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teórico-conceituais da pesquisa Primeiramente, apresento dados relativos ao Jazz (3.1) e, no capítulo seguinte (3.2) exponho dados relativos ao conceito de Cuidado de si, como

2.1. HISTÓRIA DE VIDA DE GIL AMÂNCIO

2.1.3. Cia Sonho e Drama

Durante a ditadura, havia dois pontos de encontro fortes, verdadeiros pontos de formação, em Belo Horizonte: o murinho da FAFICH e, no Maleta, a Cantina do Lucas. O murinho, de sete horas da manhã, até as onze, meia noite, sempre acontecia algo com este caráter de formação. Eu, por exemplo, chegava de manhã, sabia que iria encontrar o Reginaldo, que era um cara que jogava capoeira. Então, eu sempre chegava cedo e ficava jogando capoeira com ele. À tarde, o pessoal que era músico ia para o murinho tocar violão. E ali eu ficava, aprendia uma canção nova ou a gente compunha. Era um ambiente de efervescência. No caso da Cantina do Lucas, lá era o lugar em que os artistas se reuniam. E era inevitável pensar, discutir arte, falar de Stanislavski, Brecht e tantos outros, quando a gente se encontrava. Naquela época, todo mundo andava ou com a Folha de São Paulo ou com o livro debaixo

do braço. E era sempre assim: “Olha o que estou lendo? Compra este livro, que é legal!” Era um lugar que tinha informação.

Com o término da ditadura, a cidade foi ganhando outra configuração. A turma que estava comigo até ali dividindo a mesma dureza começa a compor outros grupos que vão se caracterizar, inclusive pelo

status social. Vão surgindo outros espaços como a Casa dos Contos, a Cervejaria Brasil. A partir de

então, deu início outras relações com o fazer artístico. Eu tinha um trânsito tanto com o pessoal da música, do teatro, como da dança. Interessante que era possível identificar o perfil econômico dos artistas fazendo um tour pelos bares. O pessoal mais rico, a gente encontrava na Cervejaria Brasil, depois descia para Casa dos Contos, até chegar no Maleta. Era ali que estavam os radicais, a turma

underground que ainda mantinha certo espírito! Aí, nós começamos a nos perguntar sobre o que fazer

no teatro?

Nesta época, eu trabalhando com o Eid e Leri Faria Júnior, na montagem “Drops anis”, encontrava com o Carlão, o Carlos Rocha. Eu o conhecia desde 77 mais ou menos. Ele convidou-me para montarmos a Cia. Sonho e Drama55. Ele dizia: “Nós temos uma batalha que é libertar o teatro da

ditadura do diálogo.” Isto porque o teatro estava muito aprisionado. A cena teatral estava muito presa

ao duelo oratório. Então, o cenário, a música, a performance do ator, ela ficava muito presa porque o ritmo com o qual o diálogo tinha que acontecer, o entendimento do texto, não deixava espaços vazios para que outras linguagens pudessem ocupar! Nós começamos a investigar este processo. A Sonho e

Drama foi então a primeira experiência de grupo. Isto foi na década de 80. Durante um ano era só eu e

ele, em um trabalho que se estendia de oito da manhã às seis da tarde, de segunda a sábado. Ensaiávamos no antigo Cine Guarani, que estava em processo de demolição. Até ali, nos trabalhos que eu tinha feito, em grupos diversos, a preocupação central era com o texto. Na Sonho e Drama, além disto, a gente lançava atenção tanto na preparação do ator quanto na pesquisa deste processo de preparação do ator, as possibilidades do uso da palavra, do corpo, do cenário, da música de cena.

A exploração de elementos físicos para compor a cena.

Na Sonho e Drama, nós fomos fundo nessa pesquisa. Geralmente, na época, o uso dos objetos ou o cenário eram simplesmente decorativos. A trilha sonora era pano de fundo. Na Sonho e Drama, pelo contrário, o cenário tinha uma função, a trilha sonora dialogava com a fala do ator. Este tipo de visão começou a ser construída durante esse um ano em que eu e o Carlão ficamos pesquisando o uso desses elementos na construção da cena e na preparação do ator para lidar com esses elementos. Foi muito bacana!

Eneida: E os financiadores?

Gil: Ninguém, nada, a não ser mamãe e papai. Nesta época, eu não tinha filho, morava com o meu pai

João. Ele bancava. Daí, eu pude ficar ensaiando com o Carlão. Foi a minha escola! Eu li Borges, Dom Quixote, Impressionismo, o Grande Sertão Veredas.

Eneida: O Carlão era o quê? Era quem?

