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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

11. Capítulo 11 – SEM TÍTULO

Não me ocupo com amores, devem ter notado.

Antes de tratar da pretensa não inclinação do personagem para o amor, ressaltaria a sombra machadiana que ronda este capítulo. Na frase reportada acima constatamos a auto-referenciação do personagem-narrador no melhor estilo Brás-cubas.

Na redundância do complemento “devem ter notado” o narrador parece querer enfatizar uma faceta sua, solicitando ao leitor uma maior atenção para com ela. Como se requisitasse uma compreensão mais acurada para uma questão que, diante da negação de sua importância – os amores não tomariam o tempo dele –, revelaria justamente sua fragilidade.

Este pedido indireto e sutil, de ajuda ao leitor, extrapolando a fronteira fixada entre obra e leitor, insere a narrativa numa espécie de linhagem do romance moderno. Nesta direção, vemos romper-se qualquer promessa de rigor tipológico do personagem central, o qual se narra incompleto e incerto. Com efeito, a relação de Paulo Honório com as mulheres, e a posterior história de seu casamento com Madalena, desconstruiria a categorização do homem machista, e o respectivo discurso ligado a ela – o tratamento da mulher como objeto. A afirmação de Paulo “mulher é bicho difícil de governar”, deve ser lida como ‘signo truncado’,

apontando em outra direção que a óbvia postura do homem-medusa, o qual só consegue interagir com o outro na medida que o coisifica. A predicação do gênero feminino contida na frase acima trairia sim, a insegurança com o que lhe é desconhecido, revelando a falta de jeito para com as mulheres. A brutalidade de sua vida pregressa, no seco costume de só estar entre homens, faz com que as poucas aproximações com o sexo oposto tenham um caráter puramente sexual, desprovidas de sentido afetivo.

O fato é que no estágio mediano de sua vida, de homem realizado pelo poder econômico, instalou-se-lhe uma insatisfação, que ele mesmo não se dá conta qual seja. Talvez traduzida pela necessidade gregária do humano de compartilhar a vida com o outro, fugir da solidão monádica. Como para cada um este sentido toma uma conjunção própria (pode-se querer partilhar os ideais, as vontades, os objetivos, ou apenas o corpo), para nosso personagem significaria compartilhar seus bens, sua propriedade. Neste caso, surgiria como preponderante da busca de uma companhia, a vontade de conceber um herdeiro. Pois, qual o sentido da construção de um patrimônio senão repassá-lo a um filho- herdeiro, perpetuando-o sob a égide de uma consaguinidade familiar. Por outro lado, não podemos desvincular a busca por um herdeiro da formação do triângulo familiar estabelecido pelo casamento, pela vida de casado. Já que ele poderia simplesmente ter um filho para tal finalidade. Enfim, observaremos que o intuito de Paulo Honório ao casar-se não se filiava apenas ao desejo de conceber herdeiros, posto que, após o suicídio de Madalena, o primogênito quedou-se a deriva, sem qualquer resguardo além da companhia de Casimiro Lopes.

Numa terra onde a Zoofilia é grotescamente eventual, a sexualidade está por completo dissociada das ilusões românticas trazidas pelo projeto burguês da era moderna, convencionadas na acepção atual da palavra amor. O tipo de sexualidade comum na sociedade patriarcal nordestina é remanescente do grande esforço colonizador português – fazia-se mister reproduzir-se, não importando com quem ou como.

A moral monogâmica consagrada pelo casamento enquanto instituição só era resguardada no intuito da manutenção das propriedades pertencentes aos recém- formados brasões coloniais da nova colônia. Era como se a tradição cavalheiresca do amor cortês não tivesse chegado à nova terra, onde os portugueses, ao descer

das caravelas, escorregavam em índias nuas17. Esta despreocupação, ou simplesmente ausência de um sentimento amoroso, no contexto geral do homem nordestino, para o qual o casamento teria apenas o sentido objetivo da constituição de uma prole oficial – pois fora dele continuava a emprenhar as caboclas moradoras de seus vastos limites senhorias – , explicaria a frase inicial do capítulo: “não me ocupo com amores”. Isto num primeiro momento pois identificaria o Sr. Paulo Honório com o estereótipo do homem machista nordestino; após este, então, alça-lo-á à condição de persona contraditória quando, após a morte de Madalena, e mesmo antes, sem ter consciência disto, descobre-se có(movido) pela figura da esposa. A conveniência genérico-sociológica do personagem é, assim, implodida, assumindo a complexidade do ser livremente perdido em sua individualidade.

Poder-se-ia afirmar que, pela necessidade sócio-histórica de sua condição, o ‘machista-nordestino’ não fugiria ao conjunto ideológico-institucional dos valores e crenças nos quais se formou. Quer dizer, não teria espaço existencial para cogitar juízos morais, e, por efeito, sofrer inquietações decorrentes de uma desconfiança com sua natureza ou comportamento. Ao contrário, viveria seguro, insistindo na perpetuação de seu mundo pela transferência de suas crenças e valores aos descendentes.

Não obstante este tipo geral, iremos encontrar senhores de terra nordestinos que, de algum modo, fogem as características observadas acima. Talvez porque oriundos de uma outra linha migratória mais recente que a portuguesa. Para exemplificar a exceção confirmadora da regra, trazemos à baila a história de um judeu alsaciano que emigrou para o Brasil fugindo da guerra franco-prussiana de 1872. Adotando o ofício de mascate conheceu uma moça amulatada no cafundó de um interior nordestino, casando-se e fixando-se como proprietário de terras. Renomado pela fidelidade à esposa, originou uma linhagem de homens respeitados pela mansidão de caráter, que em nenhum momento alteravam a fala pacífica na necessidade de exibir autoridade.

Depois de ter se remetido a filha do Juiz Magalhães, D. Marcela, apontando- lhe os defeitos: o que tinha de ruim era usar muita tinta no rosto e muitos ss na

17

“O europeu saltava em terra escorregando em índia nua”. Em FREYRE, Gilberto. Casa Grande e

conversa; utilizando-se, assim, do costume de traduzir as pessoas pela ênfase

metonímica de suas imperfeições, o narrador encerra o capítulo 11 com um parágrafo digno do mais puro aroma machadiano: esforcei-me por trazer de novo ao

espírito as tintas e os ss de Marcela. Alguma semelhança no ar com o estila do

autor de “conhecia-o de lugar e de chapéu”.