• Nenhum resultado encontrado

fábula contemporânea sobre as contradições dos sentimentos humanos, num jogo de encontros e desencontros Disponível

2.2. DEPOIMENTOS DE ARTISTAS

2.2.2. CARLOS ROCHA

Conversar, um recriar a própria vida a cada vez

A boca das coisas

O Cine Guarani está diretamente ligado ao nosso espetáculo “A boca das coisas”, que é uma versão livre do texto Esperando Godot, de Samuel Beckett, que fizemos para rua. Até então, eu só conhecia o Gil de vê-lo atuar principalmente em alguns espetáculos dirigidos pelo Eid. Na época, eu e o Gil nos encontrávamos para ensaiar, para fazermos algumas pesquisas. Na medida em que eu gostava e continuo gostando muito deste texto, nós resolvemos explorá-lo. O Gil fazia o personagem Vladimir (Didi) e eu fazia o Estragon (Gogô). Eu tomo este trabalho, atípico na época, como importantíssimo para nós. Ele representa, em certa medida, a pré-história do teatro de rua da cidade. Pouquíssimas pessoas, naquele momento, em Belo Horizonte, se aventuravam a fazer rua. O que ouvíamos falar sobre este tipo de iniciativa cênica era feito fora daqui.

Neste tipo de trabalho, eu o Gil não impúnhamos uma organização prévia, nem uma direção muito explícita. Nós juntávamos material. A proposta era que, tanto eu quanto ele, deveríamos levar material para o local de encontro e ensaiar a partir disto. Era um trabalho, portanto, que contava com uma organização do máximo de coisas, no momento, no próprio espaço de ensaio. E nestas condições de experiência inaugural, havia nela algo de “caótico”. Acontece que, ao mesmo tempo, o vivido era extremamente fértil, prazeroso, no sentido de que era um eterno e imenso desafio. A cada dia, nós tínhamos de encontrar e tentar organizar a própria idéia do ensaio. O que faríamos ou não?

Uma das melhores experiências da minha vida, no teatro

Contando com essa forma de trabalhar, Boca das Coisas foi uma das melhores experiências da minha vida, no teatro. Era só eu e o Gil. Nós saíamos pelas ruas sem muita programação. Não dependíamos de nada além da nossa vontade. Era um espetáculo completamente aberto, um pouco ligado ao que a gente chamava cenas bombril.

Cenas bombril

Cenas bombril consistia em idéias cenas que tinham mil e uma utilidades. Então, não era uma cena fechada. O que nos permitia brincar com ela, em vários ambientes e situações. Na verdade, nós tentamos, durante um bom tempo, construir o que era a base disso. Algo que demos uma característica distinta, clara, principalmente para nós dois do que era Didi e o que era o Gogô e o que era a relação deles.

Assim, nós íamos jogando a cena na arena todo dia. Nós marcávamos e íamos pelo prazer mesmo de sair. E quando saíamos, ficávamos horas e horas. Era uma coisa itinerante, inusitada, em termos de rua. Não correspondia a um trabalho no formato de espetáculo. Tudo isto, no sentido de ser uma intervenção no cotidiano em que tanto o Didi quanto o Gogô apresentavam-se absolutamente provocadores. A ponto de em algumas vezes quase levarmos tapas na orelha ou sermos expulsos, enxotados, sob a alegação de que estávamos subvertendo determinados ambientes. Também, algumas vezes, fomos calorosamente recebidos e aplaudidos. Era uma coisa muito emocionante!

