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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

17. Capítulo 17 – A DIFERENÇA

O Casório aconteceu em fins de janeiro. Fortes chuvas o antecederam, e a natureza abraçou a cerimônia com um abraço úmido e esperançoso. Uma festa acalentada por águas correntes, o riacho cantava grosso, bancando rio... a

cascata enfeitava-se de espuma... a serra cachimbava; a fumaça aquosa, e os

queridos paus – d’arco, em acordo com a felicidade do povo do lugar, salpicavam a

correndo em direção ao açude. Não um som qualquer, mas uma música, definida por uma grave monofonia. Uma sonoridade forte, harmônica em intensidade e constância, qual um cantochão, ambientava a capela de São Bernardo: casamento e correnteza estavam de mãos dadas.

Concomitante ao elogio poético da natureza vem a descrição da acomodação física da nova família, de uma confortável simplicidade: o quarto dos recém-casados ficava do lado direito da casa e da nossa varanda avistávamos o algodoal, o

prado, a estrada; o quarto de D. Glória era no lado esquerdo da casa, por detrás do escritório, com janela para o muro da igreja.

Ou seja, a concha era ideal para uma fecunda lua-de-mel, e uma sólida vida familiar, porém, os solecismos não conseguiram ser evitados, a sintaxe dos dois não encaixava-se. A não coincidência da ordenação dos termos oracionais remetia no plano discursivo a uma zona de inter-incompreensão, a qual estendia-se à ética, às sensibilidades, às condutas. Enfim, eram irreconciliavelmente diferentes. O narrador, por alguma falta de motivação, não adentrou o terreno da, possível ou não, conjugação sexual do casal.

Outrossim, o diálogo travado entre eles neste capítulo encerra personalidades verdadeiramente antipodais. Paulo Honório, que antes da união sacramentada, só a conhecia pelo rosto e por algumas informações ligeiras, surpreende-se com a atitude expedita de Madalena em tomar iniciativas reformadoras das condições, segundo ela, de privação por qual passavam os moradores da fazenda.

Dado não claro na leitura é o das reais condições de vida dos trabalhadores de São Bernardo, os quais não são melhor relatados pelo narrador que neste momento da narrativa, não admite, ou reconhece, qualquer padrão exploratório nas relações com seus empregados. Neste ponto a situação do leitor fica delicada pois tocado de um lado pela sensibilidade social de Madalena, e por outro, pelo senso empresarial de Paulo Honório, não chega a uma conclusão sobre o real nível de pobreza dos habitantes da fazenda, ou seja, se a vida deles é de uma pobreza digna, ou miserável. Um fato a se constatar é que, no nordeste, estes padrões sempre dependeram da vontade das chuvas. Como também dependem das relações de trabalho mantidos com cada senhor-proprietário, que mesmo hoje, podem beirar a escravidão.

Sabe-se de uma fazenda, mesmo não tão próspera, onde o senhorio, dada a sua grande generosidade, era tratado com uma admiração paternal pelos seus subordinados.

A disparidade de olhares existentes entre o casal, expressa tanto nos diálogos diretos como na reconstrução dos fatos pelo narrador, encerra uma das reflexões nucleares do romance, a saber, o conflito intersubjetivo decorrente da diametral diferença na maneira de ver-sentir o outrem.

Conflito, dir-se-ia irremediável, que, entretanto, com a convivência forçada e institucionalizada pela união formal, irá aos poucos, reconformar a identidade de cada um. A vivência diária destas duas pessoas de padrões valorativos tão diferentes, que, e isto sempre ressoa no enredo, mantém um estranho afeto mútuo, é fundada não numa interação empática, mas em momentos alternados de simpatia ou antipatia – nota-se que há tentativas para amenizar os conflitos, tanto da parte de Paulo Honório que passa a mão autoritária na cabeça da esposa, como por parte desta, a solicitar paciência e compreensão pelos seus protegidos. Portanto, o processo intersubjetivo do casal não se fundaria numa identificação conjuntiva, em que um reforça a noção identitária do outro – a tranqüila constância de uma bodas de ouro –; antes devêssemos falar numa atração pela diferença, originando um reconhecimento de si pela inacessível identidade do outro. Ou seja, eu só me reconheço no olhar assimétrico do outro.

Neste sentido é que observaremos no decorrer da convivência caótica deles, uma espécie de soçobrar de suas crenças identitárias. No caso de Madalena, que já carrega consigo uma alquebrada base emocional, constataremos o trágico desparecimento de sua pessoa, a qual sofrendo um violento processo desvalorativo, sem forças para uma mudança de rumo, opta pelo longo descanso. No caso de sua contraparte masculina, como veremos no final do livro, o corpo físico não chega a sucumbir, porém o ser-espírito torna-se outro; metamorfose definida justamente pela passagem do personagem – narrado ao narrador – memorial. O olhar de Madalena acompanhará Paulo Honório como uma super-consciência, desmantelando uma identidade que antes afirmava-se como plena de si. Processo que toma forma na percepção a posteriori do sofrimento de Madalena. Como o tempo não volta - agora é tarde - combalirá pelo sentimento de falta e ausência de sua companheira.

