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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

7. Capítulo 08 Os fins justificam os meios

Verificamos neste capítulo a segura distância tomada pelo autor em relação ao protagonista do romance, na medida em que conclui a sedimentação do caráter deste pelo esclarecimento de suas pretensões e seus fins.

Descrevendo a tragédia ascensional de Paulo Honório, o autor realiza-o como pura figura maquiavélica: Na intenção de possuir as terras de São Bernardo,

considerei legítimas as ações que me levaram a obtê-las. Como um “dragão

teleológico” ele irá seguir sempre em frente, ateando fogo em quaisquer empecilho que lhe interponha o caminho. Sabedor confiante do rumo a tomar, este tinha um único fim: a transformação da primitiva e ultrapassada propriedade de São Bernardo num modelo empresarial de fazenda, norteada pela mais moderna lógica desenvolvimentista.

Num prazo de 05 anos São Bernardo torna-se uma fazenda-modelo, encarnando perfeitamente os ditames do progresso tecnológico. Em suas terras cultiva-se o algodão e a mamona; introduz-se a pomicultura e a acquicultura; cria-se o gado limosino e galinhas orpington; e, através de operações de crédito, adquire maquinários para o enriquecimento da produção – descaroçadores, uma prensa, um dínamo –; constrói-se benfeitorias como uma serraria, um banheiro carrapaticida, um estábulo; e, por fim, abre-se uma estrada de rodagem para o transporte eficaz da produção.

Porém, não foi sem percalços que Paulo Honório construiu a “concretude’ de seu sonho. Pois, tal como sua vida pregressa, os objetivos foram sendo alcançados na base de uma valentia cega. Levou um tiro de emboscada, ferindo-se no ombro; cicatrizes de uma luta que ao vencedor cabem os despojos do vencido. Todavia, estava no perfeito cálculo de uma vontade empreendedora o seu sucesso. Respaldado, é claro, pelo clientelismo dos “amigos-urubus” que, admirados pela envergadura da empresa, estavam sempre a postos, “de olho nos restos da botija”.

Uma ética do trabalho guiara Paulo Honório. No entanto, além do lucro, do acúmulo de capital, e do conseqüente poder ligado a ele, o sentido da energia despendida no trabalho estava na concretização de um projeto-miragem antigo, que o acompanhara desde muito cedo, quando ainda ajudava a velha Margarida na venda de seus tachos de rapadura. Tinha vocação para tanto – e o que é o mundo se não o espaço onde realizamos nossas vocações. Porém, não devemos ver nesta ética, uma moral cristã legitimadora do espírito capitalista7. O motor que o impulsiona parece não funcionar apenas com o combustível do acúmulo de dinheiro – a ambição da fortuna –, mas com o ideal da concepção de uma São Bernardo plenamente produtiva.

A fazenda atingira tal nível de organização que se tornara exemplar, recebendo a visita do governador do Estado. Após a apresentação da fazenda um lauto almoço foi oferecido. Contudo, parecendo não estar totalmente satisfeito, a autoridade republicana lança uma comprometedora pergunta: – Mas o Sr., seu Paulo Honório, não possui uma escola em São Bernardo? O que pensar da educação de seus moradores? O proprietário, atônito diante da inesperada inquirição, responde com seu faro de oportunismo politiqueiro: – Vossa excelência quando vier aqui outra vez,

encontrará essa gente aprendendo cartilha. A despedida do governador celebrizou-

se pela inauguração da estrada de rodagem. Logo após a partida, com a poeira ainda a assentar, Paulo notou-se agitado, reclamando consigo: – Que serventia tem dar escola para essa gente? Porém, passado o irritadiço, vislumbrou as vantagens que o investimento na construção de uma escola poderia trazer. Contrapesou-as com os gastos e concluiu que no fim sairia como um bom negócio. Aproveitou a oportunidade para aliviar a consciência: chamou o Padilha a um canto oferecendo-

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No sentido da ética protestante preconizada na clássica obra de Max Weber: A Ética Protestante e o

lhe o cargo de professor a 30 mil rés por mês. E assim como a escola seria um

capital, (...), os alicerces da igreja eram também capital.

