• Nenhum resultado encontrado

Escola de Teatro do Palácio das Artes – o corpo mais expressivo

teórico-conceituais da pesquisa Primeiramente, apresento dados relativos ao Jazz (3.1) e, no capítulo seguinte (3.2) exponho dados relativos ao conceito de Cuidado de si, como

2.1. HISTÓRIA DE VIDA DE GIL AMÂNCIO

2.1.4. Escola de Teatro do Palácio das Artes – o corpo mais expressivo

A Escola de Teatro do Cefar é um espaço muito importante para mim. Lá, em 86, eu comecei a trabalhar como professor. Assumi as cadeiras de percepção musical e expressão corporal e um cotidiano de trabalho que era de dois anos. Isso foi, ao mesmo tempo, um problema e a solução para mim. Esta era uma situação que eu não tinha vivido. Na Sonho e Drama, a minha experiência de formação estava ligada à preparação dos atores com um objetivo imediato da montagem de um espetáculo. E, em termos de experiência como professor, ela se relacionava com oficinas, portanto, momentos muito curtos e intensos de aula. Agora, pensar uma aula com duração de um ano e que, a seguir, eu deveria pensar o segundo ano, uau!!! Isso foi uma experiência incrível. Com esse tipo de demanda, eu pude desenvolver todo um trabalho de preparação do ator. Preparação em que o corpo e a música se entrelaçavam na busca de soluções dos problemas enfrentados pelos atores no processo de criação de seus personagens e das cenas. Ao começar a dar aula no Palácio das Artes, eu comecei a ter de sistematizar, ou melhor, a me impor uma rotina de trabalho. Também, eu construí uma maneira própria de trabalhar. Agora, foi fundamental o apoio que eu tive nos momentos de dúvida, de pessoas como o Walmir José, a Lelena Lucas e o (Luiz Carlos) Garrocho.

A construção dramática e estética do personagem

Com a atenção voltada para a preparação do ator no desenvolvimento de um corpo mais expressivo em cena, eu fui buscar na música, nas artes plásticas novas referências para o trabalho com o ator. Daí, eu li um livro muito bacana da Susana Langer, Sentimento e forma66. Nele, ela acaba com esta idéia de personagem. Na maioria dos espetáculos que se faz em Belo Horizonte, a idéia de personagem é associada a reprodução naturalista de figuras do cotidiano. “O general, a dona de casa, a prostituta” etc. e tal! A Susana trabalha com uma coisa que é forma e sentimento. Uma coisa, conectada a outra.

O ator cria uma forma e vai fazendo emergir dela os mais diferentes sentimentos. E é isto que a platéia vai ver e se relacionar. Do jeito que quiser. Para mim, o trabalho do ator é ser esse criador de formas / sentimento e não de um personagem. Daí, não se tratar de uma incorporação, mas de uma gestação. E isto é um grande problema no teatro. O ator confunde muito esta relação com o personagem, porque a avaliação do trabalho dele passa a ser a partir do que ele sente. Então, por exemplo, se ele faz uma cena e ele não sentiu, ele avalia como ruim o seu trabalho, mas o caso é que, para a platéia, não interessa se você sentiu ou não. A platéia lida com o que eu chamo de materialidade sensorial. Ela vê o seu gesto e é incontrolável o que ela vai ler. Então, eu comecei a desenvolver um trabalho com o ator de inverter os papéis. Eu insisto que quem deve sofrer com o personagem é a platéia e não o ator. Ele tem que ter prazer, saber que está construindo algo que o outro está lendo, está vendo. Comecei a estabelecer uma relação com o ator a partir da utilização dos elementos da composição musical, das propriedades do som como elementos orientadores. Eu passei a falar com o ator de intensidades, durações, silêncios, andamentos. Tanto na construção de sua vocalização do texto como na sua ação corporal em cena.

