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3 A ZONA DE CONTATO CONHECIMENTO CIENTÍFICO X SABER TRADICIONAL

4.1 A CONSTITUIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Assim como a ciência, o direito tem sido considerado como uma condição natural, universal e eterna para o desenvolvimento.

Para Wickham (2002, apud Seini, 2003, p.157),

[...] as características do direito natural seriam: o seu status universal e imutável como um sistema de justiça e correção de erros para todos aqueles que desenvolvem e implementam as leis; de acordo com a sua associação com uma lei superior, divina, ela serviria de base para a determinação de leis ordinárias e morais; uma vez que ele é descoberta pela razão, acredita-se que ela sirva para separar os humanos dos demais humanos, e mais tarde, o Europeu do Outro.

O corolário dessa doutrina que possibilitou a apropriação legal dos territórios coloniais foi o conceito de terra nullius, que ponderava que terra não reivindicada por nenhum Estado soberano reconhecido pelos poderes coloniais, era passível de apropriação legítima. Isso estabeleceu uma nova dualidade entre nativos e conquistadores.

Nesse sentido, o Direito também se constitui como um índice de civilização das sociedades, marcando a transição das sociedades de um estado humano irracional para o racional, com o qual advogados, antropólogos e sociólogos poderiam distinguir entre o europeu “civilizado” e o outro “primitivo”. O efeito dessa

distinção seria possibilitar o uso e operação do Direito como uma ferramenta para opressão e controle das sociedades colonizadas. (Griffiths, 2002; apud, Seini, 2003, p.161).

Já em termos atuais, o direito de propriedade costuma ser posto ao lado do direito à liberdade, à igualdade e à segurança, constituindo-se, assim, o conjunto de direitos naturais sob os quais se assentam as bases da organização social. A liberdade, a igualdade e a segurança constituem-se direitos absolutos, intransferíveis, invioláveis e indiferenciáveis, extensivos a toda a sociedade – todo homem, enquanto partícipe de uma estrutura social, precisa ser livre, igual aos demais, em condições e oportunidades, e ter garantida a sua integridade física e moral.

Mesmo que, ao longo do tempo, estes direitos não venham sendo garantidos para todos, estes são tidos como inquestionáveis. A deficiência ou ausência de qualquer deles constitui anomalia social, violação da natureza humana. Entretanto, o direito de propriedade é diferente.

Por definição, a propriedade confere ao proprietário o direito de dispor do bem conforme seus desígnios. O fundamento é o Direito romano, que instituiu o direito de propriedade como o direito de usar e abusar da coisa, tanto quanto o admite a razão do direito.

Apesar de entender e tentar justificar o abuso como a posse absoluta e não o uso imponderado, o fato é que o proprietário pode achar-se no direito de fazer do seu objeto de posse o que bem entender, nos limites determinados em lei.

O direito de propriedade, para muitos autores, não é um direito natural, mas sim criado. Quer dizer que, ao contrário da liberdade, da igualdade e da segurança, a propriedade não é um direito absoluto, intransferível, inerente ao ser humano – a propriedade não compõe os direitos naturais, não é coletivo, mas de caráter privado. Como afirma Proudhon (1988), é um direito exterior à sociedade, individual e não social.

Grotius (apud PROUDHON, 1988, p.28.) afirma que, na origem, todas as coisas eram comuns e indivisas, constituindo patrimônio coletivo. As guerras, as conquistas, os tratados instituíram a propriedade e, assim, o homem saiu da igualdade original. É nesse sentido que se enfatiza que o direito de propriedade não é natural, mas adquirido; não deriva da constituição do homem, mas de suas ações.

o Código de Hamurabi, editado por Hamurabi, na Babilônia, em 1500 a.C.. Porém, é provável que a prática da propriedade privada tenha-se estabelecido desde períodos anteriores.

A propriedade, desde que estabelecida quando a posse e uso privados passaram a preponderar sobre o coletivo, passou a ser condição integrante da organização das atividades sociais e econômicas. Demsetz (1967) afirma ser papel do direito de propriedade fornecer à sociedade instrumental para ajudar os indivíduos a constituir expectativas para interagir uns com os outros.

Zylbersztajn (1994, p.15) afirma que “as transações que ocorrem na sociedade são apenas as manifestações visíveis de troca de direitos de propriedade entre os indivíduos, relativas aos bens transacionados”. E acrescenta que o direito de propriedade sobre um bem pode adquirir três formas distintas – o direito de uso, o direito de usofruto e o direito de abuso. Segundo ele, o direito de abuso refere-se à possibilidade de transformar e interferir na natureza, forma e conteúdo do bem.

