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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

19. CAPÍTULO 19 – A VIDA AGRESTE

...A culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.

Este capítulo apresenta-se como um interlúdio no curso do romance. Visualiza- se, pela primeira vez no livro, a situação presente do narrador ou, poderíamos dizer, o futuro agônico do personagem. A narrativa, girando sobre seu eixo, larga o passado narrado para iluminar o instável presente do narrador. A luz, mais veloz que o tempo, volta-se para a imagem presente de Paulo Honório, descobrindo-o na imobilidade de um solilóquio. Na feição monologal de seu auto-retrato descortina- se a trágica mudança que o acometeu: o esvaziamento das pessoas ao redor, do movimento das coisas, das vozes dos animais, provoca como que um desaparecimento do tempo. Nosso antigo conhecido personagem parece não mais existir, transformado num ser sem contornos definidos, debruçado sobre uma folha que permanece meio escrita, na solidão escura da sala.

A apreciação deste encontro, feito sob a desatenção do deus “cronos”, apontaria a possibilidade de dois pontos de vista: um, vindo do passado remete ao personagem Paulo Honório instado na condição existencial daquele que, vendo-se perdido, intenta resgatar sua história; o outro, o da figura presente do narrador, o

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Transição genialmente ironizada por M. de Assis em Esaú e Jacó no episódio da confeitaria do Império.

qual, envolto nas abstrações de suas reminiscências, põe-se a escrever suas memórias. Um na condição de vivente, o outro na de criador. Esta segunda postulação, transpassada no relato monologal do narrador, vislumbraria toda a problemática da escrita memorialística de G. Ramos. Especificamente a maneira como, na consciência sensibilizada do presente vivido, instala-se a distante vivência das imagens conturbadas do passado. E que, importantíssimo, só obtém algum sentido em sua ordenação formal no cerne da realização escritural.

A recorrência por vezes obsessiva de imagens mentais do passado, acometendo principalmente pessoas de temperamento nostálgico24 podem provocar emoções de vetores inversos. Benfazejos, como defende Gaston Bachelard em sua Poética do Devaneio, ou malfazejos, instalando de imediato aquele conjunto de sensações denominadas alhures por “torturas da alma”. Destas, talvez a mais intensamente sofrida seja a citada no início deste capítulo: a culpa, ou o arrependimento pelos atos feitos, ou não feitos. Incapazes de contentar-mos- nos com uma situação presente, diversa da almejada, impõe-nos culpabilizar alguém ou algo pelos desvios do caminho. A admissão da própria culpa pelos sortilégios vividos é o primeiro sinal de um movimento auto-consciente. Pois, do contrário, seremos sempre obrigados a sacrificar o outro na tentativa de expiação de nossos remossos. Portanto, quando Paulo Honório admite sua culpa pela desgraça do destino de Madalena: A culpa foi minha..., desaliena-se, admitindo também a si mesmo. Torna-se uma pessoa amarga, mas, talvez, mais humana. Acrescenta ainda: ... ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma

agreste. Com esta dura afirmação enlarguece sabiamente sua postura de auto-

conhecimento, descobrindo que ninguém é apartado de sua geografia histórica, como na clássica frase atribuída à Ortega y Gasset: “o homem sou eu e minhas circunstâncias”. Renegando criticamente seu território originário, abrindo mão de arrivismos localistas, pode, então, distanciar-se de suas matrizes formadoras, desenraizando-se. Não no limite do rompimento, onde perderia em definitivo seu ego, mas num pairar pesado sobre sua terra, no ensejo transcendente de desbravá-la, para assim, pregná-la de algum sentido. Tarefa indigente, não enfrentada como opção, e sim como vital continuação. Pois a outra alternativa, o covarde ou heróico desaparecer, não merece cogitação, mesmo no padecimento

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Pois a maioria dos humanos viventes estão mais inclinados ao presente antecipador do futuro, que a pre(ocupação) em remoer o já passado.

das dores existenciais mais intensas: Desespero, raiva, um peso enorme no

coração. A ação de escrever confunde-se com a abnegação de se dar

prosseguimento a vida, uma superação do nada pela doação de rumo à existência. Entretanto, naquele momento de desorientação Paulo Honório sofria. Uma confusão mental atordoava-o, não conseguia pensar claramente. Na sala de jantar penumbrosa, via Madalena, conversava com ela, confundia presente e passado no desesperar da costura memorial. Arremedando os traços do passado sentia as palavras perdidas de Madalena, não conseguindo, contudo, traduzir seu significado. Estava a um passo da perda de sua integridade mental.

Uma coruja piava na torre da igreja. Estou realmente a ouvi-la? Ou será a mesma da noite fatídica há dois anos? No entanto, o misto de estupor e excitação mentais concedem a ele a faculdade de captar no ramerrão da fazenda as mais

insignificantes minudências, percebendo com incrível clareza os, até então, mais

desprezados pormenores: o cantar dos grilos, a arenga dos sapos, o gemer dos ventos, às lições dadas ao papagaio por Maria das Dores, o rosnar de tubarão

aculá no jardim. Como se só este estado de infelicidade permitisse a graça de se

penetrar na carne dos seres. Estes, assumindo agora um relevo desconhecido à ordinária opacidade sem brilho com a qual Paulo Honório defrontava, indiferente, as vidas da vida.

A descrição final traz o personagem de volta a força irreconciliável de seu presente. Reconhece o mundo ao redor, mas o encontra numa profunda paralisia. O agir dos verbos é obstruído pela antecedência do pronome negativo: Não consigo

mexer-me... o relógio não bate. Não há movimento, pois não há pessoas - nem

corujas, mortas a pau por Casimiro Lopes. E, por coincidência, é julho, o nordeste não sopra, as folhas flutuam paradas, congeladas.

Destarte tudo, é preciso continuar, e o narrador – um estranho Paulo Honório – tenta superar a inapetência de um insuportável presente por um movimento de fixação significativa do passado. Este, fazendo-se re(presenta)do em signos intencionalmente escolhidos na direção de sua perpetuação. Mesmo que tal representação não contente o narrador em seu anseio de esclarecimento, pois, como ele próprio se indaga: se me escapa o retrato moral de minha mulher, para

que serve esta narrativa? Como se perguntasse a si próprio qual o valor da

estabelecida pela razão. Parece intuir uma resposta na exigência do espírito pelo ato escritural, ou seja, pela busca por uma plenitude do estar no mundo só encontrada numa incursão pela linguagem escrita, cuja característica de sua ordenação lógico-formal das coisas e das idéias satisfaria a imperiosa necessidade de concatenar a enredada trama do vivido.

Portanto, neste capítulo, o tempo é devotado ao tempo da consciência do protagonista. Arrematado por sentimentos implosivos de culpa e arrependimento perde o liame com o espaço exterior – sem movimento – , ocupando-se inteiramente com as imagens e pensamentos que giram entropicamente no tempo sem tempo, ou sem espaço, da consciência.