Interferir, questionar o cotidiano urbano

Então, nós lidávamos com o cotidiano de maneira sempre muito provocativa. Sendo que a nossa brincadeira visava precisamente tentar interferir e questionar o cotidiano urbano de forma não diretamente verbalizada. Então, eu me lembro, por exemplo, de uma vez, nós dois entramos, no horário do almoço, acho que foi na Bendita Gula, uma lanchonete na Savassi. Ela estava lotada! Todos comendo, naquele alvoroço! Era cachorro quente, hambúrguer, Milk Shake, bolo e não sei o que mais. De repente, eu e Gil, Didi e Gogô, nós nos assentamos no fundo, um em frente ao outro, no chão, no que seria a entrada da lanchonete, sem darmos uma única palavra. Sentamos e tiramos nossos aventais. Nós tínhamos vários aventais e dezenas de óculos e andávamos com eles. A troca de óculos, a cada vez, era em função de adequação a uma determinada situação. Todos sempre iguais, o meu e o dele. Nessa lanchonete, em pleno dia de natal, cada um tirou de dentro de nossa maleta uma cenoura enorme e crua e começamos a comê-la. Só isso. A lanchonete naquela balbúrdia, muita conversa! A partir destas nossas ações ali as pessoas, aos poucos, começaram a nos ver. Depois de alguns minutos, estava toda a lanchonete em silêncio, virada para mim e para ele, inclusive as garçonetes, todas as atendentes. Isto permaneceu cerca de uns dez minutos em que nós não demos uma única palavra. A única coisa que fizemos lá dentro foi trocar alguns olhares, trocar a cenoura de vez em quando. Ele cobiçava a minha cenoura. Eu lhe dava a que tinha em mãos, trocando. Enfim, uma série de movimentos em torno disto. Também, a cada tempo trocávamos de óculos. Tudo em um absoluto silêncio. O nosso procedimento, em certo sentido, contrastava com tudo o que estava ali. Por exemplo, sinalizava alternativas de alimentação, de conduta social. O caso é que todo mundo parou e olhou dando a entender que haviam apreendido o que indicávamos, sem dizermos absolutamente nada. Nós acabamos de comer a cenoura, pegamos o nosso babadorzinho, limpamos a boca, trocamos de óculos, levantamos e fomos embora. Nós saímos da loja e paramos. Ficamos parados de costas esperando o que aconteceria. Ficamos parados uns vinte ou trinta segundos. Daí, viramos de repente e estavam todos nos olhando na porta. Todos começaram a bater palma. Nós ficamos desconcertados e fomos embora.

O que era aquilo?

tradicionais. Maquiagem nós não usávamos, mas óculos, macacão verde, tênis vermelho, meião colorido, sim. Além disto, eu andava com uma gaiola toda dourada, com o fundo todo dourado, como se fosse uma gaiola de ouro. Ela era aberta. Dentro dessa gaiola tinha um coração com uma molinha que pulsava e algumas moedas jogadas nesse. Isso dava uma discussão sobre o que era aquilo? O que significava um coração dentro de uma gaiola? Por que o coração não saía? O que era aquele dinheiro ali dentro? As pessoas enlouqueciam, tentando descobrir. Nós não falávamos, nem comentávamos. Provocávamos e a partir daí deixávamos a coisa rolar. O que as pessoas faziam era do mais interessante ao mais absurdo! Elas faziam coisas completamente descabidas! Elas diziam coisas que nunca tínhamos pensado. Coisas que nos surpreendia. Faziam análises do porquê daquele coração. Era muito interessante! Bom, então, eu tinha esta gaiola. Nós sempre andávamos com ela. Tínhamos dois binóculos grandes que na verdade eram esculpidos no isopor e que desconcertavam muito as pessoas. Na ponta desses binóculos tinha o próprio olho. Eles não nos permitiam ver. Muitas vezes, também, nós saíamos com um guarda-chuvazinho. E fazíamos intervenções explorando este objeto. Em síntese, nós brincávamos. E a partir de cada tipo de intervenção íamos vivendo situações hilariantes, muito interessantes! E que muito nos ensinava!

Banca de revistas e as cenas Bombril

Nós parávamos em uma banca de revista e ficávamos um tempo em silêncio, lendo, lendo, passando, olhando, observando as pessoas. Aí começava a criação. Nós começávamos a questionar não só para o dono da banca, mas a partir dele era gerada toda uma discussão. Por exemplo, nós problematizávamos por que não havia nenhuma boa notícia nos jornais? Por que só se falava de queda de avião, dólar não sei o quê, acidente, briga, guerra? Nós nos propúnhamos a tentar achar notícias felizes. Aquelas que nos fizessem sorrir. Pelo menos isto. Mesmo que fosse um leve sorriso. Isto, então, envolvia as pessoas. Elas, por vezes, começavam a discutir sobre este nosso enfoque. Procurando entender o mecanismo que sustentava a produção de notícias, do noticiário.

Eneida: Vocês geravam reflexão nos outros.

