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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

30. Capítulo 32 – MUDANÇA

“Nós matamos o tempo, e ele nos enterra” Machado de Assis

Madalena é enterrada debaixo do mosaico da capela-mor, na presença dos honoráveis do romance, o Dr. Magalhães, Padre Silvestre, João Nogueira, Azevedo Gondim: os proprietários vizinhos vieram trazer-me pêsames. Nenhum pesar amigo é descrito no livro, não permitindo ao leitor saber se durante o enterro recebeu alguma despedida sincera e próxima.

Paulo abandona a cama de casal, mudando-se para um quarto menor, cujo forro abriga um ninho de carriças. Estas aves substituem sem trégua as corujas com o som tormentoso de seus pipilares. Claro está que já não é o mesmo Paulo Honório. Ou melhor, é e não é, pois ninguém deixa de ser si mesmo. A constância fundante de cada um, pela qual nos acostumamos a uma mesma identidade, nunca nos abandona enquanto permanecemos lúcidos. O que, então, muda no ser após um fato ou fase diferenciada da vida pelo seu caráter de avatar?48. Quiçá um deslocamento da consciência afetiva, fazendo deslizar a mágica perceptiva de captação das coisas e dos seres. A insustentabilidade de uma crise urge uma mudança, distinta por sua vez do processo de transformação, pela necessidade de uma ruptura. O transformar-se estabelece-se como um processo lento, submerso, princípio heraclitiano de tudo e todos. A mudança, metamorfose das impressões valorativas acerca do mundo, não desaba sobre qualquer um. Dir-se-ia que a maior parte dos mortais vive as transformações em suas vidas sem notá-las, alheios que estão em repetir os hábitos de costume.

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Como no conto Amor, de Clarice Lispector, em que uma Dona de Casa, após ver um homem cego mascando chicletes transforma-se em outra ao mesmo tempo que continua a mesma. Em LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. p. 29.

Contudo, em alguns, pela força incomum de uma singularidade aliada a uma contingência existencial, as comportadas comportas da consciência se abrirão, e as águas há tanto represadas, fogem para um novo território, desterritorializando o ser. Se à mudança corresponderia um determinado pretexto exterior, este seria melhor descrito como um texto, o qual, introjetando um novo universo significativo, predispusesse naquele que o lê um desvio, ou descentramento, de valores e visões estéticas e ideológicas. Como amiúde acontece, no ato perigoso da leitura, capaz de liberar os acúmulos não assimilados das transformações sofridas na paulatina passagem do tempo.

Esta soma acumulada de insatisfações resultaria no desequilíbrio da já instável constante psíquica do indivíduo. A dipolaridade do par (tensão – alívio da tensão), perderá sua atuação homeostática, na medida em que as tensões não mais se solucionam. Sem o alívio delas a psiquê contrai-se ao limite da resistência. Tal processo, reafirma-se, não se concerne a generalidade do humano. Constatamos em nossa proximidade, pessoas conformadas com sua vida em perpétua (in)satisfação. Não têm coragem para mudar? Não sentem uma necessidade extrema para tanto? Ou, tendo suas vidas aprisionadas, entregam suas vontades para uma entidade mais poderosa, a família, o Estado ou Deus49.

Não era este o caso de Madalena, cujo sentimento cristão de uma crença numa divina transcendência não bastou para aplacar sua dor, seu sofrimento, seu desconforto com a existência. Aliás, a resolução de Madalena leva-nos a pensar novamente em como deve ser insuportável a dor daqueles que decidem renunciar à vida. De maneira alguma devemos ver nesta renúncia um ato de covardia, diante da intransponibilidade de graves dificuldades. Defrontando-nos com um caso suicida, além de qualquer tentativa de racionalizá-lo, resta-nos o assombro e o espanto de sua incompreensão.

Por outro lado, a ruptura de uma mudança se daria como um choque desestruturante no conjunto dos pré(conceitos) culturais, os quais mantêm nossa bússola fixa num norte, ainda que por vezes o ponteiro indicador dela se ponha a tremer, podendo voltar-se para o oriente. No romper-se das certezas auto-

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Neste sentido, salientamos que nos Estados Antigos e no período feudal do medievo, antes do surgimento do espírito individualista burguês, o sujeito só se definia pela relação com estes dois últimos níveis de idealidades transcendentes: uma temporal e a outra espiritual.

organizativas da coerência identitária, há uma fase, anterior a reelaboração do ser, na qual ocorrerá um esvaziamento das convicções. Nesta, aparentemente o ser transforma-se numa seara estéril, tal como a terra invernosa preparando a primavera – a correspondência desta imagem, pelo otimismo obrigatório concernente a passagem das estações, talvez não seja das mais felizes. O fato é que o inacabamento do ser, desencadeado pela negação da continuidade dos valores formativos, pode levar, na paralisia como no excesso auto imposto por ele, a uma falta de cuidado com o mundo ao redor deveras perigosa. Uma falta ou uma exacerbação da vontade sintomatizada pela medicina moderna com o termo técnico, tão em voga na vida contemporânea, de distúrbio maníaco-depressivo.

É, pois, num estado de total apatia que encontramos o Paulo Honório enlutado após a morte da esposa. Luto que, nele, perde a função assimiladora do sofrimento de uma perda, mantendo-se permanente. Ou seja, deixando de ter a característica de um rito de passagem, em que se volta, mesmo modificado ou transformado, ao percurso anterior. Assim é que iremos encontrá-lo, um homem daquela envergadura, que nunca perdera tempo em observações inúteis, a espiar

as marchas e contramarchas inconseqüentes de um formigão. Analisando o andar

caótico do inseto como um espelho invertido, identificando-se efetivamente com ele ao sentir em si o horror de um tempo inconseqüente.

Como maldição final, sucede-se a debandada geral dos habitantes de São Bernardo. A primeira a despedir-se é D. Glória. O agora macambúzio Paulo Honório, mesmo na inapetência, mantém a atitude autoritária – tornou-se outro, conserva-se como mesmo -, ao oferecer uma resistência à partida da “ex-sogra”, calcando-a com a sua característica ética do bom-senso: ela iria, mas com destino certo, de automóvel e com o recebimento do ordenado de três anos devido a sobrinha; caso contrário poderiam afirmar que ele a tinha botado para fora,

arribada com a roupa do corpo. Logo após veio Seu Ribeiro apresentar-se como

demissionário: levo muita saudade, senhor Paulo Honório. Saudade cruciante. Este pediu que o velho reconsiderasse, talvez já receando a total solidão que cairia sobre si. No entanto a decisão de Seu Ribeiro era inabalável, preferindo, por uma motivação só a ele concernente, terminar nos cafés e nos bancos dos

O homem extingue-se quando não há mais nada para se recordar.