Na assertiva oriunda da voz do personagem-narrador, ecoa, subjacente, a crítica social do chefe de instrução pública de Alagoas, Graciliano Ramos, recolhido a correção penal por sua atuação “revolucionária” quando do exercício do cargo.

Mostra-se, assim, em sentido inverso ao capítulo anterior, a diferença entre sujeito-autor e sujeito-narrador, reforçada pela tragédia familiar descrita na página 38/39 do livro: Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no

peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfão miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se. Observamos como o ritmo seco das orações verbais sugam o

sentimento de horror diante do que, sem exageros, caracterizaria-se como um extermínio familiar. Se, na passagem da cruz aleijada a ironia identificava o personagem ao autor, nesta, a causticidade crítica da fala de Paulo Honório dissocia-se do horizonte ideológico do criador. Ocorre, assim, uma espécie de paralelismo oposicional entre a voz de um e a consciência do outro, o qual encerraria a premeditada distância entre o visível da oralidade de Paulo Honório, e o recôndito intencional da escritura de Graciliano Ramos. Esta inferência é asseverada pela absurda inversão de bom senso existente na crítica preconceituosa da fala de Paulo Honório. Para ele, as próprias vítimas são culpadas pela condenação de seus destinos, transformando-se em algozes de si mesmas. O que explicaria satisfatoriamente a trágica miséria daquela gente.

Esclarece-se assim a intenção autoral suplementar ao texto: a de expor o modo perverso pelo qual os senhorios proprietários e, em conseqüência todo o círculo de poder ligado ao capital, justifica-se ideologicamente. A saber, pela lógica falaciosa inerente ao poder institucional que atribui à natureza fraca do indivíduo a culpa de sua miserabilidade.

Neste contexto encontramos o homem de esquerda, Graciliano Ramos, inserido na corrente de idéias de cunho Marxista-Leninista8, cujo projeto idealista de um mundo mais justo realiza-se em perfeita concomitância com a respectiva gênese de seu projeto estético.

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Neste ponto ele é contemporâneo de toda uma geração de artistas e intelectuais imbuídos daquele espírito de certeza reformadora, inspirado pelo paradigma da dialética evolucionária materialista.

Acomodado o falatório acerca do ocorrido, Paulo Honório decide proteger as filhas do Mendonça. Compadecido da situação das pobres, manda limpar o algodão da fazenda do Mendonça, a Bom Sucesso. Afinal, o desaparecimento dele rendeu para São Bernardo alguns braços a mais de Massapê. Contribuiu para tanto o orgulho patriarcal de uma padrinhagem pela qual o chefão protege a viúva e os órfãos desamparados que, em troca, cederiam “favores”. Não seria este o caso das Mendonça, por preponderar, talvez, na decisão de Paulo Honório, um certo estranho peso na consciência.

8.

Capítulo 7- Ah! Quase esqueço de seu Ribeiro!

Encontrei um velho alto, magro, curvado, amarelo, de suíças, chamado Ribeiro.

Através desta prodigiosa descrição física, em que os termos, ritmicamente pousados, soam aos nossos ouvidos qual uma percussão, a impoluta figura de Seu Ribeiro é apresentada.

O relato da vida pregressa do guarda-livros Ribeiro comporta-se como uma história dentro da história. Sem maiores explicações, após o conhecer, Paulo Honório simpatiza com ele, convidando-o para a função de contador em São Bernardo.

