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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

14. Capítulo 14 – UM CAPÍTULO ESPECIAL POR CAUSA DE MADALENA

A especial pessoa de Madalena justifica a existência deste capítulo, o qual, segundo o autor, poderia estar contido no anterior. Já, para o intérprete, este saiu- se um tanto esdrúxulo, com uma levada de bizarrice.

Se fosse a Germana ou a Rosa, podia-se azuniar uma cantada sem rodeios, mas uma professora, egressa da escola normal, e ainda por cima colaboradora do

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Expressão encontrada no primeiro romance de G. Ramos, Caetés. 21

cruzeiro. Escrevia artigos! Que insensatez!, não sabia a maneira de tratar com essa

gente.

O fato é que Madalena havia deveras conquistado o coração e a admiração do homem tosco. E este, envergonhado de enfrentá-la em pessoa, pediu ao Azevedo Gondim que fizesse o convite. Consistia em dar-lhe um cargo de professora em São Bernardo. Artifício comum nas pessoas inseguras quanto as relações afetivas, e que se utilizam de algum recurso de poder no intuito de uma conquista amorosa. Para convencer o Gondim, chamou-o a um jantar no hotel – toda cidade mediana há de ter um hotel localizado na praça, entre a igreja matriz e a prefeitura, denominado Hotel Central – . O Gondim, ao invés da refeição, preferiu acompanhá-lo bebericando cerveja, na companhia de amendoins torrados para apurá-lo o sabor.

A prática da mistura do fermentado de levedo com uma oleaginosa é comum no Nordeste: Desde o litoral, à beira da praia, até o sertão, na mesa dos bares à beira dos açudes e dos rios. Pode ser descrito na forma a seguir: pede-se uma garrafa de cerveja – o autor não se preocupou em citar a marca da mesma – , e um pacote de amendoim torrados ou cozidos com casca, (antigamente vinham enrolados num papel grosso, porém, com a modernidade este foi substituído por saquinhos plásticos), parte-se aquela com uma forte pressão dos dedos, ou dos dentes como fazem as crianças, encontrando-os revestidos por uma película vermelha. Os preguiçosos comerão os amendoins assim mesmo, os mais pacientes retirarão a película escolhendo os de aspecto saudável. Conclui-se a prática com um gole curto na cerveja, obtendo-se desta junção uma preciosa combinação de sabores.

Assim, enquanto Paulo Honório repleta-se com o jantar, o Gondim vai inebriando-se com o efeito da mistura até o ponto dela permitir eclodir sua verve jornalística – literária, quando, então, sai-se com a inspirada frase do último parágrafo: Arrumo-lhe a paisagem, a poesia do campo, a simplicidade das almas.

E se ela não se convencer, sapeco-lhe um bocado de patriotismo por cima.

Esta referência ao uso do álcool leva-nos em direção a um aspecto biográfico interessante de Graciliano Ramos, também relacionado com o caráter vital de seu fazer literário.

Sabe-se que era um fumante inveterado – fumava 04 carteiras de cigarro por dia – hábito que ao lado do café, sem dúvida influenciava a intensidade de seu ato criativo. A questão é que além do cigarro, ele também teria uma inclinação para a bebida, como constatamos em algumas passagens das Memórias do Cárcere. Vejam, não um costume alcoólatra, mas o uso da bebida, cachaça ou conhaque – parece que diferentemente do Gondim não apreciava a cerveja – , como fonte catártica e estimulante da árdua tarefa do escrever. A não preocupação com sua própria saúde é algo que vemos durante toda a narrativa de sua estadia nas prisões correcionais. Quer dizer, ao entregar suas reservas de energia não com o fim da auto-preservação, mas para manter a vitalidade de sua escrita, concluímos que doava a esta um sentido acima de qualquer outro. Conclusão baseada no fato espantoso que nos conta nas páginas de suas memórias, sintetizado aqui: após 04 dias alimentando-se parcamente, e dispondo ainda de uma certa quantia a qual poderia usar em benefício de seu bem-estar físico, prefere utilizá-lo na compra de uma garrafa de cachaça. Contribui para o espanto a confissão de estar sofrendo de uma hemorragia intestinal nas condições mais insalubres possíveis de um navio-prisão. Bebe-a, porém, não para satisfazer um vício de álcool, e, sim, no claro intuito de, usufruindo dos benefícios maleficamente energéticos dele, poder concentrar-se dedicado à escritura de alguns rascunhos de páginas. Não

interessava a ele apenas manter-se vivo, mas preencher a vida, escrevendo-a.

15.

Capítulo 15 – O ALGODOAL

A Colheita do Algodão prendeu-me duas semanas em São Bernardo

Enfim, tangido pela atração, Paulo Honório desavergonha-se e propõe a Madalena uma união juramentada. O casamento sairia um negócio supimpa.

Surpreende-nos no diálogo entre o futuro casal, a força de convencimento expressa pela lábia de Paulo no desembaraço de expressões populares, as quais unem, fatalmente, o efeito lingüístico sedutor à intenção desejada. O que nos leva

a constatação das duas posições discursivas pelas quais é matizado o personagem, a saber, aquele construído nos diálogos pela força elocutória de uma oralidade atrelada a sabedoria popular, dotando-o de um agudo bom senso, e o que é formada pela descrição distanciada do narrador no intuito de uma caracterização de sua própria personalidade, majoritariamente expressa sob a forma de solilóquios.

Um superposicionamento de vozes que marca este segundo romance22 do autor com a auréola do moderno, especificamente no tocante a uma miscigenação do emprego de uma linguagem culta-erudita, e um falar popular-coloquial. O que notamos, na própria escrita do narrador quando por exemplo constrói a frase da pág. 86: A omoplata adaptou-se novamente ao pano coçado.

É difícil, se não visto de perto, conceber o algodão como uma planta: mas é do fruto de um pé mediano, cerca de um metro e meio, de onde origina(va)-se nossa indumentária. Um fruto que não é uma fruta, pelo menos no âmbito de não ser comestível, mas de grande serventia para nos manter o calor, e o pudor.

O algodão brota com a forma mesma que o encontramos na farmácia mais próxima: uma pequena rodela branca – ou marrom, dependendo da espécie – , macia e sem cheiro. Brota em grande quantidade, e um grande algodoal, visto de longe, assemelha-se a um vasto tapete alongando-se ao perder de vista. É um tipo de plantação bastante comum no semi-árido nordestino, resistindo bem a seca, mas sensível às pragas, necessitando de um cuidado eficaz no manejo. De difícil colheita, os brotos têm que ser recolhidos um a um, tirando-se a espinhosa capa protetora – os capulhos – , provocando reiterados ferimentos nos dedos dos colhedores durante o período de safra.

O algodoal de São Bernardo, cobrindo o campo até o sopé dos morros, na florada dotava a fazenda de uma alvura de paz, no contato de (leite) de suas materiais potencialidades.

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Em Caetés, G. Ramos ainda poderia ser considerado discípulo formal de uma estética realista, aos moldes de Eça de Queiroz.