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UM RECORTE DA DISCUSSÃO CONTEMPORÂNEA DO MÉTODO CIENTÍFICO

Este estudo parte da concepção de que se vive-se em uma época de transição na história da ciência e da humanidade, pois surgem cada vez mais questionamentos acerca do papel que o ser humano exerce junto à natureza, à sociedade, à família e a si próprio. Tal quadro de desordem é referido por Santos (2000) como um desarranjo dos mapas cognitivos coletivos.

É a partir dessa premissa da época atual e da idéia de que “todo projeto sério de pesquisa contém em algum momento discussão do método” (DEMO, 2000, p.24) é que se procurará mostrar brevemente nesta seção uma discussão sobre o contexto contemporâneo da produção científica.

Apesar de suas múltiplas faces e das grandes variações internas, os princípios do atual paradigma da ciência moderna foram construídos, segundo Santos (2000), a partir de dois pilares: o da regulação e o da emancipação.

Cada um desses pilares estaria assentado sobre três princípios ou lógicas distintas: o pilar da regulação pelo princípio do Estado, formulado essencialmente por Hobbes, e que consistiria na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado; pelo princípio do mercado, desenvolvido, sobretudo, por Locke e Smith, que trata da obrigação política, horizontal individualista e antagônica entre os parceiros de mercado; e o princípio da comunidade, que domina toda a teoria social e política de Rosseau e que consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e entre associações.

Já o pilar emancipatório seria constituído pelas três racionalidades definidas por Weber: a racionalidade estética - expressiva das artes e da literatura, a racionalidade moral - prática da ética e do direito, e a cognitivo - instrumental da ciência e da tecnologia. (SANTOS, 2000).

seriam garantidos o bem-estar social, a ordem e a “harmonização de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça, autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade”. (SANTOS, 2000, p.50).

Foi nesse quadro que:

[...] a ciência moderna, através de uma sobredosagem de sua racionalidade regulatória cognitivo-instrumental sobre as demais, seria tomada como um discurso de legitimação da verdade e acabou por transformar o conhecimento emancipatório num estado de ignorância” (SANTOS, 2000, p. 35).

Uma das características do conhecimento-regulação é a separação do sujeito e do objeto de pesquisa no processo de produção do saber, trazendo a idéia de que o sujeito de pesquisa não tem ideologia ou história, e incutindo a proposição de neutralidade científica. Assim, um conhecimento objetivo e rigoroso não deveria ter interferências das qualidades propriamente humanas e o objeto de pesquisa estaria distanciado dele por essa lente “científica” capaz de revelar a verdade suprema através de postulados gerais, e incapaz de conceber o outro também como sujeito dentro de um processo de construção do saber.

Max Weber (1991, p.37), em seu estudo do contexto do surgimento do capitalismo e da moderna sociedade de massas, teorizava esta racionalidade cognitivo -instrumental da ciência do seguinte modo, “chamamos de racionalidade formal de uma gestão econômica o grau de cálculo tecnicamente possível e que ela realmente aplica”.

MacRae (1988, p.90), ao analisar a obra de Weber, comenta que a “vantagem da ação racional está em ganhar vantagens; no negócio de tentar atingir objetivos, é o mais eficiente de todos os recursos produzidos pela experiência histórica da humanidade”.

Essa definição de racionalidade que encara a razão humana de maneira fragmentada, maximizadora, utilitarista e/ou instrumental tem sido apropriada e empregada pela ciência dominante como uma característica imanente do corpo social. Nesse contexto, a racionalidade se resumiria no esforço empreendido na busca de prosperidade material, esta ndo desprovida de aspectos morais ou fraternos.

O reflexo dessa visão de mundo simplificadora na relação homem- natureza foi a construção de um mito de conquista da natureza que, ao gerar um

conhecimento baseado no rigor matemático quantificante, desqualificou os fenômenos que buscava caracterizar, parcelando-os em micro sistemas estanques e incompatíveis com uma noção de desenvolvimento das sociedades humanas de modo mais integrado ou respeitoso com a natureza.

