses recursos. Também vale citar alguns conceitos do preâmbulo da convenção, como a afirmação de que a biodiversidade tem valor intrínseco, ou seja, independente da sua utilidade para o homem, e que os Estados-nacionais têm direitos soberanos sobre os recursos biológicos dentro de seu território, rompendo com a idéia de que esses recursos seriam “patrimônio da humanidade”.

Com relação direta ao debate do conhecimento tradicional e dos benefícios que podem ser dele obtidos, existem dois programas de trabalho no âmbito da CDB. O Grupo de Trabalho do artigo 8 (j), que teve suas reuniões iniciadas em Sevilha, em março de 2000, e o Grupo de Trabalho sobre Acesso e Repartição de Benefícios, que teve sua primeira reunião realizada em Bonn, em outubro de 2001. Em virtude desse pouco tempo de existência, pode-se notar a atualidade desse debate em âmbito internacional.

Segundo a CDB, em seu Artigo 8, alínea (j), cada parte contratante deve,

[...] em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição justa e eqüitativa desse conhecimento inovações e práticas. (ESTADO DE SÃO PAULO, 1997, p.20).

O Artigo 8 trata da conservação in situ, isso suscita certo apoio às demandas de populações tradicionais e povos indígenas que são parte integrante dos ecossistemas. No entanto, segundo Posey e Dutfield (1996, p.104-105), para

sua efetiva implementação, o Artigo 8(j) requer, ao menos, a implementação das seguintes medidas:

- A demarcação definitiva das terras indígenas bem como a garantia da sua segurança;

- O apoio a iniciativas de desenvolvimento sustentável dos povos indígenas;

- O desenvolvimento de novas estratégias, para aplicação do saber tradicional e suas tecnologias derivadas em um contexto mais amplo;

- Apoio e fortalecimento das organizações indígenas, incluindo-se as locais, regionais, nacionais, alianças internacionais, conselhos, federações e uniões etc.;

- A criação de uma estrutura legal internacional, que desenvolva mecanismos para a proteção e a repartição justa de benefícios gerados a partir das inovações e práticas derivadas do saber tradicional.

Mesmo considerando-se as dificuldades, citadas acima, impostas para o cumprimento do Artigo 8, pode-se afirmar, de maneira geral, que a importância desse artigo está na institucionalização, na forma de um acordo internacional de caráter compromissivo, do reconhecimento do valor do conhecimento tradicional das populações tradicionais e indígenas.

Já no Artigo 15 da CDB, que trata do Acesso aos Recursos Genéticos, lê- se no parágrafo no 5: “O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por essa Parte”. (ESTA DO DE SÃO PAULO, 1997, p.24).

Em termos analíticos, pode-se afirmar que, apesar de a CDB constituir-se hoje um elemento-chave para o estabelecimento de uma base institucional para a proteção e uso sustentável dos recursos genéticos e conhecimento tradicional associado, ela não estabelece critérios ou parâmetros para proteção positiva dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos. (MITTELBACH, 2001, p.20).

De fato, essa proteção efetiva ou positiva, como Mittelbach (2001) coloca, não se ve rifica no arcabouço da CDB. E aparentemente nem é esse o seu objetivo, já que tal incumbência ficaria a cargo das instituições estatais competentes através

da implementação de suas respectivas legislações sui generis nacionais, porque a CDB centra seu foco hoje no estabelecimento das definições relevantes e na identificação de parâmetros que subsidiem o delineamento dos diferentes papéis e responsabilidades dos atores envolvidos e construção de capacitações, ou seja, os princípios e condições básicas para um sistema de consentimento prévio fundamentado em termos mutuamente acordados, esclarece os tipos de benefícios (monetários e não monetários) decorrentes dessa exploração bem como sua repartição. (PNUMA 2001, p.1).

Desse modo, o problema de ordem prática que se apresenta é que, apesar da CDB caracterizar-se como uma convenção-quadro, que estabelece princípios, metas e compromissos globais, criando uma moldura para as políticas de proteção da biodiversidade global, deixando a tomada de decisão para os seus signatários (ALBAGLI, 2001, p.8), ela não oferece mecanismos multilaterais para lidar com a conservação e uso sustentável da biodiversidade e conhecimentos associados. Ao contrário disso, segundo a RAFI (1994), a CDB tem uma atuação no sentido de promover acordos bilaterais -contratos comerciais e outros acordos para acesso da biodiversidade e conhecimento tradicional associado- por isso, desse modo, sua atuação seria falha enquanto instrumento capaz de prover um plano de ação baseado na colaboração entre seus signatários, principalmente entre os países do Sul.

Pode-se atestar a sanção da CDB para esses acordos ao se observar as freqüentes referências que seu texto faz à expressão “termos mutuamente acordados”, quando trata do acesso ao material genético em seu Artigo 15.4, e da necessidade de “consentimento prévio fundamentado, ou esclarecido” em seu Artigo 15.5.

Com relação à propriedade intelectual, a CDB coloca em seu Artigo 16, parágrafo 5o que

As Partes Contratantes, reconhecendo que patentes e outros direitos de propriedade intelectual podem influir na implementação desta Convenção, devem cooperar a esse respeito em conformidade com a legislação nacional e o direito internacional para garantir que esses direitos apóiem e não se oponham aos objetivos desta Convenção. (ESTADO DE SÃO PAULO, 1997, p.26).