Gil: Ele era ator também. Trabalhava com contabilidade. Ele era um cara muito inteligente, lia muito e

me punha para ler. Cada hora era um livro ou um texto para ler. Foi uma formação densa! Eram textos com temáticas complexas, diferentes. Pegávamos, por exemplo, o método de Grotowski. Íamos destrinchando cada exercício.

Cenas Bombril - Interferência na cidade, brincando

Nós íamos trabalhando, trabalhando, trabalhando, como se debulhássemos os métodos, investigando as sutilezas deles. Quando terminamos esta fase, montamos uma performance, os dois. Ela era muito bacana! Chamava A Boca das Coisas. Nós pegamos o texto Esperando Godot56, de Samuel Beckett, o

dividimos em onze cenas e dávamos o nome a elas de cenas Bombril! Elas tinham, então, “mil e uma

utilidades”. Com uma delas, nós saíamos pela rua. Eram dois personagens Didi e Gogo. Nós tínhamos

o macacão igual. Era verde. Na cabeça, nós púnhamos um pinico. Também, tínhamos vários óculos e um binóculo feito pela Vandinha, uma grande amiga neste processo. Ele era grande e tinha dois olhos pintados. Eu carregava uma coleira. Na verdade, um barbante e que era o nosso cachorro. O Carlão carregava uma gaiola toda dourada e dentro dela havia um coração partido cheio de moedas. Nós saíamos andando. Chegava perto de uma banca, a gente falava: “Tem notícia boa? Se tiver notícia boa

eu compro.” Aí, o cara: “Claro que tem!” Aí, nós dois: “Gogo, abre a primeira página do jornal.

Tinha lá: “Morreu não sei quem ontem. Desastre em tal lugar.” Nós, então: “Ah, meu amigo, você só

tem notícia ruim. Não vou querer o jornal, não.”

Aí, pegávamos alguém andando com uma mala. A gente colava na pessoa e ia fazendo comentários sobre o que havia na mala. O Didi era o pessimista e o Gogô, o otimista. Um falava: “Garanto que ele

está carregando um monte de processos. Ele vai acabar com o cliente hoje!” Aí o outro: “O que é isto? Aposto que ele está carregando poemas de amor! Ele ficou a manhã inteira escrevendo estes poemas. Ele vai chegar em casa e dedicar estes poemas à sua esposa ou a namorada!” A pessoa

acabava morrendo de rir no caminho. Com tudo isto, nós íamos fazendo interferência na cidade e brincando.

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“Esperando Godot” estreou em 1953, em Paris. Dois atos. O cenário: uma encruzilhada campesina, lugar indefinido. Vladimir e Estragon (dois amigos são tristes, deslocados) lá se encontram para esperar um tal de Godot.. Eles enfrentam a falta de sentido da existência com diálogos triviais e atividades inócuas. Godot parece ser a única esperança de sua existência. Não se sabe quem é ele ou por que a dupla o espera. Ao final do primeiro ato, um garoto entra em cena para avisar que Godot não viria naquele dia, talvez no dia seguinte. O segundo ato reproduz o primeiro, com pequenas variações. Ao final, outro garoto entra em cena para avisar que Godot não viria naquele dia, talvez no dia seguinte. Vladimir e Estragon pensam em se enforcar, mas desistem da idéia. No derradeiro diálogo, Vladimir pergunta ao amigo: “Então, devemos partir?”.Estragon responde: “sim, vamos”. Mas eles não se mexem. (...) Expressão “esperando Godot” era usada para designar esperas sem esperanças, a vida sem sentido. WOOD Jr., Thomaz. Disponível em: <

A partir daí, fizemos a Sonho e Drama, iniciando o teatro experimental em Belo Horizonte. Ela foi para mim a grande escola: de trabalho de ator, de trilha sonora, preparação corporal. Em 81, nós convidamos a Cida Falabella, o Luiz Maia, o Bernardo Mata Machado, o Paulo Lisboa. Era um grupo de cerca de oito, nove pessoas. As produções eram baseadas em adaptações de romances. O Carlão fez adaptações de o Processo57 e a Metamorfose58, de Kafka. De Antígona, nós fizemos adaptação de três textos: o de Sófocles, de Brecht e a de (Jean) Anouil. Também, fizemos Grande Sertão Veredas59, do Guimarães Rosa e “Vida de Cachorro”, de Ivana Andrés. Minha primeira montagem de teatro infantil. Com ele, eu ganhei o prêmio de melhor trilha sonora. No decorrer dos trabalhos desenvolvidos na companhia, eu fui deixando de trabalhar como ator e, aos poucos, fui assumindo a função de responsável pela trilha sonora e preparação corporal do grupo. No início, as trilhas eram principalmente gravadas e executadas fora do palco. Depois passou a integrar a cena, sendo que parte dela era produzida ao vivo. No final da década de 80, eu e Carlão já estávamos fora da Companhia. A Cida Falabela continuou mantendo o grupo e a direção dos espetáculos. Quando ela montou “A Casa do Girassol Vermelho”, do Murilo Rubião, ela convidou-me para fazer a trilha. Nesta época, fazia parte da Sonho e Drama a Elisa Santana, Simone Ordones, o Epaminondas e o Helvécio Isabel. Com este espetáculo a Companhia fez a sua primeira viagem internacional, participando do Festival Internacional de Teatro del Oriente al Ocidente, na Venezuela. O espetáculo foi um sucesso e o público nos recebeu com muitos aplausos. Foi uma experiência emocionante para todos!

