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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

4. Capítulo 04 AS DUAS DECADÊNCIAS

A figura decadente de Luis Padilha é introduzida a partir de sua descrição física: bichinho amarelo, de beiços delgados e dentes podres... dedos magros,

queimados, de unhas roídas.

Este ângulo bisonho da superfície corporal do personagem estende-se ao plano espiritual, definindo involuntariamente seu caráter.

É comum em grande parte dos prosadores a composição de uma imagem ruim ou negativa do espírito humano avultada pela descrição de elementos feios, bizarros, da estética corporal. Diria-se que alguns escritores considerados realistas como Flaubert, Dostoievski, Thomas Mann, Camus, entre outros, gostam de carregar nas tintas ao exagerar a “defeituosidade”, ao limiar do monstruoso, do repertório da fealdade humana. A compensar, talvez, a assepsia com que foram idealizados os principescos heróis românticos. Se, na Grécia e Roma antigas, as deformações só eram pertinentes ao cabedal imaginário dos seres mitológicos - monstros antropomorfizados - ; nos mestres pintores do fim do medievo, como Bosch e Brueghel, toda uma teratologia começa a ser representada (vide os seres nanicos e rotundos criados por Brueghel). Retratos de homens condenados ao horror por seus erros e pecados terrenos? Ou pura mimesis de um real bestificado?

O fato é que a assimetria marcada ou por uma exorbitância protuberante das formas, ou por uma achatamento destas, por um excesso ou uma falta, caracterizarão uma decadência corporal imediatamente associada a uma desvalidez do espírito, a um mal do caráter, a uma personalidade vulgar, enfim, a um ser ruim. Sendo indiferente se esta baixa condição estética esteja vinculada a um fato genético –O Corcunda de Notre Dame - , ou a uma degradação da existência decorrente de doenças, maus tratos, etc – a prostituta Marcela das Memórias

Póstumas de Brás Cubas -; no entanto, no caso de uma deformidade genética, como

a do romance de Victor Hugo, o personagem é de antemão expiado de sua culpa: o conflito trágico de Quasímodo está no fato de, mesmo comportando-se como herói romântico, ser desvalorizado e rejeitado por seu estigma físico.

Verificam-se duas concepções de realismo na ênfase da constituição física dos indivíduos-personagens: a do escritor realista-naturalista, preocupado em ser o mais fiel possível no retrato da miséria humana e no preconceito social associado a ela; e a da, diríamos, realista existencial, cujos livros expressariam uma intenção voluntária de se servir destes retratos para nos confrontar a uma condição de miserabilidade inerente ao próprio fato e essência do existir. Partindo desta dicotomia, postularíamos que em São Bernardo as duas concepções manteriam-se em equilíbrio, simultaneamente, uma não se sobressaindo a outra, porém reforçando-se no substrato estrutural do romance.

A Decadência do Padilha

O Padilha era um pândego. Do pai, Salustiano Padilha, herdou a carga de uma obrigação moral: a de tornar-se doutor, formando-se em alguma das ciências positivas da época: direito ou medicina. Só assim far-se-ia cidadão respeitado entre seus pares. Na hierarquia dos homens e das classes, os que possuíssem um título – símbolo de uma pseudo-sabedoria, pretenso domínio de palavras obscuras e obtusas – ingressariam numa “casta” superior. Valor puramente convencional, mas que fecharia o ciclo de poder dos senhores da terra, agora também senhores do saber. Estes a justificar a existência daqueles. O Padilha, coitado, não prosseguiu o ciclo.

Por algum motivo, debilidade ou preguiça, o Padilha não dava pra nada. Incapaz para o trabalho, fez a ruína do pai, que morreu de desgosto. No entanto, em sua indolência, era uma figura intrinsecamente humana. Ora, porque preferir à alienação do prazer presente, a “pré-ocupação” com o trabalho. As cigarras estão certas, mas o criador era um ser laborioso e quis que seus filhos seguissem o exemplo; o futuro das cigarras cantantes só poderia ser a fome e a miséria..

