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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

24. Capítulo 24 – COMECEI A SENTIR CIÚMES

Comemorava-se em São Bernardo os dois anos de casamento do casal antagonista com um peru acompanhado de conhaque. A beberagem, aos poucos foi tirando as peias da língua dos presentes a mesa, os quais, por sinal, compunham o conjunto dos integrantes civilizados do romance. Com o verbo corajosamente desabrido,a conversa redundou naquela mesma discussão política comentada no capítulo 09, fomentada por uma profusão de idéias disparatadas, com as quais o escritor encena o discurso capenga das pessoas elevadas a autoridade das instituições locais: a igreja, de Padre Silvestre; a imprensa, do Gondim; a escola, de Madalena e do Padilha; a justiça, do advogado Nogueira; e a propriedade, de Paulo Honório. Notamos que enquanto se dava o falatório a atenção do último voltava-se para os trejeitos do Nogueira e para o sorriso servil do Padilha, mas, principalmente, para a linha de visão do olhar de Madalena. Como se quisesse confirmar aquela idéia indeterminada que tinha saltado-lhe à cabeça, antes, no escritório, e estivera por lá um instante quebrando louça. A imprecisão da idéia toma uma forma discernível quando Paulo Honório, de sobressalto, compara seu físico rude de lavrador, com o aspecto garboso do João Nogueira.

Vemos aqui, nesta comparação estética, o padrão habitual dos homens inseguros no território emotivo da relação com o sexo oposto, os quais atribuem à fisionomia corporal, a causa de uma inadequação. O olhar especular que incide nos des(contornos) do corpo – assimetrias e diferenças em relação a um padrão estético estabelecido – é ferido em sua veleidade narcísica, provocando, através de um desequilíbrio na estrutura imaginária do par dicotômico belo-feio, um sentimento de inferioridade e menosprezo comparativamente a um outro melhor ou superior. É advindo, talvez, deste estado negativo do ser, que irromperia o complexo de inveja e ciúmes, o qual, sem exagerar, poderíamos apontar como das mais comuns afetações humanas.

Reforça-se aqui, a opinião de que Paulo Honório nutre por Madalena um tipo de sentimento para ele dantes desconhecido. A desconfiança imputada a ela é digna de um sentimento que envolve algo além do medo culturalmente codificado do homem traído. Numa estrutura patriarcal fundada na funcionalidade das convenções instituídas, não haveria espaço para arroubos sentimentais, e sim uma intensa convicção do que é certo ou errado enquanto lei, enquanto tabu. A desconfiança, portanto, não pode ser carregada de meias-tintas, ou seja, de dubitações; o adultério, assumido como crime, tem que ser flagrado para poder ser julgado. Paulo Honório, obnubilado por sua baixa estima estética e intelectual, pré-julga Madalena, condenando-a de antemão: exagerei os olhos

bonitos do Nogueira... Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena... e comecei a sentir ciúmes.

Neste momento é interessante observar como o personagem distancia-se do modelo estritamente categórico do tipo patriarcal sertanejo, para aproximar-se de outros personagens arquetípicos da literatura, como o Othelo, de Shakespeare, ou o Bentinho, de Machado de Assis. Em Othelo, vemos o espírito do personagem compartilhando da cor ob(escurecida) dos mouros, ao ponto de, sentido-se ilusoriamente incapaz de manter o amor de Desdemona, cair na armadilha do malévolo Iago; mesmo sendo rei de Veneza, é traído pelo destoar de sua pele contrastante. Assim como o Bentinho machadiano, são homens que estão sempre a pisar em falso, habitados por uma susceptibilidade à ilusão – pessimista ou otimista – que os arrasta como uma nau no meio da tormenta.

