• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

22. Capítulo 22 – D GLÓRIA

Mais uma desavença, desta vez com D. Glória na berlinda. Seu Ribeiro tratava-a por excelentíssima senhora, o modo cortês deste, no entanto, estava a léguas do tratamento grosseiro dado por Paulo Honório cuja língua sinceramente desarvorada não devia nada a ninguém. Para ele, D. Glória era uma presença inútil que, ainda por cima, queixava-se de tudo: dos ratos, dos sapos, das cobras, da

escuridão. Não aturava a vida no campo, vivia a gabar a cidade, no que

contrariava deveras a presunção de Paulo Honório, aumentando a ojeriza dele pela velha.

O capítulo toma rumo na calma magnânima apresentada por Madalena ao defender a tia. O que o faz narrando a história sofrida das duas, e enfatizando o cuidado e o empenho da tia na sua formação.

Em pouco mais de uma página o narrador, tomando as dores da sobrinha, consegue detalhar sucintamente o esforço e a fadiga passados por D. Glória no intento de torná-la professora. Esforço este posto abaixo pela ironia do marido:

professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava às dúzias.

O interessante nesta passagem é que ela poderia ser lida como um diálogo repetitivo de embate entre os dois personagens, mais acaba tornando-se especial, impressionando nossa atenção para os detalhes biográficos de Madalena recortados pelo narrador. Afinal de contas, como em todo casamento este também manifesta sua enfadonha faceta dramática. É a medida mesma deste recorte que despertará no leitor sua pulsão – atração pelo texto. A prosa de Graciliano, exalada oralmente pela personagem de Madalena, consegue focar, em detalhes luminosamente banais, a essência do que foi sua vida na relação enclausurada com D. Glória – espécie de tia-mãe. Assim, o narrador, em sua economia preciosista, ‘esquece’ de tecer outros comentários acerca da vida pregressa da

sobrinha, ao mesmo tempo que, neste exíguo espaço, consegue pintar um quadro social da época comparável às mais ambiciosas investigações sociológicas dos escritores naturalistas.

A abnegação de D. Glória pela sobrinha remete-nos àquelas personalidades que transferem qualquer anseio de satisfação pessoal em pró da perspectiva de realização da vida de uma outra pessoa a quem está ligada por intensos laços afetivos. Um altruísmo filial que, na verdade, encerraria uma postura profundamente egoísta. Por algum motivo, impossibilitada de concretizar seus projetos de vida, ab(nega)-se, destituindo seu ego de um sentido próprio, mantendo-o vivo na qualidade de simbiose, ou de colonização, de uma vida alheia. No momento em que Madalena substitui a dependência da companhia da tia pela do marido, a vida de D. Glória de pronto esvazia-se, e, não sabendo mais o que fazer com ela, passa a importunar a rotina concentrada dos habitantes-funcionários da fazenda. Poderia contentar-se, sem maiores preocupações, em ficar lendo

romances à sombra das laranjeiras, porém, sem possuir pendores literários, tal

atividade – da qual não reclamariam nove entre dez mandriônicos leitores – torna- se, para ela, sensaborosa. Logo, restando-lhe o papel de tia sem função, apartada que foi do papel de tia-mãe, transforma-se em apoquentadora da paciência alheia, sendo lícito concordar com Paulo Honório ao considerá-la uma chata de galocha.

23.

Capítulo 23 – “O HOMEM COLÉRICO”

“Tenaz, encarnizada em su objeto, sorda a los consejos de la razón, se exalta por los motivos más vanos y es incapaz de discernir lo justo y lo verdadero”.

Da Ira

Neste, o narrador, revisitando o tempo, admite ter sido alvo da cólera:

Misturei tudo e a minha cólera aumentou. Uma cólera despropositada.

A cólera é um sentimento estranho. Diferentemente da raiva, ela parece vir sem aquela motivação objetiva, freqüente e comezinha, comum no estar entre outros. Poderíamos pensá-la como um acúmulo indefinido de tensões conflituosas que repentinamente explodem ao soar de uma gota d’água. Estoura, num mister de expansão, fim de um ciclo. Aponta para o que temos em comum com o elemento natural, algo que em nós se perpetra semelhante às catástrofes impostas pelos deuses dos mares e das montanhas. Nestes, a harmonia da constância das ondas e a estática majestosa dos picos interrompem-se inopinadamente pela vinda de um maremoto ou de um deslizamento. Numa ira vingativa a qual nenhuma força ou inteligência é capaz de confrontar.