A boemia e as festas, o álcool, as danças, o jogo, as mulheres, fazem parte da cultura patriarcal nordestina. Existem, porém, limites. E, quando ultrapassados, adentra-se no território absurdo do vício. Daí por diante os papéis institucionais não mais funcionam de modo devido, afetando o giro normal da roda da constância cultural. A questão é que por um motivo genético – “tara hereditária” -, assomado por sua circunstancialidade, alguns escolhidos viciam-se. À suas demandas singulares se acoplará uma matéria externa, com o imenso e estranho poder de comprimir o tempo presente, fazendo do espaço ao redor um buraco negro, aliviando-os e alienando-os do princípio brutal da realidade. Padilha certamente mantinha consigo a pesada frustração de não se enquadrar no projeto de pessoa idealizada pelo Pai- Tradição, ao qual as características de sua personae não atendiam. A possível conjunção causal de uma dada índole temperamental com um projeto de vida mal sucedido fizeram do Padilha um típico esbórnia.

O combate da estrutural inércia repetitiva de um hábito negativo, em termos econômicos, contraproducente, definindo um padrão viciado, só terá efeito no âmbito de uma auto-crítica. Ensejando a aceitação do vício como um grave problema. Recurso que não desatará o nó, mas levará a uma atitude de humildade e bom senso pela qual os princípios do prazer e da realidade possam equilibrar-se, estabelecendo-se negociadamente. Uma dialética fundada num processo perpétuo de doutrinação e atenção perante si mesmo.

Esta espécie de “profissão de fé” passava a léguas do Padilha. Este só abandonava a rede para cair na pândega. A imagem, descrita neste capítulo, da festa no terreiro da fazenda, onde, ao redor da fogueira, Padilha dança encangado

com duas caboclas, entornando ao mesmo tempo uma garrafa de cachaça ao ritmo

da música dos batuques, é a imagem do indivíduo realizando-se nas profundezas ctônicas do desejo. Depois, entregue e derreado, é carregado para a cidade no carro-de-boi, a bater o quengo a cada catabi. No dia seguinte, o da ressaca braba,

acordava como o sonhador otimista, infundindo-se planos mirabolantes e grandiosos, caindo na armadilha essencialmente humana das ilusões longínquas.

O felino espreita a presa, e porquanto conhece bem suas fraquezas, ataca no momento e tempo exatos. Assim agiu Paulo Honório ao armar seu plano maquiavélico e infalível. Cercou o Padilha, incutindo-o delírios de grandeza à base do dinheiro fácil, caçando-o no que tinha de mais penoso: sua prodigalidade. Agindo como o perfeito predador capitalista, expropria São Bernardo do último proprietário pertencente a uma estirpe de antigos senhores rurais daquelas terras.

Sabe-se da terrível voracidade com a qual alguns indivíduos desfavorecidos em sua posição social tornam-se nouveau riches no decorrer de uma vida pautada por crime e extorsões. As grandes linhagens das famílias que contribuíram para elevar a América protestante ao patamar de grande nação capitalista seriam o maior exemplo deste perfil de ascensão econômica. Entre elas, pode-se citar a história dos Rockfellers, confundindo-se com a própria história dos E.U.A.

Retomando a triste figura do Padilha, frisamos na pág. 24 um “achado” de genial expressividade por parte de Graciliano Ramos: São Bernardo era para ele

uma coisa inútil, mas de estimação: ali escondia a amargura e a quebradeira. A

expressão “coisa inútil” retira toda razão instrumental concernida à fazenda por Paulo Honório – a de uma empresa produtiva -, convertendo-a apenas num lugar, um espaço ideal para “se esconder a amargura e a quebradeira”. Atentamos que o uso do verbo esconder não significa curar a amargura. O que levaria a indagação: será que o motivo de toda a fraqueza do Padilha não residiria no sofrimento constante de uma inelutável amargura? São Bernardo seria, então, o lugar onde, no confortar-se do balanço de uma rede encardida, ele sentia-se bem, ou pelo menos, melhor. A visão pejorativa de um Padilha imprestável é, no efeito estético – significativo da passagem citada, filtrada por uma ótica compreensiva de seu temperamento. Deslocando a estereotipia moral de um personagem considerado bom ou mau, feio ou belo, para a peculiaridade de seu traço humano. Se a relação do Padilha com a fazenda baseava-se numa total inutilidade produtiva, consagrava- se, por outro lado, em sua imprescindível vocação afetiva. Uma relação de estima, através da qual aliviava o gosto amargo da vida que levava consigo.