Este comentário adequa-se à uma concepção da realidade como um pacto ou acordo coletivo firmado por comunidades semântico - culturais. Se, por algum motivo, um choque cultural, ou mesmo uma falha perceptiva – os dispositivos lingüísticos e imagéticos de uma dada pessoa tenderem a distanciá-la deste compactuar coletivo de um ‘estar-sentir o mundo’, esta poderá tornar-se, numa palavra, uma insatisfeita, na qual a faculdade imaginativa não se contentará com o limite real – racional de organização das coisas. Menos como um vidente, que se arroga em ver aquilo que lá não está, e mais como um visionário, empurrando a parede do real sempre para além.

Quando Paulo Honório desilude-se com a esposa, fixando no antes considerado amigo Nogueira o sentimento destrutivo do ciúme, ele, na verdade, cria um estado ilusório negativo, que faz enxergar os fatos de modo inteiramente pessoal. Revelando, assim, o grau de estranhamento sentido perante os que compõem a mesa. A ideiazinha imponderada, “que quebra louça” vai progressivamente tomando forma, até tornar-se substantiva. No modo singularmente ‘equivocado’ com o qual encara Madalena no decorrer do jantar é que se constata o desvio de um padrão de normalidade do qual se origina um princípio de individualidade. Divergindo-o de matrizes de comportamento passíveis de colocá-lo num leito de procusto. A riqueza ficcional do personagem viria, portanto, do mergulho na natureza do seu ser, que narrando-se retrospectivamente, descobrirá o desnível em face do outro, que o torna único e mesmo. Uma narrativa que revela suas mais íntimas fraquezas e o faz confessar a sensação de desvalor que o tomou durante o jantar celebrativo.

Da mesma nobreza literária veste-se o personagem de Madalena. Entre seus pares poderiam figurar a Ana Karenina, de Tolstoi; a Madame Bovary, de Flaubert; ou a Capitu machadiana. Com a notável diferença que estas foram punidas por transporem a barreira moral da fidelidade conjugal – no caso de Capitu uma in(certa) adultera –, enquanto Madalena pune-se assaz severamente ao não suportar as imaginárias suposições do marido acerca da vileza de seu comportamento matrimonial. É, pois, nas razões de seu premeditado ato suicida que a personalidade de Madalena se singulariza, adquirindo um relevo que a distancia das tantas outras Madalenas, as quais, na expressão de Jorge Luis Borges, “serão debaixo da terra o que hoje são, na terra”. Madalena, na

premeditação de seu ato final, une, a um só tempo o espírito pusilânime da fuga e a coragem da busca da libertação.

Lá no Nascedouro do pensamento filosófico, encontraremos uma idéia que tentaria dar um significado à relação antagonística do casal com o mesmo fundamento de uma explicação genética da ordem cósmica. Ela está nos escritos do pré-socrático Empédocles de Agrigento – aquele que se uniu ao universo atirando-se nas larvas do vulcão Etna. Diz ele que tal como o mundo físico, o da alma também se regiria por dois princípios: a filia – o amor –, e neikos – a discórdia. Entretanto, “o dualismo filia – neikos era comandado por uma concepção monista em que neikos era hegemônico, na medida em que constituía sua condição de possibilidade28”.

Ora, tal como os filósofos gregos interpretavam os fenômenos da natureza analogamente aos da vida social, poderíamos transpor a predominância de Neikos, enquanto princípio conflituoso, à filia existente entre Paulo Honório e Madalena. Constata-se, sim, uma relação afetuosa entre os dois – talvez pousada mais numa admiração respeitosa que numa natural simpatia. Porém, o que realmente movimenta o romance, apimentando-o com os momentos de tensão necessárias ao desenrolar de seu tênue fio novelesco, são as disputas dialogantes – seguidas por arrependimentos momentâneos –, que os dois travam pelo domínio de um sentido. Ou seja, é da convicção do se estar certo que se firmará a crença sedimentada de seus solipsismos identitários,

Uma batalha indigente, sem triunfos ou vencedores, sem soluções estabelecidas, onde realmente Neikos parece confirmar sua peremptória veracidade.