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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

3. Capítulo 03 – O AREAL E OS ESPINHOS

Dormi na areia dos rios secos.

É comum, por ocasião das secas, os rios não perenes do sertão descobrirem- se, deixando aparecer em seu raso um areal completamente alvo e fino. Um areal de praia, a contrastar com o solo gretado e rugoso da caatinga, originando um refúgio, onde as crianças brincam, os tropeiros descansam; servindo até mesmo para o sono noturno, à descoberto, ou melhor, coberto ao léu das estrelas.

Circunvizinhos às margens destes rios, abrindo espaço no meio da vegetação morta, mantêm-se vivos, solitariamente, os espinhos dos mandacarus, quipás,

alastrados e rabos de raposa. Distanciando-se do conjunto homogêneo da

vegetação, esta botânica espinhosa forma pequenas clareiras nos locais donde

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A noção de diegese empregada refere-se ao campo especificamente fabular da narrativa. Ou seja, ao momento em que o leitor é de tal modo tomado pela história narrada que chega a perder-se de si e de seu tempo. Há, assim, no processo de assimilação receptiva da história uma suspensão do tempo real, numa total imersão do leitor neste referido tempo diegético, que pertenceria essencialmente a esta função fabular da narrativa. Seria o efeito de suspense – o ato de ser fisgado pela curiosidade da expectativa – um efeito ou causa desta suspensão de um tempo admitido como real?

brota. Seus espinhos grossos e compridos causam medo, distinguindo-se do de outras árvores - como os da jurema, que, menores, não possuem aquela áurea má e repulsiva-. O espinho alastrado, por exemplo, como uma cascavel de chocalho, parece sempre querer dizer: - Não se aproxime, sou perigoso!. Na lógica adulta e pragmática, porém, os cactáceos assumem valor por sua capacidade de vencer a seca, permanecendo como último recurso de sobrevivência das criações. É, por tal, que ao desmatar o caatingueiro para o plantio, tornando a terra “limpa”, o fazendeiro eficaz deixa sempre os mandacarus em pé, permanecendo vistos, aleatoriamente, em sua impávida imponência.

Qual o porquê da afinidade dessas árvores com os territórios semi- desérticos? Há a resposta evolucionária, adaptativa. Assim como as espinhosas correspondem ao espaço natural onde se inserem, o temperamento do sertanejo Paulo Honório parece nutrir-se de um espinho arquetipal, ferindo-o a carne por dentro, imputando-lhe a solidão da diferença entre os iguais.

A distância existente entre Paulo e o gênero humano faz com que ele identifique-se e sinta conforto na relação com o reino denominado de “animal” , ao qual nós teimamos em dizer não fazer parte. Parece estabelecer com os ditos irracionais um vínculo comunicativo, de alguma forma impossibilitado no trato com as pessoas. O fato é que as diferenças inter-pessoais são tão largas que chegam a desacreditar a própria categorização do humano enquanto gênero, desfazendo a certeza de um conjunto identitário denominado homo sapiens.

Seria o caso daqueles indivíduos que, mantendo alguma forma de isolamento social, sentem-se atraídos pela convivência com os bichos. Uma proximidade espiritual derivada do rompimento ou abandono dos liames culturais formativos, levando a uma espécie de regresso a manifestações que haviam sido neutralizadas pelos códigos culturais e deslocadas para a instância dos “subterrâneos instintivos”. No que concerne a um temperamento maquiavelicamente calculista como o de Paulo Honório – o do homem empreendedor -, a simpatia pelos animais dá-se na medida em que eles representam o auferir de lucro e riqueza, posta no âmbito de uma natureza prenhe de uma previsibilidade produtiva dependente tão somente do frio suor do esforço pessoal. Uma relação não permeada por uma “inter- incompreensão” de subjetividades, portanto, livre de desordens conturbadoras de sua primitiva finalidade. Outrossim, uma relação na qual o sentimento de aliança não

se dá como uma empatia “franciscana”, ou ecológica, já que dotada de outra intenção. Contudo, possuindo a mesma qualidade, pois assim como qualquer tipo de ermitagem, a fuga da gregariedade será sempre oriunda de uma sensação de desconforto no tocante a interação com outrem.

É importante ressaltar que os códigos culturais são propositadamente desdenhados no romance. As panorâmicas pinceladas dadas em tipos como o Gondim, João Nogueira e o Dr. Magalhães realçam a mesquinhez de uma formalidade moldada para “jogos de salão”. Aqueles representam um estrato social cujo conteúdo de informações atestaria a ocupação de um lugar hierárquico. Uma certa riqueza conteudística, no entanto, puramente decorativa, a denotar apenas um conhecimento da ordenação em que os dados devam ser combinados, uma gramática oca e esquelética. As vozes destes personagens parecem um ulular esvaziado de sentido, acrítico acerca dos signos recebidos mas não deglutidos. No romance, os homens das letras são retratados como portadores de um conhecimento simplesmente “útil”, permitindo-lhes ocupar lugares institucionalizados na esfera pública ou privada do poder: juízes, jornalistas, advogados. A relação social de Paulo Honório com estes não se baseia numa amizade, mas num companheirismo circunstancial, perfazendo-se enquanto durarem os interesses político-econômicos. Paulo gaba-se de ser mais “sabedor” que aqueles. E talvez realmente o seja, detentor de uma sabedoria tradicional contundentemente referida por expressões de cunho popular que costuma despejar na defesa de seus argumentos. É de outra natureza, porém, sua interação com o tosco Casimiro Lopes. Personagem de difícil visualização imaginativa: cabelos

emaranhados, testa estreita, maças enormes e beiços longos, mas certamente um

tipo fácil de encontrar nos dias de feira das inúmeras e parecidas vilas e cidadezinhas do interior nordestino. Sua tez pode ser para morena ou clara, de estatura média à alta, pisada firme, sem vacilações, como quem sabe onde quer chegar. Seguia Paulo Honório com uma fidelidade canina, num sentido de lealdade derivado de uma força moral inexpugnável. Paulo sentia-se à vontade em sua companhia, tornando-se mais propriamente ele mesmo, permitindo-se uma espontaneidade livre das canseiras da disfarçatez social. Vaqueiro atípico, bastava a Casimiro um breve sinal do patrão para fazer as vezes de jagunço exemplar. Entretanto, a esta coragem inabalável para a franca violência, opunha-se um temperamento passivo e até afetuoso, o qual se nota expresso no carinho com que

tratava o filho rejeitado de Paulo e Madalena. Mantinha uma calma, talvez apenas aparente, pois percebida em sua exterioridade como um enorme silencio, escamoteando um abismo de sentimentos não entendidos. O escasso domínio do significado das palavras estranhas prostrava-o no limite do universo ao qual pertencia: o da vida no campo. Uma ruralidade constituída por uma relação metonímica com os seres nela inseridos, dotando-o, por tal, do conhecimento carismático dos sinais físicos do mundo.

Se o linguajar emproado o confundia, não se enganava com o jeito das coisas.