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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

13. Capítulo 13 – A VIAGEM DE TREM

Quando Paulo Honório retorna de Maceió no trem das três da tarde, sente- se aliviado. Mesmo enervado pelas aporrinhações e o serão sofridos na delegacia, além dos réis gastos sem necessidade, a desforra no safado do jornalista fôra feita. Só uma boa sova de rebenque para curar uma desonra. Em sua ordenação mental, o artigo do Brito chamando-o de assassino era uma calúnia injuriosa merecedora de lição. Esta viria da mais antiga forma de disputa, o confronto físico direto. Porém, não efetivada pela forma nobre e ritualística de um duelo, pois o homem enraivecido pegou o Brito desprevenido com uma humilhante surra de chicote. De sorte que ao entrar no trem da Great Werstern sente-se bem melhor, um tanto livre da raiva furibunda que o assolara desde a leitura do artigo no jornal. Enfadado, senta-se num banco ao lado da janela à espera das 03 horas férreas que separam a estação de Maceió da de Viçosa.

Ainda sob o efeito das confusões passadas mantém a portinhola da janela fechada, não observando após a partida do trem, aquilo “que é visto ao nos ver passar”. O que leva o narrador a uma importante ponderação sobre seu relato:

uma coisa que omiti e produziria bom efeito foi a paisagem. Concorreria para isto o

fato do personagem não ser dado a passivas contemplações naturalísticas. Como um verdadeiro paganus – habitante do campo – cresceu e sempre conviveu com o elemento natural, não conseguindo dissociar-se dele a ponto de isolá-lo como ponto de fuga do olhar. A paisagem confundia-se com seu ser, não sendo, atingido por aquela afetação extasiante digna dos espíritos contemplativos, permanecendo, pois, numa simplicidade indiferente frente ao que via. Se algum tipo de atenção mantinha, esta seria em relação ao trabalho e investimento humano no território antes bravio e primitivo. As ocupações concretizadas pela força de trabalho de séculos enchiam-lhe de fé e orgulho. A geometria humana dos canaviais, alimentando a fuligem cinza soprada pelos engenhos, evocava, com sua crença “arrazoada” no progresso, o esforço dispendido em São Bernardo para transformá-la numa grande propriedade produtiva. Uma vitória, imbuída de suor e valentia, sobre a natureza tosca, elevando-o a um alto patamar na hierarquia dos homens de honra e respeito.

Durante a viagem, numa dessas coincidências trazidas pelo acaso ao converter-se em destino, Paulo encontra-se com D. Glória, a Tia velha, magra e carrancuda de Madalena. É-lhe proporcionado o mote necessário para a desejosa aproximação com a moça loura, já que se mostrava tímido quanto aos convenientes ritos sociais da conquista. Neste momento, o narrador-escritor intervém afrontosamente na história: reproduzo o que julgo interessante. Suprimi

diversas passagens, modifiquei outras. No decorrer das observações acerca do

processo seletivo do que foi permitido ou expurgado do texto final, vemos novamente emergir a superfície o trabalho do escritor. Conjeturando acerca do porquê das presenças e ausências de termos, assim como de passagens, do que foi mantido como dito ou subtraído por não merecê-lo, insere a importante temática – pesquisada pela crítica genética – da criação de uma obra conforme o projeto estético do escritor ou artista. E, neste bojo, auto-referenciar sua marca estilística, qual seja, a obsessão pela síntese, pela concentração de um imenso poder de significado em elocuções construídas com poucos termos, dispostos através de uma síntese aguda e precisa.

O curioso da reflexão feita pelo personagem – narrador é que este, no tempo mental em que elocubra os traços da memória para selecioná-los no ato escritural, também explicita o que não foi introduzido na história passada do personagem narrado. Verificamos isto quando o narrador fala dos palavrões expurgados da cena da agressão ao Brito, à qual sem eles está descrita com bastante sobriedade. Desta maneira, é como se fizesse sua própria crítica genética, inserindo-a em paralelo à conformidade da história. Ademais, os virtuais trechos sobriamente suprimidos adquirem, em negativo, um realce não intencionado pela pena do personagem – narrador. Declarando que quase não atentou para a paisagem por estar com a portinhola fechada vai descrevendo o pouco que viu, tomando este um efeito contrário, pois superlativizado aos olhos do leitor, um efeito em que o pouco ganha densidade em relação ao muito. E a narrativa, que daria a idéia de uma

palestra realizada fora da terra, ganha o brilho do cheiro e do sabor de terra

agreste após uma chuvarada. Na descrição abreviada e substantiva da paisagem, sem quaisquer rasgos românticos: viu de relance pedaços de estações, pedaços

e os cajueiros, deixa ao leitor o espaço necessário à fulguração de seu imaginário,

inspirando nele o desejo de realizar aquela mesma viagem de trem.

Justifica a avareza da descrição salientando estar ela embutida por motivos de

ordem técnica, assim como por não arriscar-se dizer o que não se lembrava direito. Neste ponto, o narrador é pego em contradição, afirmando-se

insinceramente, pois, logo depois, lembra com precisão os detalhes das horas: os

coqueiros da lagoa, que apareceram às três e quinze. Esta incongruência do

discurso indicaria a insegurança do narrador ao avaliar sua capacidade de bem contar uma história. Fenda onde o autor, Graciliano, deixa-se, talvez propositadamente, ser entrevisto. Remetendo-se à própria insegurança tormentosa com a qual “desvirginava o espaço branco do papel”20. Conseqüência da atitude perfeccionista com a qual assumia o ofício de escritor. Levando-o amiúde a estados de angústia, e, em muitos momentos, a menosprezar seus escritos, chegando ao ponto de desqualificá-los21. Por fim, faz-se importante a suposição de que neste seu segundo romance, Graciliano Ramos ainda não havia confessado-se como um escritor visceralmente autobiográfico. Não querendo assumir um diálogo direto com o leitor, cria então uma estratégia narrativa que consistirá numa negociação junto ao personagem-narrador acerca das preocupações reflexivas e discursivas do romance, as quais transitarão, numa dupla via, entre ele e seu espectro fictício.

14.

Capítulo 14 – “UM CAPÍTULO ESPECIAL POR CAUSA