Nesse sentido, a CDB não faz nenhuma oposição ao uso abusivo de mecanismos de proteção a propriedade intelectual, que caracterizam a biopirataria.

Ou seja, em contraponto ao Artigo 8.(j) que afirma, entre outros aspectos, a necessidade de proteção ao conhecimento tradicional, o Artigo 16 revela toda a dubiedade da CDB ao permitir interpretações de que a proteção do saber tradicional somente poderá ser efetivada desde que respeitadas as ações de apropriação ilegítimas através do emprego indevido da propriedade intelectual. Dessa forma, a CDB pode ser compreendida como uma extensão do acordo TRIPs, que regula internacionalmente a implementação e manutenção dos sistemas de propriedade intelectual.

Também é importante ressaltar que, em termos gerais, o capítulo 16 lida com o “acesso e transferência de tecnologia” e como ressaltam Posey e Dutfield (1996, p. 105):

[...] as tecnologias das populações tradicionais raramente são consideradas como sendo 'tecnologia' em parlatórios internacionais. Essa visão é parte de uma corrente mais ampla que tende a rebaixar, minimizar e ignorar o saber, as inovações e as práticas dos povos indígenas e populações internacionais. A CDB, entretanto, eleva estes saberes a uma categoria central (artigos 8.(j) e 18.4) como tecnologias relevantes para a preservação e uso sustentável da biodiversidade. Portanto, está claro que as 'tecnologias indígenas e tradicionais' estão incluídas como as demais tecnologias no Artigo 16.

Além de incorrer em uma visão reducionista do conhecimento tradicional, para a pesquisadora Kathy McAfee, (1999, p. 528), a CDB poderia ser caracterizada por conceber a natureza como uma mercadoria comercializável internacionalmente. Nesse sentido, três noções inter-relacionadas ocupariam uma posição de destaque e, juntas, refletiriam a influência do paradigma econômico global na Convenção. São as idéias de “recursos genéticos”, “benefícios da biodiversidade” e “propriedade intelectual”.

McAfee (1999, p.528), assim, se pronuncia:

O próprio conceito de recursos genéticos representa uma conquista discursiva do paradigma instrumentalista de curto-prazo. Ele reduz o significado da diversidade biológica a um sentido de mercadoria presumivelmente separável de suas relações complexas com outras “unidades” da natureza e valorável somente na medida em que é consumida. A noção de “repartição de benefícios” da biodiversidade, explicitamente ligada aos recursos genéticos no texto da CDB, prometida aos países do Sul e suas comunidades como um prêmio pela sua disposição em cumprir os instrumentos de propriedade intelectual de interesses comerciais forâneos, direciona a ênfase para os aspectos da natureza que podem ser removidos do seu contexto local, “desenvolvido” pelos meios da tecnologia industrial privada e vendidos lucrativamente nos

mercados internacionais.

Ainda afirma que:

Se, como o paradigma econômico global sugere, a valoração e as trocas baseadas no mercado fornecem um modo para uma alocação justa e eficiente dos “benefícios da biodiversidade” em termos mundiais, então as diferenças culturais, as desigualdades econômicas Norte - Sul, assentados - sem-terra e disputas sobre as autoridades dos Estados junto às comunidades indígenas e locais; tornam-se todas irrelevantes para o trabalho da gerência ambiental internacional pela CDB e outras instituições multilaterais. De fato, muito da atratividade do paradigma econômico global para os policy makers internacionais, reside no fato de que ele não dá enlevo às políticas e práticas ambientalmente destrutivas, tampouco aos seus atores e beneficiários, mas ao contrário, provê uma linguagem e um conjunto de conceitos para tornar a destruição da biodiversidade uma responsabilidade de abstrações como “falhas de mercado” e “falhas de políticas.

Apesar da ênfase contratualista da CDB e das críticas de que o seu fortalecimento implica em um esvaziamento da discussão das demandas das populações tradicionais em outros fora internacionais, como, por exemplo, na Comissão de Direitos Humanos da ONU, não se pode negar que o reconhecimento da contribuição das populações tradicionais e indígenas para a manutenção da diversidade biológica é um ganho político considerável. (POSEY, 1999, p.11).

Entretanto, à guisa de conclusão cabe comentar outras críticas feitas à CDB, que estão além do escopo desse estudo. Alguns autores como Harrop (2003, 2004) remarcam a posição de alguns setores conservacionistas de que a CDB seria, essencialmente, um acordo antropocêntrico, o que com efeito, deslocaria o ponto crucial da questão da extinção em massa de espécies de plantas e animais, para a questão do desenvolvimento.

Esse ponto é compatível com a análise empreendida aqui uma vez que, como se procura demonstrar, os principais grupos de interesse que atuaram no processo de criação da CDB não foram grupos conservacionistas, mas sim determinados consórcios de pesquisa em aliança com empresas de biotecnologia.

Já Howard (2003) remarca que, apesar de serem as mulheres as maiores contribuídoras para a gestão e promoção da biodiversidade em termos locais, muito pouco tem sido feito para potencializar essa atuação, afinal, apesar da CDB mencionar os direitos das mulheres e sua atuação no preâmbulo da convenção, nada foi incluído em seu texto definitivo.

TRIPs. Procurar-se-á mostrar, adiante, sua interação com a CDB, bem como seu impacto na implementação da legislação de propriedade intelectual no Brasil.

4.4 O ACORDO TRIPS – REFLEXOS EM RELAÇÃO À CDB E SEU IMPACTO