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teórico-conceituais da pesquisa Primeiramente, apresento dados relativos ao Jazz (3.1) e, no capítulo seguinte (3.2) exponho dados relativos ao conceito de Cuidado de si, como

2.1. HISTÓRIA DE VIDA DE GIL AMÂNCIO

2.1.9. Incursões no Alto Vera Cruz

Manifesto Primeiro Passo

Com a experiência de trabalho com o movimento Hip Hop, no Quilombos Urbanos, eu me vi interessado pela arte produzida por grupos da periferia, do morro. Pessoas falando de seu cotidiano, de sua vida, de sua maneira de viver. Com isto, acabei topando um trabalho com os meninos do NUC, um grupo de Hip Hop, do Alto Vera Cruz. Eles me convidaram, para fazer a direção musical de um CD. Eu disse que aceitava, mas que, ao invés de trabalhar exclusivamente com as bases eletrônicas, neste formato já feito no Rap, eu queria que eles envolvessem a comunidade, usassem a musicalidade

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O Centro Cultural Casa África (CCCA), com sede em Belo Horizonte, surgiu em setembro de 2003, idealizado pelo senegalês Ibrahima Gaye. A missão do CCCA é promover, divulgar e difundir a cultura africana e afro-brasileira em todas as suas formas e manifestações. São desenvolvidas atividades sócio-culturais e educacionais, junto à comunidade, como palestras, exposições, espetáculos, seminários e outros projetos que buscam a construção de culturas coletivas. (...) A Casa África é a somatória de todos os projetos já desenvolvidos pelo seu idealizador desde 1999, que culminou num centro de referência da cultura africana, no Estado de Minas Gerais. (...) Evento mensal, Noite do Griôt (...) espetáculo intimista em que músicos se mostram informalmente, contando histórias e dialogando com a platéia. Disponível em: <http://www.centrocultural.m2014.net/article14.html?id_document=73#documents_portfolio>. Acesso em: 13 de julho de 2007.

89 Hugo Ball (1886 -1927) poeta, escritoralemão. Um dos principais artista do dadaísmo, escreveu o manifesto dadaísta. (...)

Queria mostrar ao mundo que existiam pessoas com ideais diferentes dos da sociedade em geral. (...) Uma marca indiscutível deste artista são os poemas sonoros (poemas sem palavras: “Gadji Beri Bimba” e o “Karawane. A sua obra é constituída por “Tenderenda, der Phantast” (romance não publicado escrito no período dada”, “Cristicism of German Intelligence”, 1919

já existente na própria comunidade. Como eu conhecia muito o Alto Vera Cruz, propus que eles convidassem, para fazer parte da percussão, um grupo de Capoeira e do Samba e, para fazer as

Backing vocal90, que convidassem as Meninas de Sinhá. Grupo de senhoras da terceira idade, que

cantam músicas de roda. Eles me falaram que eu era doido de misturar, mesmo assim toparam. No dia do ensaio, olhei o grupo de senhoras, sessenta, setenta anos e, do outro lado, a moçada. Aí, eu me perguntei como eu conseguiria fazer o grupo se misturar? Como eu costumo carregar comigo o tambor, eu o peguei e pensei que, ali, naquela hora, ele tinha de falar alto. Aí, comecei a tocar. As Meninas de Sinhá começaram a dançar! Eu fui incentivando, produzindo mais som. Elas foram puxando os meninos, eles meio tímidos... Mas como elas foram e puxaram, eles não ficaram para trás! Com isto nós começamos todos a dançar. A partir daí começou a rolar e foi rolando o processo de criação que deu no projeto Manifesto Primeiro Passo. Um projeto artístico que vem associar esta moçada do Hip Hop, Samba e Capoeira, com as senhoras da terceira idade. Esta experiência, eu avalio como um momento importante. Uma síntese de toda a história que eu vivi, da busca desta arte interconectada com a vida cotidiana.

Uma dança, uma música que todo mundo podia fazer

Isto me remete a um livro que li na década de 70 ou 80, Dançar a vida, de Roger Garaudy91. Neste, ele fala desta separação que houve da arte com a vida. Quando as artes foram se distanciando dos rituais, desta integração, ganhando autonomia a partir da associação de arte com a virtuose92 ela passou a ser um negócio para poucos. Só os que podem estudar muito podem se dizer artistas, podem ter lugar no palco. Mas quando eu ia no Congado, uma coisa que me fascinava era que eu via lá o congadeiro com os jovens e as crianças, dançando no Congado. Então, era uma dança, uma música que todo mundo podia fazer. Quem estava ali participando do grupo, podia dançar, cantar, tocar. Não era olhado se é uma pessoa gorda, magra, se é branco, preto, não importa, o espaço é para você fazer. Também, quando criamos o “Manifesto Primeiro Passo”, achei muito bacana, porque foi a primeira vez que vi aquelas senhoras cantando, dançando, ao lado daquela moçada e contando da vida delas! Então, o Manifesto fecha este ciclo para mim. Nele, é onde sintetizo, vejo a ligação entre a tradição, a cantiga de roda, o samba de raiz, do partido alto, a capoeira e a música eletrônica: o rap, a literatura do rap. Como estas coisas podem conversar?

