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CAPÍTULO 3: DE UMA ESTÉTICA RECEPTIVA FUNDADA NA

12. Capítulo 12 – 02 SEMANAS NÃO SOMAM 15 DIAS

Necessitando resolver uma questão legal à espera de uma penada nos autos, ‘nosso herói’ resolve fazer uma visita ao Dr. Magalhães, Juiz de Direito. Por sob esta visita de cortesia assobiava as curvas da filha, D. Marcela – . Desta forma mataria dois coelhos com uma só cajadada, novamente a visão prática das coisas. Uma vez lá deparou-se com a brilhante oposição argumentativa do douto juiz quanto a exatidão do número de dias que compõem duas semanas, tornando, o que era uma inconseqüente conversa de salão, num qüiproquó sem fim. A figura do ilustre juiz, já ridicularizada em seu perfil estético: um nariz grande, um pince-nez

e por detrás do pince-nez uns olhinhos risonhos, soçobra de vez na reles vaidade

de teimar18 em discutir com a filha questão tão banal. Além disto, notamos uma crítica ao espírito positivo do juiz quando este manifesta seu repúdio pela literatura dizendo-se imparcial e frio no exercício de sua função jurisdicional. Para, depois, revelar-se uma fraude, quando fica claro sua faceta venal ao fazer pesar a balança para o lado de Paulo Honório, numa pendenga jurídica não explicitada na história. É, pois, na reunião das autoridades viçosences na casa do juiz Doutor Magalhães que Paulo conhece pessoalmente Madalena, recebendo desta um sopro inesperado de paixão. À dona Marcela, possuidora de uma peitaria, um pé-de-rabo,

uma toitiça!, prefere intimamente as lindas mãos e os grandes olhos azuis da

mocinha loura.

De resto, observamos neste capítulo a importância, um tanto falsa, que a arte literária assumia naquele contexto. As senhoras liam os romances a fim de

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“Uma teimosia de jumento”. Se é que este simpático e querido “irracional”, de presença tão marcante numa antropologia da vida do homem nordestino, mereceria esta depreciativa comparação.

preencherem seus vazios fastidiosos, em busca de licenciosidades só permitidas no espaço-tempo literário. E, quando em vez, comentar os enredos nos encontros sociais, como acontece hoje, quando as conversas giram em torno do último capítulo da novela; como a suprir, mesmo com as mais banais e repetitivas tramas, uma insaciável necessidade do novo, uma curiosidade voraz por parâmetros e comportamentos glamourosos, os quais teriam a função de substituir a inevitável insatisfação rotineira da vida que se leva. Já o fato de, à meia-noite, no hotel, o advogado João Nogueira discutir poesia com o Azevedo Gondim, irá agora remeter- nos não mais a prosa romanceada e sim a arte poética, esta inflamadora de nervos e corações, de um certo modo sempre associada ao espírito boêmio – arrivista da época. Não informando-nos em que estilo de época poderia enquadrar- se o tema poético em questão, suporíamos, hipoteticamente, tratar-se de uma poesia parnasiana, porém de inspiração romântica à Bilac; isto se acreditarmos que os arroubos modernistas ainda não pautavam as discussões culturais da elite local. Como também seria curioso saber quais os pontos teóricos de discussão dos dois personagens, já que lhes sabemos contextualizados na mentalidade tacanha da intelectualidade descrita no romance por Graciliano Ramos. Por outro lado, o que supõe-se é que naquele círculo a poesia era considerada de maior valor literário que a prosa; não a prosa política das discursos ou a dos ensaios positivos de cunho nacionalista, mas àquela publicada nos folhetins dos jornais, que incitava a curiosidade dos leitores até o próximo capítulo publicado19.

Neste momento seria pertinente fazer-se uma colocação sobre um tipo de leitura impregnada antes pela pura vontade curiosa do espírito em acompanhar o desenrolar de um enredo, do que pela penetração crítica no conteúdo de idéias ou na caracterização estilística do autor, ótica central de visada do texto pela crítica literária. A princípio esta tenderia a taxar o debruçar-se não reflexivo sobre um romance como uma leitura superficial. Por outro lado, se desconstruímos o sentido arraigado da binariedade dos termos superficial/profundo, ou vertical/horizontal, veremos o quanto estas oposições são carregadas por pré- concepções intelectualizantes. A função fabuladora de uma história, desde as narrativas míticas da antiguidade consiste no fator preponderante da atração quase hipnótica que se tem numa leitura aprazível. É, portanto, esta espécie de

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Como sabemos, nesta forma de publicação incluíam-se grande parte dos escritores brasileiros do passado, os quais só depois de lidos nos jornais, viam suas obras publicadas em formato de livro.