Entretanto, retorna a questão do que é realmente o direito ao abuso, se o proprietário tem direito a dispor de um bem conforme seu interesse, mesmo que contrariando padrões socialmente aceitos. Proudhon (1998, p.41) indaga se pode o proprietário “deixar os frutos apodrecerem no pé, salgar seu campo, ordenhar suas vacas na areia, transformar uma vinha em deserto e uma horta em parque: tudo isso é ou não abuso?”. E mais, surge também a questão de como se estabelece o direito de propriedade, quais as bases sobre as quais se assenta, quais os critérios de controle e ordenação que definem se algo tem um proprietário específico e quem é este proprietário, quais os limites do seu poder sobre o bem – enfim, como se dá a apropriação e como isto interfere nas relações sociais.

Segundo Cícero (apud PROUDHON, p.32) “cada um tem direito tão somente àquilo que lhe basta; a cada um o que lhe pertence, que é não o que cada um pode possuir, mas sim o que tem o direito de possuir – o suficiente ao seu trabalho e consumo”.

Esta análise pode ser entendida como uma defesa do princípio da igualdade, até agora incompatível com o sistema capitalista, que é movido pela criação e acumulação de excedentes, pela apropriação por uma minoria decorrente da expropriação de uma maioria.

Neste contexto, não é possível estabelecer a cada um o quanto lhe baste; não é suficiente apenas a posse, que é um fato, não um direito, norteada pelo

trabalho, pelo uso produtivo, pela necessidade. Se é assim, acredita-se que seja necessário uma regulação mínima dessa fronteira, para que se estabeleça uma certa ordem que, mesmo não sendo a melhor, amenize os efeitos adversos decorrentes da distorção ou negação do direito de todos os seres humanos aos bens produzidos em sociedade.

Todavia, observa-se que, desde o Direito romano, pouco se tenha modificado, neste aspecto. O Código Civil francês, surgido com a revolução de 1789, em seu artigo 544, define a propriedade como “o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, tanto que não se faça delas um uso proibido por lei ou por regulamentos”. Aqui aparece a concepção do direito absoluto, que alguns autores insistem em afirmar não se tratar de absolutismo, mas de garantia da propriedade individual. E, no entanto, não há delimitações explícitas quanto aos esquemas de apropriação e uso dos bens. (PROUDHON, 1988).

Um dos aspectos essenciais do direito de propriedade para bens ordinários é que eles podem ser comprados ou vendidos. De acordo com o teorema de Coase, os recursos tenderiam a ser adquiridos por aqueles que poderiam melhor usá-los. Segundo Douglas e Thomas (1984), se uma pessoa possui bens ou direitos sobre os bens que têm mais valor para seus vizinhos, então há um preço em que os dois poderiam chegar a um acordo, mas tais acordos sempre gerariam um lucro originado pela transferência dos bens. Entretanto, este lucro pode não ser apropriado de forma eqüitativa pelas partes contratantes – uma pode adquirir vantagem sobre a outra.

Assim, retomando-se a discussão de Douglas e Thomas (1984) sobre o acordo entre dois vizinhos, um com mais poder sobre um bem do que o outro, os vizinhos pobres - que se encontram em comunidades do Sul - estariam em desvantagem, pois não têm dinheiro para pagar, e também têm maiores necessidades de uso dos recursos.

Analisando-se a história do uso de recursos, verifica-se que, já no século XIX, Marx havia debatido sobre o direito de certo grupo de camponeses na Alemanha que tinham sido excluídos do uso dos seus recursos. Para restituir o direito de uso aos camponeses, ele argumentou que a lei do costume e da tradição é uma lei natural e que não há nenhuma lei que possa se impor a ela. Conforme relato de Proudhon (1988), foi assim que se conseguiu restituir o direito daqueles camponeses.

Já em abordagens de cunho utilitarista, como em Jeremy Bentham e John Stuart Mill, defende-se que o direito de propriedade exclusivo como um incentivo para o aumento da produtividade e para proteger idéias e invenções. Argumenta-se que com a proteção desse direito, os proprietários poderiam competir em um mercado livre de intervenções governamentais.

Nestes termos, em que a igualdade não é uma constante, a ausência de aparatos legais eqüitativos, ponderados e justos, que considerem as várias formas de possessão, muitas delas legitimadas pelo tempo, pela cultura, pelo trabalho – como geralmente é o caso de populações tradicionais -, pode levar a situações de desapropriação e exclusão.

As discussões sobre direito de propriedade e a produção intelectual dos povos indígenas e populações tradicionais é uma questão delicada, permeada por controvérsias, pois colidem interesses privados e públicos e costumeiros. Em virtude da especificidade do ativo em questão, há um limite bastante tênue que divide os direitos costumeiros das populações tradicionais, a propriedade intelectual e o interesse geral da sociedade. Instala-se, desse modo, o conflito em torno da apropriação dos frutos do saber tradicional.

4.2 A CORRIDA PELO SABER TRADICIONAL NO CONTEXTO DA ECONOMIA