Vamos ou não?!!! Carlão: O conjunto de nossas intervenções, cada uma ia puxando outras coisas. Eu me lembro que

uma vez nós ficamos muito emocionados quando estávamos subindo a Rua da Bahia. Tinha uma moça sentada na calçada, aos prantos. Ela chorava muito. Eu e Gil ficamos até meio sem saber se aproximávamos ou não dela. Mas aí nós começamos a fazer palhaçada a partir do próprio movimento de ir e não ir. A moça percebeu, mas ela estava assim... Devia ter acontecido algo muito sério que, aliás, não perguntamos o que teria sido. No nosso caso, queríamos lidar com a pessoa e não com o acontecido a ela. Pela maneira como chorava, fora algo muito ruim, mas nós queríamos puxá-la para um outro lugar, que não fosse aquele.

Não era fácil o que fazíamos

Nós, então, ficamos olhando para ela de binóculos. Ela não gostou nada disto, fez uma cara feia. Fomos nos aproximando até que nos assentamos, um à direita e o outro à esquerda dela. Ficamos calados, não falamos nada. Ela foi se acalmando gradativamente. Ficamos ali um tempo, meio assim, porque para nós também não era fácil o que fazíamos! Não tínhamos idéia do que aconteceu e não sabíamos as conseqüências de uma abordagem, como a nossa, para a pessoa. No caso, parecia ter acontecido uma tragédia com ela. Nós ficamos ali assentados um tempo. As pessoas passavam, olhavam e iam embora. Neste período, tentamos falar alguma coisa com ela, coisas indiretas, mais lúdicas. Tentando puxar alguma coisa, ela não respondia. Aí, acho que decidimos ir embora. Dando a entender que não valia a pena ficar ali e que estávamos perdendo o nosso tempo, além de ser amargura demais, sofrimento demais. Demos a entender que não queríamos ficar envolvidos naquilo ali, que era melhor ir embora.

Eneida: Vocês pensaram isso?

A coisa começou a mudar... Foi uma coisa linda! Carlão: Nós falamos que iríamos embora. Atravessamos a rua e ficamos assentados no meio fio, do

outro lado. Cruzamos o braço e ficamos olhando para ela. A coisa começou a mudar. Depois de algum tempo, ela abriu um sorriso. Assim, de orelha a orelha e foi uma coisa linda! E nós ficamos felizes também. Fomos embora.

Trabalho itinerante

Nós não parávamos muito. Fazíamos um trabalho itinerante. Andávamos, saíamos. A única coisa que fazíamos era estabelecer rota. Tinha dia: “Não, hoje nós vamos do Palácio das Artes à Rodoviária, no

passeio do lado do Parque Municipal. E depois vamos voltar fazendo o mesmo trajeto do outro lado.”

Ou: “Não, hoje vamos para Praça da Liberdade e vamos andar ali em torno, tentar entrar na

biblioteca se deixarem.” Porque em geral não deixam. Ou ainda: “Hoje vamos para a Praça da Savassi, entrar dentro das lojas, zonear as lojas.” Os caras ficavam furiosos e nos expulsavam

algumas vezes. Até ameaças de chamar a polícia já recebemos dos seguranças. Porque nós entrávamos, vinha gente em cima para ver o que estava acontecendo. Íamos nos envolvendo em tantas situações legais! Situações limite! Eu me lembro uma vez, na Importadora Chen, lá na Savassi. Nós fomos ameaçados fisicamente pelo segurança! Ele até chamou a polícia. Uma coisa meio... Mas fazia parte. Nós estávamos na rua. E quem está na chuva é para molhar! Acabou que não aconteceu nada mais grave. Nós fizemos isso muito, durante um tempo. Um trabalho maravilhoso, que nos deu subsídios, enquanto artistas, enquanto pessoas. Trabalhávamos com situações absurdas, com essa coisa do cotidiano. Como podíamos interferir nisso e como tudo isto também interferia em cada um de nós? Como é que pegávamos esse material e íamos, de novo, para a sala de ensaio e repassávamos na cabeça, discutíamos o que tinha acontecido? Tratava de aprendizado riquíssimo que nos dava muitas dicas para articulação em novas cenas bombril, por exemplo. Era tudo muito legal! “Isso aqui