Modos de produção

A garantia de um tempo mais longo para a criação de um espetáculo foi um dos pontos pelos quais nós lutamos muito na Sonho e Drama. Isto, na época, foi muito criticado porque as produções comerciais de teatro, em Belo Horizonte, tendiam para o máximo de três meses de ensaio. A ultrapassagem desse tempo podia levar a Companhia a ter prejuízo, inviabilizando a produção! Mas na Sonho e Drama este tempo era fundamental. Nós estávamos quebrando vários paradigmas do fazer teatral. Um deles foi a questão da adaptação de romance para teatro, outro o desenvolvimento de um método para o trabalho do ator/atriz. E também, a mudança das relações do ator/atriz com o cenário, com a música de cena, com a luz, o figurino e com o próprio corpo. Era impossível desenvolver todos estes pontos em um processo de trabalho de três meses. No início, para gerar meios de sustentação, a nossa estratégia foi criar um livro de ouro para arrecadarmos dinheiro para a produção, outra foi trabalharmos com o mínimo de elementos cênicos. Por exemplo, em o “Processo”, de Kafka, o cenário eram duas tábuas e duas escadas. O cenário do Grande Sertão Veredas era um monte de terra.

Sonho e Drama, Cia SeráQuê?, trabalho bricoleur

Quando mais tarde criei a Cia SeráQuê?, com o Rui Moreira e o Guda, eu levei isto para ela: um tempo para a experimentação, para a pesquisa e para a criação. Nos dez anos que trabalhamos juntos, de 1993 a 2003, nós chegamos a ficar um ano ensaiando um espetáculo e lá desenvolvemos uma estratégia diferente. Ao contrário da Sonho e Drama, nela, a gente começava a criar e já convidava o público para ver. Isto foi muito bom porque começamos a vender pequenas apresentações para eventos. Por exemplo, se alguém precisava de uma cena para uma intervenção na cidade, numa galeria de arte, num encontro de educadores, a gente ia e fazia. Além de tempo maior garantido para a experimentação, pesquisa e a criação, outro ponto em comum entre Sonho e Drama e SeráQuê? foi a

proximidade dos dois trabalhos com um bricoleur, a coisa de mosaico, da colagem. Então, quando víamos que aquelas experimentações estavam apontando um caminho, a gente marcava a estréia. E isso foi muito legal porque, no caso da Cia SeráQuê?, a gente sempre conseguia ganhar um dinheiro com essas apresentações e isso garantia a manutenção da Companhia.

Eneida: Você fala em dez anos de Cia SeráQuê? e que ela teve fim em 2003, mas eu ainda vejo

propaganda de apresentações dela (2005).

Gil: A SeráQuê?, como foi estruturada, comigo, o Rui e o Guda, aconteceu até 2003.

Nova cena, novo modo de produzir Eneida: Sobre inovações propostas ou amadurecidas na Sonho e Drama e Cia SeráQuê?, entendi que

está colocando dois pontos. Um é que o caminho do teatro que trilhavam precisava de tempo maior de gestação e o outro são as estratégias que usaram para garantir esse tempo.

Gil: É. Tanto os trabalhos na Sonho e Drama, como na SeráQuê? e mais tarde na Black Maria, eles

não só propuseram uma nova cena para a cidade, mas também modos de se produzir. Estes foram processos muito complexos e muito ricos a meu ver. Enquanto muitos artistas estavam parados, pela dificuldade de captar recursos, de fazer, nós estávamos sempre fazendo. Fazíamos devagarinho, sempre produzindo, tendo algo na mão. A importância de um tempo de um ano para você fazer um trabalho é fundamental. Isto permite a você apurar a sua qualidade artística. Você consegue elaborar um treinamento para a equipe. Quando você só ensaia durante três meses de trabalho, você só repete. É muito difícil você sair disto. Você nunca vai romper com aquela sua lógica de atuar, mas se você tem um processo de um ano, aí é diferente. A gente começa a falar de possibilidade de construção de uma linguagem cênica.

O que se tem desde o início, passa a ser um personagem Eneida: Porque senão é quase trabalhar...

Gil: ...com o básico. É o arroz com feijão mesmo.

Eneida: Com tempo curto para se explorar todos os recursos.