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Vocal de apoio (backing vocal) tem a função de integrante, ou convidado, de uma banda musical para cantar em parceria com o vocalista principal. Essa função pode variar muito, desde vocais suaves cantados quando o vocal principal canta, como pode ser (vocal gutural) ou, então, cantar determinadas partes das músicas. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Vocal_de_apoio>. Acesso em: 13 de julho de 2007.

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GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Nova Fronteira. “ A dança como símbolo do ato de viver, parte integrante das respostas às questões fundamentais do homem contemporâneo. O autor escreve sobre personalidades da dança moderna que exploram a dança como uma "arte de viver", modo de exprimir intensamente as relações do homem com a natureza e a sociedade. Disponível em: <http://www.siciliano.com.br/livro.asp?orn=LCAT&Tipo=2&ID=276822#sinopse>. Acesso em: 13 de julho de 2007.

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Virtuose (o). 1. Músico de grande talento, virtuoso. 2. toda pessoa que domina em alto grau a técnica de uma arte. Disponível em: <http://submondo.mondoredondo.com.br/2004/09/virtuose.html. Acesso em: 13 de julho de 2007.

Lembrando do documentário do Paulinho da Viola93, em que ele fala da questão de não ter saudade. No sentido de que se cria um olhar sobre o passado, mas não com a intenção de voltar para trás, mas atento à questão sobre como aquilo pode gerar uma nova coisa. Então, no caso da reunião desta turma do Manifesto Primeiro Passo, não só ali você encontrava uma síntese musical, mas também uma síntese das pessoas, tendências musicais, culturas. Porque, por exemplo, eu peguei uma senhora de 70 anos pus um menino de 20 anos do Hip Hop juntos e também um adolescente da capoeira.

Repercussão da conexão entre gerações e expressões musicais

Eles tiveram a oportunidade de fazer apresentações na companhia de Jair Rodrigues e também de um

rapper da França. Os dois acharam incrível as senhoras no Hip Hop. Também, esta mistura entre rap,

capoeira e cantigas de roda criou uma condição neles. Daí, os meninos do NUC conseguiram a aprovação de um projeto na Lei de Incentivo à Cultura em que propuseram oferecer oficinas na comunidade. Eles, então, foram explorando as cantigas de roda, numa leitura da música eletrônica, introduzindo nelas as batidas do Hip Hop. Foi muito bacana o trabalho, que permitiu conhecer mais ainda o grupo, as experiências de vida da moçada, da musicalidade que circulava ali no morro.

Nas oficinas, eram produzidos textos que narravam a história de vida dos meninos, dos moradores do bairro, das influências de cada um. Com este trabalho, os meninos conseguiram avançar e receber recursos para a criação de um Centro Cultural. As oficinas lá oferecidas tanto pelos meninos do NUC quanto por pessoas que convidamos, tiveram o objetivo de ensinar os grupos da comunidade e região a também se estruturarem melhor, em termos artísticos, também de organização mais administrativa dos grupos. Aprender a fazer projetos, por exemplo. Também, com este trabalho inicial, as Meninas de Sinhá que já tinham uma trajetória ganharam ainda mais visibilidade e estão em processo de viabilização do CD delas que estou produzindo atualmente94. No caso do NUC, ele está em processo de organização de um novo CD.

E aí, de um trabalho isolado, com o encontro proposto no Manifesto cada um dos grupos ganhou força para continuar o trabalho que vinha fazendo. O NUC, por exemplo, já foi várias vezes convidado para apresentações em São Paulo. Também, já foi em Cuba, no festival de Hip Hop que teve em Havana em 2004. Também, as Meninas de Sinhá estão multiplicando as possibilidades de apresentação delas pelo país e mudança da vida que tinham. O respeito que hoje eles têm dentro e fora da comunidade é muito bacana ver. O fato deles circularem em um conjunto de apresentações, em lugares variados, fora da comunidade, inclusive, vai provocando, como efeito, mudança da imagem do morro no imaginário coletivo. O ganho que isto teve para a comunidade, é muito bacana.

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Paulinho da Viola, “Meu tempo é hoje”, de Isabel Jaguaribe e Zuenir Ventura. Cf.

Produção do CD das Meninas de Sinhá: atenção ao próprio nelas (em 2005)

