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Capítulo 09 – Considerações diversas – Madalena é prenunciada

CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

9. Capítulo 09 – Considerações diversas – Madalena é prenunciada

Num belo dia qualquer, estavam João Nogueira, Azevedo Gondim e o Padilha, a prosear no Alpendre. Peguei-os elogiando as pernas e os peitos de uma moça chamada Madalena. Diziam-na bonita e lourinha por um lado; por outro, sisuda e educada. Não acordavam sobre a idade, uns vinte e tantos. Era professora. Tinha vindo caminhando, aproveitando a fresca da tarde, o sol a baixar.

Se há algo que foi levado do homem na transição da vida rural para o urbanismo moderno, encontramo-lo na imagem de um passeio no campo ao cair do sol. Vendo-se de qualquer ponto o dêgradê alaranjado, caminha-se sobre o espaço largo, conversando-se desinteressadamente assuntos moles. Grupos de marrecos alçam vôo no horizonte prateado, lançando seu grasnar agudo e rouco; cigarras ociosas praticam um canto contínuo, concorrendo com o desencontrado concerto dos sapos instalados nos brejos próximos. A passo lento, o melhor é retornar antes da noite fechada, a precaver-se da raposa e do lobo guará. Mas, neste dia, o luar

estava muito branco. Um pedaço de mata aparecia, longe, e distinguiam-se as flores amarelas dos paus – d’arco15.

Paulo Honório julga-se superior ao advogado João Nogueira. Aliás, vê-se nele o menosprezo do homem rural a tudo que não esteja de alguma maneira ligada a terra. A inferiorização da pessoa alheia é de nenhum outro modo mais eficaz que pela violência da linguagem. Aproveitando-se do domínio natural no uso da proverbialidade da tradição oral nordestina, dota seus comentários de uma verve jocosa. Do periodista Azevedo Gondim diz ter um sorriso que achata ainda mais o

seu nariz; ao Padilha qualifica impiedosamente: tão miúdo, tão chato, parecia um percevejo.

E por falar no sofrido Padilha, vimos saber pelo Gondim que possui potencial para a escrita. Até publicou uns contos no cruzeiro. Só é inseguro, disfarçando-se

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O pau-d´arco talvez seja mais conhecido hoje em dia como o Ipê amarelo, primos-irmãos do Ipê rocho e do Ipê rosa.

sob pseudônimos. Presenciamos nele, assim como no João Valério, de Caetés; e no Luis da Silva, de Augústia – porém neste último em menor grau –, o vulto do escritor frustrado, iludido por uma pretensa ou fantasiosa vocação, não conseguindo concretizar seu virtual talento. Ou conseguindo-o mediocremente, o que não permite a obtenção de êxito e o conseqüente estabelecimento no ofício. Poderíamos vincular esta ambição, recorrente na obra de Graciliano Ramos, ao prestígio social adquirido pela figura do escritor reconhecidamente popular, vangloriado nos jornais, comparável nos nossos tempos de império da comunicação visual, ao status social das atuais estrelas televisivas.

Segue-se neste capítulo, prosseguindo nos seguintes, uma discussão politiqueira acerca da sucessão à prefeitura de Viçosa, bem ao estilo da república velha. Quem apóia quem; quem galga o poder, quem descamba dele...

Verificamos a vacuidade das opiniões participadas no colóquio, pautado apenas pelos mesquinhos interesses políticos nas eleições vindouras16. Começam a ser introduzidas, incipientemente, algumas referências à conjuntura dos debates ideológicos da época. Alguns termos são usados distorcidamente, como o de revolucionário, atribuído ao Padre Silvestre pelo Nogueira. Também no Padilha encontraremos uma nova faceta sobreposta à do escritor terção: a de agitador- propagandista de teorias subversivas, tentando conscientizar os empregados de São Bernardo da condição de espoliados em sua força de trabalho. Assim vemos fazê- lo no episódio em que tenta doutrinar o Marciano, marido da Rosa, que só não é posto pra fora com os quatro filhos esmulambados porque Paulo Honório não tinha “tanta autoridade assim sobre a Rosa!”.

A questionável sinceridade do espírito reformista do Padilha nos faz notar que a escolha dele como porta-voz de um ideário de esquerda remeteria a um caráter não apologético desta ideologia. O autor prefere adotar uma neutralidade de postura a fim de privilegiar, acreditamos, a fidedignidade do olhar sobre o momento histórico do qual é testemunha. Constatamos, então, como no contexto rural-urbano do nordeste da época, e talvez do País como um todo, as concepções socialistas,

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Asseveramos este comentário pela leitura dos autores nordestinos ditos regionalistas. Especificamente nos livros de Jose Lins do Rego que compõem o ciclo da cana-de-açúcar, nos quais encontramos tam bem representadas as conveniências eleitoreiras dos políticos locais coronelistas. Até que ponto algo mudou no “país de São Saruê”?

expostas numa semântica complicada porém inédita, tornam-se sedutoras quando de sua transmissão para ouvidos incautos. Homens formados pela boa educação das antigas escolas públicas, mas oprimidos pela estreiteza de uma vida culturalmente limitada e tacanha, contagiam-se pela novidade das sentenças, alimentando um contido espírito passional por mudanças no discurso moderno da promessa de um mundo novo e diferente.

Estas disposições políticas encontradas nos personagens de São Bernardo, como que pressagiam a panorâmica humana vista e descrita por Graciliano Ramos nas Memórias do Cárcere. Movimentando-se fantasmaticamente pelos limites da carceragem, alternando um sentimento de pertença e alheamento pela dinâmica a sua volta, encontra no porão do navio-prisão alguns tipos carregados do mesmo idealismo ambíguo que vemos habitar o Padilha. Hipótese passível de contestação, posto a forçosa singularidade da história de cada um; no caso do Padilha, ele parece nutrir sua crença numa ira vingativa contra um mundo que o desterrou, condenando-o à humilhação do aceite canino das migalhas oferecidas por seu algoz.

É oportuno, neste momento, uma consideração acerca da ênfase no personagem do Padilha. Ela é necessária na medida em que nos servimos da forma geométrica do triângulo equilátero para pensar a relação dos três principais actantes do romance. Os lados iguais corresponderiam á importância semelhante dos seus respectivos papéis. Por ser o narrador, Paulo Honório ocuparia o vértice assimétrico do triângulo. Madalena e Padilha, por sua vez, funcionariam como sombras àquele, refletindo-lhe uma forma identitária distorcida na qual não se reconhece, mas da qual, por seu caráter de sombra, não pode desapegar-se. Exemplificaríamos esta geometria comparativa pelo escuso propósito do convite feito por Paulo Honório ao antigo proprietário de São Bernardo, com o conseqüente retorno deste às suas ex- terras. Pondo Padilha no interior de seu círculo de poder, sob a mira de seu bel- alvitre, concede-lhe um favor, ao mesmo tempo ajudando-o e humilhando-o. Vemos que os dois personagens estabelecem desde o inicio da história um laço dicotômico, seja em caráter: trabalho e ócio; seja em posicionamento social: o explorador antes explorado, o revoltado antes acomodado. O mesmo ponto de vista incide na relação afetiva entre Paulo Honório e Madalena a qual abordaremos posteriormente.

Por fim, o elemento natural sempre descrito pelo narrador, é agora realçado no olhar triste do Padilha, que observava as novilhas pastando no capim-gordura, à

margem do riacho, e o açude, onde patos nadavam (...).