Ainda o CAPÍTULO 17 – Outras Considerações

A personagem de Madalena fechará o triângulo inter-subjetivo comentado no capítulo 09. Com a opinião dela sobre o Padilha achou-o uma alma baixa, traçamos a imaginária linha que a liga àquele. A figura decadente do Padilha, com seus modos híbridos de homem letrado e ao mesmo tempo deseducado, não agrada sobremodo à Madalena. Eles não irão condizer com as firmes convicções morais dela, assim como a séria postura que mantém em relação a vida em sociedade. Ou seja, o irresponsável Padilha não se encaixava na tipificada visão que tinha sobre o que, para ela, representaria o correto funcionamento dos mecanismos ou regras sociais.

O ofício de professora, na época uma das únicas profissões permitidas às mulheres, atribuía a Madalena a responsabilidade de educadora. Se hoje esta função permite-se um certo grau de liberdade no exercício da transmissão de conhecimento, no tempo de Madalena – o de Graciliano – tal ofício imperava que se transmitisse, em método e conteúdo, uma pedagogia oriunda dos códigos culturais europeus, eivada de toda a tradição iluminista e positivista firmada desde o século das luzes. Esta inferência nos serve aqui para matizar à radical diferença de visão de mundo a separá-la do marido. De certo que não poderíamos cobrar dela um horizonte mais amplo do que o que a circunscrevia: o de uma alfabetizadora. Portanto, podemos considerar que o espírito solidário virtuosamente propagado em relação aos trabalhadores de São Bernardo seja o do espírito progressista da educadora que vê na condição do ágrafo um câncer da sociedade, o qual sustará o caminho da nação na direção evolutiva de sua ordenação sócio- cultural. Sentia-se enfim, na incumbência de livrar aquelas pobres criaturas do ‘pecado original’ de uma vida isolada do mundo culto das letras, vivendo apenas no contato com a rudeza do elemento natural.

A figura do professor(a) assume uma grande importância na vida-obra de Graciliano Ramos. Marcadamente em Infância temos a descrição dos vários tipos com quem tomou as primeiras lições de leitura na cartilha do “barão de Macaúbas”. Direciona em torno deles vários capítulos nos quais pinta seus retratos com extrema minúcia. Lembra com exatidão da vileza impaciente de uns, assim como da indolente indiferença de outros. Somente uma é tratada com respeito, é a

professora D. Maria do capítulo homônimo. Recorda com carinho a atenção despendida pela mestra ao menino que tinha dificuldades em coordenar as complicadas orações da cartilha, as quais só com a afetuosa paciência dela conseguia assimilar, permitindo-lhe o progresso no torturante processo da leitura. Sentia nela a entrega de um afeto que, de outro modo, não dispunha em casa, vivendo entre a ríspida inconstância do comportamento do pai, e a intolerância fria e obtusa da mãe. Dir-se-ia que em nenhum dos personagens descritos em Infância vemos aquela espécie de recordação benéfica, que a dedicada professora trazia ao menino Graciliano. Era como se ele só possuísse inimigos, nenhum conforto humano a incentivá-lo na superação dos tormentos característicos dos primeiros leitores, o próprio espaço físico das escolas aparecia a ele como um lugar de horror”. Devemos frisar a importância de uma mão solidária para criar nos que se iniciam na leitura o prazer e o sentido que poderá acompanhá-los nos percalços da vida. Àquela necessidade, a um só tempo fuga e compreensão do real, essência do sonho literário. É, portanto, miraculoso o destino de grande senhor da palavra trilhado pelo homem que, aos nove anos quase analfabeto, conseguiu dominar o espelho do bem dizer.

Finalizando as considerações extemporâneas atentamos novamente para a estratégica relação entre escritor-narrador e escritor-autor. Assim, quando o narrador escreve: não consegui evitar numerosos solecismos... –, será que o termo “solecismos” incluiria-se no cabedal semântico do narrador? A questão toma relevo ao ponderarmos o distanciamento entre o Paulo Honório narrado e o Paulo Honório narrador ao tempo em que a voz deste último aproxima-se da escrita autoral tomando a forma de um relato auto-biográfico. Deste modo, o romance São Bernardo confundiria-se tanto com Infância como com Memórias do Cárcere, enquanto livros auto-biográficos. Não pela exatidão histórica do conteúdo, mas pela incorporação por parte do autor do sentimento nostálgico de quem conta sua própria história para, só então, narrar uma história ficticiamente alheia. Postura diversa dos romances que se iniciam retrospectivamente com o desejo do narrador de contar sua história de vida. Nesta estratégia, que está por exemplo em Dom

Casmurro e nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador é mero porta-voz

do autor ao contar sua história. Ou seja, o narrador objetivando a narrativa, não confunde-se com ela, ou com qualquer dos personagens, mantendo os tempos

narrativos em fria separação. Em São Bernardo o autor doa seu tempo subjetivo ao narrador, imiscuindo-se afetivamente na memória ficcionada deste. Fazendo dela uma alegoria de seu próprio tempo vivido.