Eu fui convidado pelas Meninas de Sinhá para produzir o CD delas. O meu desafio está em como instrumentalizá-lo, no sentido de garantir a beleza que encontro na voz delas? Quer dizer, eu me pergunto como não apagar a voz delas com o tipo de arranjo que eu definir? Eu posso ter um outro parâmetro musical e com isto perder o swing delas. Dependendo da harmonia que eu fizer, eu posso vir a tirar a riqueza vocal aí presente. Eu posso limpar o desafinado e elas deixam de ser o que são. O desafio que me vejo diante dele é, portanto, como vou criar uma tecnologia que mantenha aquele espírito ali? Se eu fizer o tradicional, eu as coloco em um espaço fechado, pequeno de um estúdio com as tecnologias que usam o computador, desenvolvidas atualmente no Brasil. Com este procedimento, se não faço algumas adaptações, eu corro o risco de não respeitar o que estas pessoas estão propondo: a roda, o movimento. Então, nesse processo de produção do CD, na primeira vez eu fui lá e gravei. Pus todo mundo assentado. Depois, eu fui e levei para elas. Elas, então, não gostaram. Disseram que estava muito ruim! O interessante é que eu estava achando bom. Disseram que não era, assim, que cantavam. Eu, então, me perguntei sobre o que estava ocorrendo? Avaliei que poderia ser porque elas estavam cantando assentadas. Isto não era do costume delas. Elas cantam em pé, cada uma mexendo, brincando uma com a outra. Isto é que é a voz delas e eu estou vendo que preciso me virar para poder colocar esta dinâmica, o entusiasmo, a energia delas, enquanto cantam no disco.

Meninas de Sinhá – um estúdio montado para elas (em 2006)

Nós fizemos a gravação do CD das Meninas de Sinhá. Trabalhamos com elas no Centro Cultural do Alto (Vera Cruz). Montamos o estúdio e gravamos lá mesmo. Elas conseguiram o que músico nenhum em Belo Horizonte já conseguiu. Levamos e montamos um estúdio acústico imenso nem uma favela. Com isto, hoje avalio que para alguém dialogar com estas mulheres, conseguir captar o que estão valorizando, terá de estabelecer outro tipo de relação com elas. Porque senão elas vão falar coisas comuns do dia a dia. Não vão dar a dimensão do que vivem e vai ficar esta falsa integração entre o pessoal da favela e outros grupos, como a Universidade, por exemplo.

Música para se brincar - Tempo, não o do relógio

Foi um negócio bacana que aconteceu no processo de gravação do CD. É que eu tinha feito as bases para gravar. Eram coisas que em um processo normal de estúdio, você grava as bases no tempo certinho e depois o cantor põe a voz no tempo certinho estabelecido pelas bases. Isto, no caso de uma música para você ouvir. No caso da música delas, eu fui entendendo que não é música para ouvir. É música para se brincar. O tempo delas não pode ser de relógio, porque senão não tem a brincadeira. A brincadeira acontece na hora em que eu falo mais rápido o negócio e pego você de surpresa. Então, elas não andam no metrômetro. Elas escorregam, andam para trás, avançam no tempo. Foi engraçado que, enquanto eu ia tentando controlar a forma delas cantarem, o tempo certo, nós começamos a gravar e foi só dando errado. Elas, então, começaram a colocar a responsabilidade umas as outras. Nós

tínhamos gravado umas doze músicas, num astral maravilhoso! Na hora em que entrou o clique, começou uma discórdia, uma confusão, uma briga! Eu estava trabalhando com o Rodrigo. Decidimos que todos deveríamos ir para a casa e voltar no outro dia. Quando chegou à noite, eu liguei para o Rodrigo e falei que era melhor não usar o clique. Ele disse que havia pensado a mesma coisa. Cogitamos a presença, nelas, de um clique interno e era melhor deixar por conta delas. No outro dia, elas ficaram perguntando pelo clique e nós dissemos que não iríamos usar, que elas poderiam cantar.

O desafio é nosso de encontrar solução

Aí foi o maior astral! Conseguimos gravar tudo no tempo previsto. E agora quando fomos ouvindo as coisas, confirmamos que elas têm um clique, um tempo interno de cantar, que quando você deixa por conta dele, tudo funciona. Eu entendi que nós músicos é que temos que encontrar a solução e não elas, enquanto cantam. Isto eu acho bacana, pelo tanto que é desafiador para nós. E quando elas começarem a ver o que o trabalho delas está provocando musicalmente, vai ser outra história! Também, o bacana nelas é a alegria que se manifesta no som das músicas que cantam e não o fato de ser uma música que, ouvida no rádio, você vai dizer que ficou afinadinha, no tempo certo.

Como congelar, em movimento?! Eneida: Disso tudo dito, a pergunta que surge é como “congelar” este sujeito em movimento? Como

garantir a expressão do movimento, do dinamismo inerente a essa expressividade? Porque a produção do disco congela um momento que é fluido. O diferencial é o dinamismo dele. É este o desafio. Eu pensando na pesquisa, a questão em jogo é como falar de um sujeito se inventando, se movimentando?

Gil: É, você pode paralisar, mas no momento bacana, que consiga expressar o que se dá. Que a

expressão esteja aí e não no que pensa ser o ideal.

Renegado, em solo

Atualmente, eu estou na produção do disco do Flávio (Renegado). Ele vai fazer um show solo agora (julho de 2006). Vai ser lá no Teatro da Biblioteca Pública. Está tendo um projeto de conexão entre artistas e ele foi convidado para fazer. Então, estou preparando o repertório com ele. Ele vai tocar com músicos profissionais que estão tocando aí. Ele antes não estava maduro, mas hoje ele já está construindo o seu repertório. Ele foi trabalhando e agora tem capacidade de se virar no mercado.