Gil: É. Por exemplo, geralmente num processo de montagem o ensaio é realizado com o ator

pensando que ali vai ter uma mesa, do outro lado uma porta... E normalmente o cenário chega às vésperas da estréia. Portanto, este não participa do processo de construção da cena. Ao chegar, por exemplo, um sofá, mais uma cadeira, o que vamos fazer será: eu sentar aqui e você aí. Não há tempo para explorar o que chegou, torná-lo parte da cena. Também com isto, os atores estão sempre trabalhando, imaginando a cena quando chegar os recursos! No nosso caso, a gente contava, desde o início, com aquilo que já estava disponível. Se este sofá está desde o início, eu posso colocar este sofá nas costas, carregá-lo. Ele passa a ser um personagem. Ele passa a interferir na minha cena. E não fica como um objeto para compor a cena. Todos os componentes presentes na cena passam a ter vida. Se eu tenho a bola grande, eu a uso, mas se não, vamos fazer com uma pequena. E aí, é ela que vai para a

começa a ficar mais rico. Você tem tempo para exercitar o seu repertório para lidar com o objeto, com o seu corpo, com o espaço.

Triunfo Barroco - trilha sonora, pesquisa da música africana, dos tambores

No início, eu disse de meu incômodo, já na primeira peça como profissional, com a falta de uma abordagem contemporânea da cultura afro-brasileira. Também, que, antes de 76, com minha entrada no teatro profissional, toda a minha relação artística estava ligada à jovem guarda, ao Clube da Esquina: Lô Borges, Beto Guedes e outros. Também, Beatles, Led Zeppelin, Traffic. Eu tocava a música desta moçada toda e até ali eu não tinha nenhum contato com pessoas que me chamassem a atenção para a cultura afro-brasileira. O que foi acontecer, como falei também, quando eu passei a fazer parte do grupo de dança da Marlene Silva. Mas além deste trabalho, desenvolvido na Cia. de dança da Marlene, aconteceu algo muito importante e de uma forma muito circunstancial que foi o encontro com Roland Schaffner67, em 82. Foi ele quem me apresentou a música africana. Ele tinha em sua casa canto de pigmeu, música do Mali, da Nigéria.

Eneida: Como você o conheceu?

Gil: Através da coreógrafa e diretora de teatro Carmem Paternostro, esposa dele, uma baiana arretada!

Ela, sempre sintonizada com a produção de arte contemporânea no mundo. Eu a conheci por causa de amigas que trabalhavam com ela. Eu assistia a montagens que ela fazia. Um dia, ela me convidou para uma festa em sua casa. Lá, eu conheci o Rolland e conversamos muito. Ele foi mostrando várias coisas que tinha de sons africanos. Eu fiquei fascinado e perguntei se eu poderia copiar aqueles sons maravilhosos que ele me mostrara. Ele disse para eu levar fitas que ele gravaria. Eu fiz isto e, assim, comecei a construir meu acervo sobre a música africana e não parei mais. Tudo que aparecia, livro, vídeo, disco, sobre arte africana e cultura afro-brasileira eu comprava. Em 86, a Carmem resolveu montar o “Triunfo, um delírio barroco68”. Foi uma festa importante do período colonial, acontecida em 1771, em Vila Rica, atual Ouro Preto69. Ela convidou-me para fazer a trilha sonora. Foi um momento

67

Nos anos 70, ele foi diretor do Instituto Goethe, Salvador, Bahia.

68

(1986 - 1987) Dirigido pela coreógrafa e encenadora Carmen Paternostro, o espetáculo teve a participação do corpo de baile da Fundação Clóvis Salgado, músicos percussionistas e o Galpão. Tratava-se de uma reelaboração poética da festa do Triunfo Eucarístico, tradicional em Ouro Preto, no século XVIII. O espetáculo celebrava a miscigenação cultural e religiosa de Minas e do Brasil. Disponível em:

<http://www.grupogalpao.com.br/novosite/port/espetaculos/delirio_sinopse.php>. Acesso em: 4 de julho de 2007. Também Cf. <http://artesescenicas.uclm.es/obras/index.php?id_obra=26032007120539>