Estudando Borges

Nós saímos deste trabalho com uma fome danada! Porque isso não mexia muito só com as pessoas, com o cotidiano, mexia muito com a gente! Ensaiando no Cine Guarani, nos propomos a encenar Jorge Luiz Borges. Escritor por quem tenho particularmente até hoje uma paixão imensa. Ele é um dos autores que eu mais li e leio ainda. Na época, eu tinha praticamente todos os livros do Borges. Eu dei uns contos para o Gil ler e ele passou a ler Borges também. Nós resolvemos tentar colocar Borges no teatro, uma coisa dificílima porque ele lida com sonhos! É uma coisa de uma complexidade muito grande. Mas com a nossa grande fome, resolvemos tentar. Nós dois ensaiávamos. Parece-me que nós selecionamos uns sete ou oito contos do Borges. Nós não faríamos todos, mas esses seriam aqueles que de imediato nos interessavam. Íamos avaliando sobre as possibilidades de vertê-los para o teatro. A nossa proposta era de brincarmos com eles. Lê-los, insistir nas leituras, tentar entrar por várias portas dentro desses contos, vendo em que resultaria. Nós chegamos a trabalhar, a experimentar o trabalho em cima de vários contos.

Cine Guarani, em demolição e nós, em construção

E o curioso era estarmos dentro do Cine Guarani, um cinema na época recentemente fechado. Lá conseguimos ficar temporariamente para ensaiar. Este Cine Guarani estava em ruínas. Diariamente os pedreiros entravam e ele ia sendo demolido. Com isto, se constituía um cenário completamente surrealista, em que dois caras viviam um processo de construção, dentro de um lugar em processo de demolição. Lá nós fazíamos várias pesquisas de linguagem, de trabalho de autor. Investíamos em um conjunto enorme de filigranas, enquanto o (ex-) cine ia sendo demolido. Naquele espaço, nós tivemos situações muito peculiares. Por exemplo, às vezes, uma cena, nós ficávamos meia hora, quarenta minutos fazendo um improviso. Quando parávamos, os operários que ali trabalhavam na demolição, estavam todos nos assistindo.

Os operários gostando da gente preservavam onde estávamos

Isso durou um tempo, depois tivemos de sair do Cine Guarani porque eles tinham que tirar o piso de madeira. Inclusive no local em que ensaiávamos. Eles já tinham demolido praticamente todo o entorno. O interessante era que eles deveriam demolir tudo, mas como estávamos lá e parece que os operários começaram a gostar da gente, do que fazíamos, eles começaram a destruir tudo e preservar onde estávamos. Este foi o último lugar que mexeram. Saímos quando já não tinha mais o que fazer. E acabou que nós não chegamos a encenar Borges.

Eneida: De certa forma vocês ficaram impregnados...

Múltiplos e intensos estudos Carlão: Impregnados não só dele, mas de todo um trabalho que fizemos de pesquisa de linguagem, de

trabalho de ator, de desenvolvimento, de percepção. Algo muito rico para nós dois. Neste período, nós estudamos muito o Dadaísmo, o Impressionismo. Líamos muito, buscávamos muita compreensão de determinadas coisas que nos pareciam importantes. O Dadaísmo, por exemplo, foi muito marcante

não planejada. Também, você ter um enfretamento direto com o imprevisível, sem muita mediação. Como dizem: “sair para comer ou ser comido todo dia”. Então, este foi um período em que nós estudávamos muito, líamos muito, buscávamos muitas informações, do impressionismo, do Expressionismo. Investimos no estudo de Artaud, Van Gogh, também, de todo o processo modernista brasileiro sobre cultura brasileira. Todo um campo de saber que nos interessava e nos alimentava profundamente. Isto, dentro de uma ótica oswaldiana, antropofágica, de deglutir expressões culturais diferenciadas. Por estar ávido e se orientar na vida, assim.

Eid Ribeiro – uma referência no teatro Eneida: Quem eram as referências suas? Vocês tiraram isso de onde?

Carlão: No teatro aqui, por exemplo, nós tínhamos uma pessoa que gostávamos e até hoje gostamos

muito, que é o Eid Ribeiro. Inclusive, como eu disse, eu conheci Gil fazendo um trabalho de ator sob orientação do Eid. Ele é uma pessoa que nesta época tinha um olhar muito aberto para o mais moderno. Porque em Belo Horizonte o teatro era uma coisa muito fechada, não tínhamos opções. Éramos obrigados a ser autodidatas. Nesse período, tínhamos uma única escola que era o TU123. Ela era uma escola de formação de nível técnico, completamente conservadora e que estava na contramão de uma série de coisas. O período que estou falando, vai desde 68, 70 para cá. Eu chegando à adolescência.