Esta mesma passagem impõe, outrossim, um importante questionamento teórico. Nela, descobrir-se-ia um vestígio do autor, G. Ramos, vicariado no narrador

Paulo Honório. Nota-se que o tratamento dado ao Padilha apresenta uma benevolência em sua abordagem. Uma tentativa de compreensão de sua psicologia expressa num tom afetuoso. Distinto, portanto, daquele com o qual o Padilha é introduzido e relevado no decorrer da história. Esta transformação do sentimento da narrativa é de fato curiosa. Uma mudança que teria sua provável explicação na estratégia montada pelo autor para a elaboração do tempo especificamente diegético do romance, complexificada no distanciamento tomado pelo narrador em sua auto-fabulação. A diegese característica à forma romanesca baseia-se na intenção de provocar um efeito de identificação da história com o leitor. Se, como vimos anteriormente, este procedimento é desconstruido pela inserção de diferentes dimensões temporais que conjuntamente estruturarão a narrativa , o preço a pagar será o de uma ambigüidade em relação a origem da voz que estaria efetivamente narrando3. Deste modo, em São Bernardo, o efeito de identificação ocorre quando o (Paulo Honório-narrador), num lapso temporal, encarna o personagem homônimo vivenciando a história. Tal efeito, por sua vez, esvazia-se, quando o narrador Paulo Honório tece comentários sobre o passado na perspectiva do tempo em que a história está sendo narrada. Neste último caso, o leitor, submetido ao processo de simulação de um tempo distanciado, vislumbra, na pista deixada pelo narrador, a figura do autor pretendendo esconder-se sob os auspícios daquele. Descortinando-se, assim, a irmandade entre criador e criatura.

A “São Bernardo” decadente

O engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são

taperas. Decerto esta São Bernardo decaída não se assemelha a do velho

Salustiano quando Paulo Honório nela trabalhara.

Naquela época, mesmo esbodegado e dolorido após um dia de sol a sol no cabo da enxada, com a cabeça mal coberta e o corpo a ferver, não deixava de sentir uma admiração pelo resultado do trabalho despendido, pela ordem imposta ao território bravio da fazenda. No fim de tarde, a água fria do açude a umedecer

3

Tal ambigüidade a respeito da localização da presença da voz narrativa – a qual controlaria a vida e o mistério da história – é uma característica central no aparecimento de um novo modo de ser do romance, que qualificará o denominado romance moderno.

sua pele gretada, e a relaxar seu instransponível corpo de sertanejo solar, invadia- lhe uma sensação de indivíduo explorado, ao ver o bom trabalho feito recompensado por tão pouca paga, o que já revelava uma inata perspicácia.

Daquela antiga imagem que incorporara, acompanhando-o em suas lutas épicas sertão afora como o lugar a ser alcançado, restavam as ruínas: a terra

excelente de São Bernardo só tinha mata, lama e patós.

Portanto, à decadência do Padilha correspondia a da propriedade, outrora nobre, retrocedida em sua desgovernança a um estado incivilizado. Um regresso que a Paulo Honório causava desprezo. Assim como desprezo causava a figura amarela e inconseqüente do Padilha, apaticamente esparramado sobre a rede encardida, no que restava da antes vistosa sala de jantar; aliás, único aposento que sobrara da antiga Casa Grande. Os quartos há algum tempo tinham ruído, as paredes caídas formavam monturros de tijolos. A sala, no entanto, teimava, instável, em permanecer. Ia, deste modo, protegendo o Padilha do aguaceiro ininterrupto dos dias de chuva. Ele, contentado, apenas desviava-se das grossas goteiras do telhado incompleto.