69 A procissão do Triunfo Eucarístico ocorreu em 1733, em Vila Rica (atual Ouro Preto, Minas Gerais) (...) o Santíssimo

Sacramento foi transladado da Igreja N. Sra do Rosário para a Matriz de N. Sra do Pilar, para comemorar a sua reinauguração. (...) Esta procissão foi única e desvinculada dos cânones tradicionais apresentados em eventos anteriores. (...) O Triunfo inaugurou nova fase de concepções e manifestações estéticas no campo da expressão da religiosidade popular. (...) Pode ser visto como fruto maduro da cultura colonial, semente gerada nas terras do Brasil, fertilizada pela cultura ibérica e regada por elementos africanos. (...) Até o séc. XVII a colônia era quase totalmente dependente das matrizes culturais portuguesas e européias. No princípio do séc. seguinte, Villa Rica esboçava lampejos de uma identidade cultural. (...) Na ausência das ordens religiosas, as irmandades leigas, presentes por toda a região mineradora, foram responsáveis pela invenção de espírito próprio de manifestações religiosas. Os irmãos leigos direcionavam a produção artística. A ausência de cânones norteadores, aliada à presença marcante de negros e mulatos, foi decisiva para reelaboração de senso estético hierofânico. FONSECA, Genaro. Imaginário e festividade na Villa Rica setecentista. Revista Eletrônica Cadernos de

História: Ouro Preto. Ano II, n. 01, mar 2007. Disponível em: <http://www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria/download/CadernosDeHistoria-03- 01-Livre.pdf >. Acesso em julho de 2007.

muito bacana da minha carreira. Este espetáculo proporcionou-me um mergulho mais intenso na minha pesquisa sobre arte negra e, pela primeira vez, eu tive a oportunidade de confrontar a música africana com a Ocidental. Ao final do espetáculo, eu conversei com o Marcos, técnico responsável pela operação do som. Foi super engraçado! Havia uma cena da chegada de um navio português ao Brasil. A música usada neste momento da chegada foi a de Wagner. A Carmem disse que queria o confronto das culturas. Eu fui para casa. Escutei, escutei... Tinha uma hora em que a música fazia: “Tchan!!! Tchan!!! Tchan!!!” Eu falei: “É aqui que eu entro.” Pois, este momento me lembrava uma chamada de escola de samba. Quando fez: “tchan!!! tchan!!!”, eu entrei com: “tchan tchan tchan

tchan tchan”. E fiz a chamada. Eu comecei a levada de um samba enredo. O Wagner tocando e o

samba entrando no meio. Foi muito legal porque o Wagner era gravado e era o Marcos quem disparava. Ao final do espetáculo, ele chegou e falou para mim: “Oh Gil, a hora em que você entrou

com a batucada em cima do Wagner, eu decidi não deixar abafar. Eu pus mais ‘gás’.” Nós rimos

muito e eu lhe disse: “Ah, você aumentou para tentar acabar comigo?!! Eu, então, disse a ele que, quando ele aumentou, eu falei: “Vamos quebrar!” E virou um duelo entre a técnica e os músicos lá embaixo. Foi super legal! Ele me disse: “Poxa Gil, eu fiquei emocionado! Eu senti a adrenalina lá em

cima!!! Foi muito legal!” Eneida: Vocês suaram!

Gil: Claro, são séculos de música clássica na cabeça! Então, o espetáculo foi muito rico por causa

desta oportunidade. Ali, comecei a utilizar estes conhecimentos que eu tinha. O Rolland ajudou-me muito porque ele ia me dando informações da música africana. O que tinha para eu fazer a trilha! E eu fui construindo. Quer dizer, este espetáculo foi um marco na determinação de meu caminho como compositor de trilha sonora de pesquisa da música africana, da cultura brasileira de base africana, dos tambores. Quando eu penso neste espetáculo, eu fico lembrando de como a gente trabalhou a trilha. Não apenas do ponto de vista musical, mas também da sua colocação no espaço. Tinha momentos, em que havia um trompete sendo tocado do meio da platéia. O uso de instrumentos tradicionais do Candombe, instrumentos de metal que foram construídos especialmente para o espetáculo. O uso de som percussivo entrecortando a fala dos atores. Foi muito bom esse espetáculo!

A ida para Alemanha

Em 92, eu fui convidado pelo Wagner Carvalho para realizarmos uma tournée de dois meses pela Alemanha e a Suíça. O Wagner hoje é diretor artístico do Festival de Dança Brasileira “MoveBerlim”, na Alemanha. Nesta tournée, nós fomos com o espetáculo de dança e percussão que chamava “Primitivo”. Esta viagem foi, sem dúvida, um marco na história da minha vida. Foram dois meses que acabaram virando seis de um mergulho intenso na arte, fazendo ou assistindo. Foi uma loucura! Vários trabalhos aparecendo! E fomos ficando. Lá, eu tive oportunidade de trabalhar com artistas brasileiros como Celso Baquil, coreógrafo, residente em Berlim e outros músicos que, na época,