A princípio, o narrador explica o descontrole dos seus sentimentos ao enumerar as várias falhas encontradas na lógica de produção da fazenda: a quebra de equipamentos, trabalhadores moleirões, gastos desnecessários de Madalena, os quais afetariam a perfeita otimização dos fatores produtivos. Entretanto, no reconhecimento memorial do passado, admite o exagero deste escrutínio:

Atravessei a pinguela e fui ver o último produto limosino-caracu. Magreirão. Não estava, mas achei que estava.

Vemos que o narrador põe em questão a coerência das opiniões do personagem acerca da situação da fazenda, demonstrando a perda de um referencial na justeza de julgamento dos fatos ocorridos à época. Neste sentido, a cólera que rebentava na, e, a pessoa de Paulo Honório não provinha de fatores externos a ela, mas antes do caldeirão de barbárie onde fervilhava seu temperamento biliático; na iminência de explodir ao contato com a mínima fagulha. Uma fúria que, e isto merece ser ressaltado pois aparece recorrentemente no livro, só é aliviada quando do contato visual com o elemento natural – primitivo ou construído – da fazenda. Assim é no capítulo 21, quando, após a discussão com Madalena, põe-se a olhar o bebedouro dos animais, o leito vazio do riacho além

do sangradouro do açude e, longe, na encosta da serra, a pedreira..., e neste

trecho: virei o rosto e descansei a vista no pátio, muito alvo, coberto de pedra

cinqüenta. Madalena, ao contrário, tem o olhar preso no telhado escuro do estábulo.

Um alívio que, primeiramente, atinge o Paulo Honório tardio, escritor de si mesmo, no momento em que transforma a visualidade do espaço em poética pelo tratamento da linguagem. É, então, no lapso deste ‘intermezzo’ poético, no qual o sentimento colérico não se extravasa em descontrole oral, onde se impõe o silêncio da fala, que Paulo Honório encontra um momento de sossego; contemplando mansamente a harmonia sem drama da vida (inumana) da fazenda.

Os Papa-Capins

Antes de dirigir-me ao Alpendre onde Madalena, Padilha, D. Glória e Seu Ribeiro conspiravam contra minha pessoa, demorei-me um instante vendo um

casal de papa-capins namorando escandalosamente... Dentro de alguns dias aquilo se descasava, cada qual tomava seu rumo, sem dar explicações a ninguém. Que sorte!. Este fortuito comentário enseja uma breve digressão acerca da

contraditória moral, diretora do comportamento sexual do homem sertanejo. Vejamos: o advérbio “escandalosamente” empregado acima qualificaria o espaço impudentemente público onde se dá o namoro. Deste modo, a troca de carinhos, carícias e beijos, de uma relação apaixonada, seria passível de ser considerada uma aberração imoral. No entanto, o sexo à granel, promiscuo ou não, mas sempre feito às escondidas, é abertamente aceito e aplaudido enquanto afirmação da virilidade do macho. Manifestações de amor são repudiadas, vistas como safadeza, enquanto as ‘puras trepadas’27 são de certo modo glorificadas como proezas nas rodas de conversa masculinas.

Por outro lado, a conjunção interjeitiva “Que sorte!”, remeteria ao sentimento de inveja que, em certas situações de tristeza ou desespero, acomete os humanos quanto a sorte venturosa dos ‘irracionais’. No caso comentado, a felicidade devassa dos papa-capins no ritual de acasalamento fere os olhos do narrador em sua liberdade esplendorosa – indiferente aos códigos culturais cujos grilhões

27

É interessante como o uso deste verbo faz-se freqüente na prosódia coloquial do homem nordestino, referindo- se ao ato sexual “realizado com as negas”. Talvez pela semelhança da forma com que os animais machos cobrem as fêmeas.

transformaram o homem num animal imperfeito. Porque naqueles, como também no onipotente, liberdade e necessidade têm um único significado.

Para concluir o capítulo, e a título de curiosidade etológica, observamos que as araras, em oposição aos papa-capins, comportam-se até a morte como um perfeito casal monogâmico. De um deles, conta-se a seguinte história: era uma vez um casal de araras radiantemente inseparáveis. Com o advento da modernidade tecnológica eletrificaram o território em que viviam. A fêmea, talvez mais curiosa, pousada sobre um fio, inventou de bicar o outro, cometendo um erro fatal. O macho, separado de seu perpétuo par, após alguns dias desapareceu num vôo longínquo e solitário. Nunca mais soube-se dele.