A ocupação de contador é explorada em vários momentos do livro. A personalidade de seu Ribeiro, com sua calma fleumática, está sempre a aparecer, lançando partidas dobradas de débito e crédito nos livros-caixa. Esta atividade, necessária a perfeita administração da fazenda, afigura-se como símbolo do desenvolvimento empresarial-capitalista desta, com suas complexas e intrincadas operações de compra e venda, empréstimos à juros, receitas, dívidas, etc. A pessoa de Seu Ribeiro poderia, a princípio, parecer contraditória com estes avanços, dado o seu jeito pretérito e antiquado. Porém, se levarmos em conta que a ciência contábil existe desde a revolução comercial, com o aparecimento dos bancos e das

grandes companhias mercantis, reconhecemos no velho preciosista e detalhista uma autoridade na matéria.

Já no relato da comunidade justa liderada por seu Ribeiro, entrevê-se na visada histórica acerca dos tempos do império, uma espécie de nostalgia antropológica. Motivada, talvez, por uma ética romântica idealizadora de uma perfeita organização político-social, comportando-se como uma utopia contraposta à distopia do presente hodierno. Ética correspondida pela sabedoria salomônica do retilínio Ribeiro na condução da ancestral vila.

Não se sabe se é pelo conteúdo admirável da história do nobre personagem, ou tão somente por ele transmitir uma irretocável honestidade, a que se deve o convite de sua ida para São Bernardo. O curioso é que sua poeirenta figura desperta uma reverência por parte do patrão-anfitrião que não se nota no tratamento dado aos outros personagens do romance. Por fim, o comportamento indelével de seu Ribeiro servirá sempre como contraponto moral aos lances e desenlaces da história da fazenda. Como uma sombra muda, guardando para si a antevisão profética da fortuna dos personagens.

“O MASSAPÊ”. Escrito sobre o solo auspicioso de Gilberto Freyre

Naquele tempo algumas braças de Massapê valiam muito para mim. Ninharia o massapê.

Nota-se que o narrador refere-se às terras que compõem aqueles sítios como Massapê. A princípio, questionaríamos se esta qualificação assume um valor geral – expressão de uso regionalizado –, ou se especificaria um tipo geofísico de solo (questão que se resolve ao contemplarmos as duas alternativas).

A referência ao Massapê indicaria um possível contexto geográfico onde estariam situados as terras de São Bernardo. Digo, possível, pois, de imediato, remeteríamos o termo massapê às vastas plantações de cana-de-açúcar da zona da mata alagoana e pernambucana. Porém, (numa investigação cartográfica a partir dos dados descritos, localizaríamos a fazenda, a uma légua e meia da

cidade de Viçosa, aproximadamente a 70 quilômetros do litoral alagoano, e a 120 quilômetros do rio São Francisco, onde fazem fronteira os quatro estados nordestinos mais meridionais). Tal mapeamento servirá de base para uma importante constatação: a de que São Bernardo encontra-se no limiar entre a zona da mata alagoana e o aparecimento das terras áridas características de uma região agreste. Portanto, formado por um meio-ambiente sincrético, que mantém características de dois distintos ecossistemas, influenciados estes por macro- climas marcados pela fundamental oposição presença/ausência de chuvas.

Temos, assim, justapostos no livro, as “manchas de mata”, resquícios da primeira mata atlântica, e a vegetação de caatinga, peculiar à grande zona semi- árida nordestina. Confundem-se nele o barro pegajoso do massapê, “que se agarra as pernas da mulata”9, com a dureza do solo pedregoso, por vezes gretado, do agreste acatingado.

Tal convivência, de dois diferentes complexos naturais com seus respectivos elementos coexistindo numa região delimitada, pode ser estendida ao elemento humano – cultural que o habita. Em Paulo Honório encontraremos estes dois universos como fatores integrantes de sua pessoa. Nele, vemos unir-se o fazendeiro pecuarista sertanejo e o senhor de engenho da zona da mata no que têm em comum: a posse da terra produtiva, e a decorrente autoridade proveniente dela.