quem eu fiz uma trilha sonora; acordeonista Katrin Pfeifer, com quem fiz shows tanto na Alemanha quanto no Brasil, quando ela veio me visitar. E tive experiências com as crianças, em oficinas nas volkshochshule70 e nas universidades. A experiência em Berlim colocou-me em contato com muitos trabalhos ligados à cultura africana contemporânea. Por exemplo, o trabalho de Márcio Valeriano, dançarino de Belo Horizonte que na época estava residindo em Colônia, lá na Alemanha. Nós havíamos trabalhado durante muitos anos na Cia. de Marlene Silva. E foi em Berlim, na Casa das Culturas do Mundo, que eu fui assistir ao trabalho dele e fiquei impressionado. Ele dançava o tema dos Orixás ao som de música eletrônica produzida ao vivo por um músico alemão. Era fantástico! Muito lindo este espetáculo! Outra coisa que me chocou positivamente foi uma instalação, em Berlim, de uma aldeia africana. Ao regressar ao Brasil, eu logo me mobilizei para ver o que seria possível começar a fazer sobre arte negra contemporânea. Foi daí que surgiu o FAN e a Cia SeráQuê?

Brasileiro

Quando fomos apresentar na Venezuela, eu encontrei com vários grupos da América Latina. Eu prestei atenção na maneira como eles valorizavam as coisas do país de origem. Sempre elogiando: “Ah,

porque no meu país o teatro é assim e assim!” Com isto, comecei a ver como no Brasil nós não temos

esse costume. A começar, não referimos ao Brasil como nosso, mas sim: “Ah, lá no Brasil” ou

“Porque no Brasil.” É como se a gente tivesse ocupado um país, mas não o tomasse como nosso. Eu

comecei a ficar incomodado com isto e a me perguntar sobre o que é mesmo esta coisa de brasileiro?! Na época, ainda tínhamos muita descrença no país, fruto da experiência da ditadura. A cada vez que aparecia uma propaganda defendendo que era para assumirmos o Brasil como nosso, isto era visto como propaganda política.

Outro episódio que me fez pensar sobre essa questão de ser brasileiro aconteceu quando eu estava na Alemanha. Era sábado, em um bar com uns amigos, alguém chegou e convidou a todos para “um

samba da pesada tocado por uns alemães”. Eu gostei da idéia, já que era uma oportunidade de matar a

saudade do Brasil. Quando estávamos chegando, eu comecei a ouvir. [Gil faz o som do bumbo, do ritmo do samba.] Nós chegamos. Eu estava ali, ouvindo o samba e eu não dançava. Meu corpo não conseguia mexer. Eu falava comigo mesmo: “Que coisa engraçada, está tudo certo, os caras estão

tocando, tem o tamborim tocando, a caixa tocando e eu não me movo!”Aí, eu tive o entendimento de

que o Brasil sabe fazer uma coisa que ninguém sabe! A gente tem uma maneira de tocar o samba que é nossa. Ali me veio a lembrança de uma coisa que ouvia do Carlos Leite, professor de dança clássica que tive, no início de minha carreira. Ele costumava dizer que não bastava ficar só na forma do braço, só na coisa externa. A atitude de um bailarino clássico implicava em trazer a dança para dentro do corpo da gente! Naquele momento, eu entendi que um saber tocar samba envolve uma atitude que o brasileiro sabe tomar. Isto, como resultado de uma vivência, um conhecimento interno da música, na sua estrutura. O samba é uma música para se dançar e a dança no samba é... [Gil levanta e começa a

dançar]: um, dois, três / um, dois, três / um, dois, três. O cara toca o surdo faz: um, dois / um, dois / um, dois. [Gil faz o som como um surdo tocando]. Este dois tem de combinar com este três do meu pé. Então, o cara que toca o samba, ele tem o dançarino na cabeça dele. O alemão não diferencia este toque, um e dois, para sambar, daquele próprio para marchar. Ele vai bater o dois certinho, mas não vai caber o três lá dentro. Com isto, não é possível dançar. Acabou que estas situações vividas, na Venezuela e na Alemanha, levaram-me a ter vontade, a tomar a decisão, ao voltar para o Brasil, de propor uma coisa de negão, brasileiro, urbano! Que era a nossa praia!