Antecedentes de percurso profissional

Esse era um período em que eu estava começando a pensar o que queria da vida. Aí me vi em meio a este conjunto de coisas, todas pipocando. Os Beatles, que exerceram muita influência, todo o movimento, então, da contracultura. Um período muito forte do Teatro Oficina, do Zé Celso, que depois foi deportado. Depois veio aquela confusão toda. Tínhamos, então, neste período uma referência muito... Por exemplo, o Living Theater, um grupo importantíssimo, americano, na época, veio ao Brasil. Os integrantes do grupo tentaram montar residência no Brasil, mas não conseguiram. Eles eram completamente anarquistas, malucos, demais! Considerando o que podia ser pensado na época! Eles chegaram em Belo Horizonte, foram até Ouro Preto, no período do Festival de Inverno e lá foram presos. Isto gerou uma onda internacional para libertá-los. A desculpa que deram, era que portavam uma buchinha de maconha. É certo que não se tratava disso! Tudo isto acabou nos influenciando. Eu particularmente fui muito marcado por toda esta mistura.

Gosto pela leitura, muita curiosidade... fui me formando

Também, na infância, continuando na adolescência, eu sempre estive muito ligado à leitura. Com 13, 14 anos, freqüentador assíduo de biblioteca, eu já lia muito, sempre muito curioso. Mantinha sempre postura muito autodidata. Eu entrava em contato com este conjunto de dados e os organizava. Eu

corria, para baixo e para cima atrás de pessoas, de material. Desta forma, na marra, eu fui me formando em um processo muito rico. Eu investia, trabalhava duro para aprender o que me interessava, assim, vivamente.

Companhia Sonho e Drama

A Companhia Sonho e Drama consistiu em um grupo de teatro em que sou co-fundador e onde aconteceram a maior parte dos nossos trabalhos. O primeiro deles foi O Processo, uma adaptação minha do romance de Franz Kafka, em 1981. Além do Gil, participaram deste trabalho mais quatro atores. Depois, em 83, nos cem anos de nascimento do Kafka, nós o remontamos. Fizemos isto mais uma vez, junto com a peça Metamorfose. Além destes, sob a minha direção, dentro desta Companhia, nós realizamos Grande Sertão Veredas, Antígona e Vida de Cachorro. Esta Companhia de teatro se constituiu nesse processo de investimentos no campo das artes. Tínhamos como sistemática a manutenção de um trabalho de pesquisa interna dentro do grupo e estudo de correntes, autores que nos interessava, como já dito, dadaísmo, impressionismo, Artaud e também Stanislavski, Do-in, massagem oriental etc. Este tipo de prática permanente nos possibilitou realizar montagens arrojadas, inovadoras.

Eneida: Sempre vocês dois?

Teatro, campo de pesquisa Carlão: Não. Na Sonho e Drama já era um núcleo maior. Era eu, Gil, Cida Fallabela, Luis Maia,

Bernardo Mata Machado, que hoje está na Fundação124 e o Paulo Lisboa. A meu ver, ela exerceu influência em termos da formação de uma nova mentalidade de teatro na cidade. A indicação do papel importante da pesquisa de temas no teatro. Nós trabalhávamos muito com algo que me orienta hoje que é a chamada obra aberta. Nós lidávamos sempre com literatura. Praticamente, quase todas as principais montagens da Sonho e Drama foram adaptações literárias. Nós montamos o Processo, depois a Metamorfose, depois o Grande Sertão Veredas. Depois eu montei Josefina, a Cantora, a partir de dois contos também de Kafka. E ainda hoje os meus grandes projetos de montagem estão ligados à literatura. Hoje, por exemplo, estou montando o Don Quixote de La Mancha, depois de 15 anos de namoro. E eu morro de vontade de fazer Ulisses, de Joyce. Sempre coisas, vamos dizer assim, arriscadas, que me põem na corda bamba.

A obra aberta como concepção de produção

Sempre concebi o teatro como uma possibilidade de conversar com as pessoas sobre determinadas coisas. E conversar de uma maneira lúdica. Eu não tomo o teatro com a função de indicar modos de conduta, valores apropriados etc., portanto, com função didática, pedagógica, funcional, moralista etc.