Este paralelismo fisionômico e temperamental entre o físico e o humano, podemos encontrar na própria recriação autobiográfica de Graciliano quando, no livro Infância, no capítulo intitulado Manhã, ele descreve os respectivos avôs paterno e materno. Ao avó paterno que “possuíra engenhos na mata10”, retrata como homem fraco, “achacado” para a vida prática, do embate diário com o outro; porém civilizado, bom músico, dedicando-se a fabricação paciente de “urupemas”11. Já o avô materno, “ de perneiras, gibão e peitoral”, encarnaria, dentro do traje encourado, o homem sertanejo forjado no seio interativo entre território e atividade produtiva, a saber, sertão e pecuária. Os dois simbolizariam

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FREYRE, Gilberto. Nordeste, p. 46-47, e, ainda, “o massapê não tem aquele ranger de areia dos sertões que parece repelir a bota do europeu e o pé do africano”.

10

RAMOS, Graciliano, Infância, p. 22. 11

A urupema é uma espécie de peneira feira de um tipo de fibra vegetal que pode servir tanto para utlidades culinárias como, na forma de esteira, para vedação de teto, paredes, janelas etc. O seu fazer artesanal exigiria uma paciência comparável ao ofício de escritor. Assim como faz G. Ramos quando descreve com minúcia o procedimento das lavadeiras “lá de Alagoas” no rito de seu ofício. SCHMIDT, Augusto Frederico. Entrevistas: Homenagem à Graciliano Ramos.

em suas diferenças, as duas culturas históricas estruturantes da região denominada nos anos 20 do século passado, como Nordeste12: a cultura da cana- de-açúcar, por um lado, e a cultura do couro-carne por outro. Uma mais ao mar, outra mais a terra. No avô paterno, o olhar baixo, voltado para o artifício do meandro das cordas das urupemas; no materno, o observador sagaz, conhecedor experiente das relações peculiares a seus domínios.

Neste capítulo o narrador apresenta um certo Fidélis que antes furtava

galinhas e hoje é senhor de engenho, desdenha de Paulo Honório: para que construir um açude quando o rio não seca. Esta afirmação interrogativa revela

quase involuntariamente uma mentalidade litorânea, pois os rios menores que correm o nordeste adentrado não são perenes, remetendo o Fidélis ao homem da zona da mata, onde os rios médio e pequenos nunca secam13. Portanto, se a mata caracteriza-se por um extravagante excesso de água, o senso de economia que atravessa, cortante, o temperamento sertanejo deve-se ao convívio perpétuo com a escassez de água e, periodicamente, com a total ausência dela.

A impiedosa e imperiosa necessidade histórica de salvaguardar a pouca água provida pelos céus, quiçá tenha criado o modo avaro pelo qual o homem sertanejo relaciona-se com as coisas à sua volta. E, só através da qual tenha conseguido sedentarizar-se em território, se não inóspito, bem pouco acolhedor.

Assim vemos a inclemente geografia associada à secura do temperamento do personagem, e nas exaltadas manifestações de parcimônia14 econômica deste uma inequívoca índole sertaneja. No ato, dito despropositado pelo Fidélis, o de construir um açude, Paulo Honório ratifica sua veia de guardador de água, desconfiado da boa vontade das chuvas.

Sempre pensei, desde as longínquas aulas de geografia, o massapê como uma argila vermelha. Descubro-o no livro de Gilberto Freyre que também aparece como um “humus negro, compacto, viscozissimo, que triturado nos dedos faz sentir-se uma sensação de unctuosidade”.

12

Sobre a gênese de uma identidade “nordestina”, ver o livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A Invenção do Nordeste.

13

Freyre atribuirá à perenidade destes “rios sancho-panças, sem os arrojos quixotescos dos grandes” a eclosão da cultura da cana-de-açúcar. Nordeste, p. 61.

14

Parcimônia que não corresponde à avareza burguesa – uma mesquinhez no apego ao dinheiro. Antes expressaria o sentido latino do verbo economizar –, de por ordem na casa. Neste sentido o personagem de Graciliano não se confundiria com o Monsieur Grandet, de Balzac, que ao voltar do trabalho, reclinado na cadeira, estendia as pernas sobre o baú de suas economias.

9.

Capítulo 09 – Considerações diversas – Madalena é