sensação de prazer não sensitivo, pois decorrente de um fenômeno abstrato, que prolongará o tempo, suspenso na concentração de uma leitura. O corpo é transportado para um real imaginado cuja fabulação suprimirá a atenção no espaço circunstante. E tal desatenção alienadora do presente factível, só durará enquanto perdurar o fundamento de curiosidade pela intriga do texto. Alheamento que se daria ou integralmente, no congelamento dos cinco sentidos - sentinelas, inclusive os olhos que serviriam apenas como instrumento captador, em favor do trabalho do sexto – a imaginação; ou parcialmente, com o envolvimento de todo o corpo, como o leitor preconizado por Roland Barthes, que levanta os olhos ao ler.

Esta perseguição pela resolução da história, pelo jogo de soluções trazidos no desenvolvimento da narrativa romanceada, e que traga o leitor, impaciente para chegar ao fim do livro, consistiria um modo de leitura menor, podendo ser tachado de superficial? Está claro que a conformidade estrutural do livro encaminhará certos níveis de recepção, porém mesmo os livros mais auto-referenciais em sua construção formal podem ser lidos com uma certa voraz curiosidade pela trama por parte de indivíduos que manterão a mesma relação diegética com o processo mimético-literário, de um, por exemplo, enredo policialesco com uma prosa, digamos, mais auto-centrada numa experienciação lingüística ou de construção narrativa. A recepção de uma obra tem, deste modo, uma ampla variância que dependerá da confluência de imaginários entre (autor – obra) e leitor, o qual leva até o texto, como discorrido na primeira parte, todo um depositário de imagens memoriais, como imemoriais, na medida de sua incursão pela misteriosa articulação dos signos literários. Outrossim, na própria intenção crítica de uma leitura não se pode descartar a existência de um nível de leitura descompromissado, verificando- se a impossibilidade de separação entre uma reflexão crítica preocupada em adequar a obra à prerrogativas teóricas, a um olhar “voyeurístico” seduzido pelas conjunções simbólicas daquela. Uma sedução que se dá tanto em sua dimensão ideológica, ligada ao conjunto das idéias expostas, como pelo modo em que estas são dispostas pelo texto, ou seja, o plano formal de uma escolha dos elementos signicos-narrativos, e de suas combinações ao longo da obra. Deste modo, o texto, estruturado em torno de sua essência criativa ético-estética, proporia uma variância de níveis de leitura, à qual os leitores efetivariam suas próprias escolhas receptivas. Se então, supuséssemos arrogantemente um modo ideal de leitura, pensaríamos no

indivíduo que, no debruçar-se sobre um livro, aliaria a assimilação reflexiva de seu contexto à admiração sensível com a forma com a qual ele é proposto. Gerando em seu espírito a repercussão compreensiva de um dado ‘conteúdo formal’. O gênio da criação literária estaria nesta vocação do escritor de atar a força de uma idéia à perfeição de uma forma, a qual lhe dará um extraordinário suporte significativo.

De certo, as senhoritas reunidas na casa do Juiz Magalhães a discutir o último romance lido, enquadrariam-se num tipo de recepção comum as artes fabulatórias – literatura, teatro, cinema –, a saber, um ensejo de divertimento que dispersaria a normalidade costumeira da moral, pela expansão dos processos ilusórios da consciência imaginária. A necessidade de diversão, no sentido de um extravasamento do lado emocional-afetivo do ser, manifestar-se-ía neste caso pela forma hipostática de uma leitura isolada, no qual o processo mimético- representativo substituiria, não sem um certo vazio, o contato impetuoso com a concretude da vida presentificada.

A sensação que passa o diálogo entre Dona Marcela e Madalena é a de uma extrema fraqueza diante da impossibilidade de suplantarem os costumes opressivos das entre-paredes da casa.

Concluindo, apontaríamos na passagem que introduz a pessoa de Madalena, a imagem de irremediável melancolia que a acompanhará por todo o romance, culminando em seu suicídio. E que, por sua vez, a elevará acima das obtusas discussões apresentadas na casa do juiz Magalhães.

À indagação do advogado Nogueira se Paulo Honário acredita em eleições, deputados ou senadores, ele arrisca uma resposta iniciando-a com a frase: “ – A gente se acostuma com o que vê”. No desenrolar da resposta advém uma reflexão um tanto disparatada, mas plenamente conciliada com o pensamento de um homem que construiu uma sabedoria na aprendizagem de um mundo que vê e experimenta. Distante, quiçá, da propugnada sensatez de uma instrução pela cultura letrada dos que acreditam fielmente no que lêem.