Assim, para Santos (2000), o preço das promessas modernas cumpridas ou não começou a se impor, e os limites da capacidade de inclusão desse projeto científico dominante formaram uma parede, cujo desabamento depende, no âmbito da ciência, da criação de um modo de construção de saber que humanize e integre todos os atores sociais numa forma de conhecimento solidário e emancipatório.

É nesse quadro que se apresenta uma crise da ciência, que surge como decorrência dos próprios desenvolvimentos internos da ciência, tal qual a crescente disjunção entre modelização e previsão, que se pretende empregar modelos teóricos assentes em investigações empíricas conduzidas em laboratórios e outros ambientes controlados para prever eventos naturais e do mundo social.

A dificuldade posta aqui estaria em criar maneiras para lidar com situações e processos caracterizados pela complexidade e pela impossibilidade de se identificar e controlar todas as variáveis com influências sobre essas situações ou processos. (SANTOS, 2005).

Para Morin (2000, p.115), “O importante é a inadequação entre a coerência interna de um sistema de idéias aparentemente racional e a realidade à qual ele se aplica: a coerência lógica impede a adequação e a adequação impede a coerência lógica”.

Dentro desse quadro da atual discussão científica, surge o conceito de complexidade como sendo a impossibilidade de simplificar onde a desordem e a incerteza perturbam a vontade do conhecimento. O desafio a que ela se propõe é como reunir dentro de uma diversidade de contextos o parcial ao global; o um ao múltiplo; a organização àquilo que ela organiza; reunir a lógica àquilo que ultrapassa a lógica; a ordem, à desordem e à organização; o separado e o inseparável; o descontínuo e o contínuo; o indivíduo e a espécie.

O problema da complexidade não é substituir a separabilidade pela inseparabilidade, mas inseri-las uma na outra, e conceber o complexus, ou seja, aquilo que é tecido junto, restituindo às relações, as interdependências, as articulações, as solidariedades, as organizações, as totalidades (MORIN, 2000).

como um desafio a ser superado, e não como uma solução. Segundo Berthelot (2001) apud Andion (2007, p. 19),

[...] operar uma epistemologia sistêmico-complexa não significa tentar conciliar o inconciliável ou praticar um ecumenismo frouxo. Trata-se, antes, de buscar uma visão epistemológica distinta da tradicional, pautada em critérios como método, comprovação, rigor, explicação e divisão em disciplinas, isso se torna mais evidente no caso da investigação da problemática ambiental.

O emprego dessa abordagem requer uma contextualização que evite que a compreensão do fenômeno estudado se restrinja à compreensão de suas partes constituintes, de maneira que o recorte de pesquisa não “desnaturalize” o fragmento da realidade do contexto do qual foi abstraído. Para Andion (2007, p.20),

Isso requer a construção compartilhada de um marco conceitual de corte interdisciplinar que tenha como ponto de partida uma problemática precisamente definida e evite a armadilha representada pela manipulação de conceitos muito abstratos ou reducionistas.

A perspectiva epistemológica aqui considerada também busca desenvolver uma visão não dual do processo de conhecimento através do esforço de superação da tradicional distinção entre ciências sociais e naturais e também da própria visão tradicional da distinção entre natureza e cultura.

A própria definição de povos da biosfera, (MCNELLY, 1989, p.151), que reflete a dependência da população humana aos ecossistemas e demais espécies, exige um maior questionamento dessa dicotomia entre natureza e sociedade. Isso implicaria que na prática, “os estudos socioambientais devem levar em conta não apenas a lógica dos sistemas sociais, mas também aquela que preside a dinâmica dos sistemas ecológicos, mobilizando os conceitos de resiliência, co-evolução e capacidade adaptativa. (BERKES, e outros, 2003, apud ANDION, 2007, p.21).

Assim, para o desenvolvimento de uma ciência que promova o pilar emancipatório, faz-se necessária uma epistemologia que resgate um conhecimento e crie solidariedade ao invés de criar ordem, “reconhecendo o outro como igual sempre que a diferença lhe acarrete inferioridade e como diferente sempre que a igualdade lhe ponha em risco a identidade,” (SANTOS, 2000, p.246), e que traga em si as raízes emancipatórias de uma nova forma de sabedoria para a vida. É nessa perspectiva que este estudo pretendeu investigar a gestão do saber tradicional no Brasil.