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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

21. CAPÍTULO 21 – O Espancamento do Mulambo Marciano

Madalena não consegue conter sua índole crítica, de oposição ao status quo da propriedade, como também sua energia voltada ao trabalho, característica de quem sempre ganhou a vida na labuta. Não aquele labor típico, permitido as senhorinhas, restrito a supervisão da casa: a arrumação, a cozinha, a vigilância das empregadas, o cuidado com os filhos; e nos intervalos de modorra, bordar, cozir, ou ler romances açucarados. Não, Madalena não se encaixava neste padrão. Paulo Honório chegou a achar conveniente que ela ajudasse Seu Ribeiro na contabilidade em troca de um ordenado. Mas esta ocupação não supria seu ego. Por algum motivo teimava em ‘dar pitaco’ na organização da fazenda. Em tudo encontrava uma falha, passível de melhora, de mudança.

As diferenças eram inconciliáveis, as “desinteligências” progrediam. Vê-mo- las atestadas pelos dois episódios descritos neste capítulo, os quais revelam o desarrazoado existente nos dois lados do casal. No primeiro episódio, Madalena demanda a compra de um material didático que custaria a exorbitante soma de seis contos de réis: globos, mapas, entre outros materiais a bem da verdade prescindíveis num processo de aprendizagem que centrasse sua pedagogia numa eficaz proximidade da relação aluno-professor. Tal cobrança demonstraria uma ânsia excessiva no desejo de uma situação perfeita sem considerar o balanço financeiro da fazenda. A preocupação com a educação dos moradores se ligaria pois, não tanto ao concernimento com a condição social dele, mas a uma motivação subjetiva de afirmação de um propósito pessoal. No que toca ao fazendeiro capitalista Paulo Honório, este só concordará com o supérfluo destas despesas na medida em que mostrará tais bugigangas ao governador.

O segundo episódio, mais grave, foi o do espancamento. Marciano, acusado de estar preguiçando e desleixado com as obrigações, defende-se dizendo-se injustiçado, pois trabalha feito burro de carga. O caráter injusto da acusação é reconhecido pelo próprio narrador quando afirma: era verdade, mas nenhum

morador me havia falado de semelhante modo. A objeção de Marciano provoca

arremete contra o empregado com um braço ao pé do ouvido e mais uns cinco

trompaços, deixando-o estendido no chão, esmolambado, subtraído de qualquer

respeito próprio. Para o senhor, Tal agressão era mais que natural; tinha crescido afirmando-se no território bravio da violência, do cangaço e da jagunçagem. Era o patrão, mais que isto, era o dono, e os homens que lhe serviam, um rebanho de ‘almas mortas’. Afinal, apenas quarenta anos os separavam da abolição, e, se a pouca moeda paga em dia poderia estabelecer um vínculo empregatício legal, o sentimento que nutria o senhor de terras talvez fosse o mesmo dos senhores escravocratas fundadores da história da nação26. Ora, pois se ele mesmo, nos tempos de empregado, havia sido vítima do despotismo da autoridade alheia; inclusive desfrutando da gentileza da pequena autoridade policial, na época em que passara na prisão. Por conseguinte, na certeza do mundo girar desta maneira, dividido entre fortes e fracos, arrogava-se o direito de mantê-lo assim mesmo, transferindo para outros os arbítrios outrora sofridos.

No entanto, este não era o mundo de Madalena; não podia, e nem conseguia, aceitá-lo. E, do paredão do açude, observando fixamente o telhado escuro do

estábulo, sem encarar o senhor-marido, objetou o ocorrido, criticando-o

severamente. Suas palavras saíram num jorro de espontaneidade, num mister de se contrapor a algo cuja visão repugnava-a, e a qual discernia absolutamente como um grave erro.

Portanto, se alguma espécie de amor pudesse existir entre os dois, estaria condenado a impossibilidade diante do conflito de naturezas e de vontades entre o despótico herói-vilão e a misericordiosa heroína – bondosa. Madalena ainda tentava, como vimos, formas de contemporização, porém quando ao destempero dele somou-se o advento de uma paranóia persecutória dirigida a ela na forma de um ciúme doentio, sente, por fim, que é debalde qualquer iniciativa de conciliação. Fecha-se, então, na passividade amargurada de uma situação sem saída, sem fresta de luz a qual agarrar-se, desabitada de esperança. Situação abismal, prenunciadora de um desfecho trágico. Em sua acepção cotidiana, o termo “trágico” se ligaria ao fim desventuroso do casal, porém valeria a pena um alargamento da questão.

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Como até hoje nos grotões das infindáveis áreas rurais do país, encontra-se subjacente tal relação entre empregador e subordinado.

A concepção de tragédia proposta aqui, mesmo enobrecendo os personagens com o epíteto de heróis, como dito acima, não encerraria as características do teatro da antiguidade grega. Antes, filiaria-se à modernidade da novela realista inaugurada no renascimento. Guardaria sim, daquela, a predestinação negra dos personagens-títeres. No entanto, eles não obedeceriam cegamente a uma vontade maior que os sobrepujassem, posto que guiados pela força inapelável das vontades existentes em seus mundos interiores, perfazendo-os em indivíduos senhores e/ou escravos delas. É, portanto, o irremediável de seus espíritos que os transformará em heróis de um desfecho trágico.

Madalena, enfrentando com destemor as convenções de uma cultura patriarcalista, sucumbe a esta. Ele, exercendo a função de mantenedor desta ordem cultural, fragmenta-se ao ponto de tornar-se um mesmo – outro.

Incapaz de entender a crítica de Madalena para com seu ato de violência, assim como o respeito com o qual ela tratava um ser miserável como o Marciano -

não propriamente um homem, um molambo, por vontade de Deus, agrilhoado

ao intransponível relevo de seu temperamento, ao hábito orgulhoso de carregar- se, não admite a estranheza que ouve e vê eclodir daquela voz assustada de olhos afogueados: - Uma crueldade!. Não aceita a interjeição, preferindo, ao invés, redarguir-lhe com o disparate de uma absurda acusação: Que diabo tem

você com o Marciano para estar tão parida por ele?. Dá-se assim o começo das

delirantes fantasias de que Madalena o estaria traindo. Delírio que, em

crescendum, transforma-se numa paranóia incontrolável.

Notamos, por outro lado, como o teor da acusação assume uma coerência quando inserida nos limites do espaço de inteligibilidade do personagem Paulo Honório, a saber, de que a preocupação e o respeito com o outro só derivariam de algum interesse prático. Por conseguinte, no caso do espancamento do Marciano, o cuidado de Madalena para com ele só poderia estar vinculado a um interesse sexual; qualquer outra motivação fugiria a seu horizonte de entendimento. Outrossim, na interrogação acusatória explicita-se a noção de sexualidade de Paulo Honório, restrita apenas à uma propriedade reprodutiva, como vemos na substituição, na frase citada, do verbo “atrair” por “parir”. Neste âmbito, insere-se a visão machista do homem rural nordestino que nega a possibilidade do prazer sexual da mulher. No coito, o orgasmo estabeleceria-se numa só via, na qual à

parte feminina corresponderia a mera função passiva de receptáculo, na intenção única da procriação.