Companhia Sonho e Drama, outro jeito de fazer teatro Eneida: Você já vinha trabalhando no teatro, mas não com este tipo de formato.

Gil: É. Eu sempre trabalhei como ator. Era um diretor que chamava aqui, era outro que chamava ali.

Era um elenco que se formava a cada montagem. E, na Sonho e Drama, às vezes, convidávamos pessoas, mas existia um núcleo que era fixo. Lá, nós começamos a construir um processo de formação do ator porque isso era muito deficiente na cidade. Em Belo Horizonte, havia só uma escola que era o TU (Teatro Universitário), mas era uma escola muito tradicional. Vinha de uma tradição das escolas da Inglaterra, do actor studio60, de Nova Iorque. Muitos dos seus professores haviam estudado

57

Frase inicial: “Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã.” Cf.: < http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Processo>. Acesso em julho de 2007.

58

A Metamorfose (Die Verwandlung em alemão), é um conto escrito por Franz Kafka, publicado pela primeira vez em 1915.

"Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto".

Assim, Kafka inicia a história de Gregor, um caixeiro-viajante "obrigado" que deixou de ter vida própria para suportar financeiramente todas as despesas de casa... Cf.: < http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Metamorfose >. Acesso em: 9 de julho de 2007.

59

Grande Sertão Veredas: livro de Guimarães Rosa escrito em 1956. Um dos mais importantes livros da literatura brasileira. (...) A aridez sertaneja, enfatizada, sobretudo, na linguagem visceralmente regionalista, contrasta com a dimensão universal da narrativa de Riobaldo. Homem e mundo, realidade e devaneio, mundano e divino, são aspectos de um mesmo conflito, exaustivamente contemplado pela literatura universal. Disponível em: <

http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Sert%C3%A3o:_Veredas >. Acesso em: 9 de julho de 2007.

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O Actor’s Studio é uma associação de atores profissionais, diretores de teatro e roteiristas situado em Manhattan, na cidade

também em Londres. Então, em BH, não havia uma escola de teatro brasileiro, experimental. E a

Sonho e Drama foi onde começamos a estudar de verdade. Eneida: Em quem vocês se inspiravam?

Gil: O Carlão se inspirava muito no teatro Japonês Nô61 ou o Kabuki62. Ele trazia vídeos para gente assistir, fotos do teatro Nô. Outra fonte eram as leituras sobre o surrealismo63, o impressionismo64. Víamos muitos quadros e livros dos pintores. Nós queríamos construir a cena como um quadro. Ela tinha que ter esta plasticidade! Então, discutíamos muito quanto à plasticidade da cena, a luz. Nós começamos a buscar este tipo de informação, seja nas Artes Plásticas, como falei, no teatro Japonês e diversos autores que tinham concepção de teatro, do ator, diferente da concepção tradicional.

Deborah Kalmar65 e o trabalho com o corpo

Então, nós fomos pegando estas informações e tentando traduzir para o nosso contexto. Nesta época, eu tive uma sorte imensa, porque apareceu, em Belo Horizonte, a Deborah Kalmar. Ela era Argentina. Estava na cidade para dar uma oficina sobre danças do mundo para o Grupo do 1º Ato. Então, ela tinha todo um trabalho relacionado à expressão corporal diferente daquela história: “Vamos imaginar

pelo Group Theater, baseado nas inovações de Konstantin Stanislavski. O “método” ficou conhecido e respeitado através do trabalho de Lee Strasberg, diretor artístico do Studio, a partir dos anos 50. Ele recebeu reconhecimento mundial pela qualidade inovadora de sua técnica, de completa submersão no personagem. Os estudantes do Studio têm a oportunidade de desenvolverem conjuntamente suas habilidades num ambiente experimental, onde podem correr todos os riscos na criação de seus personagens sem a pressão dos papéis comerciais. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Actor's_Studio. Acesso em: 4 de julho de 2007.

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Teatro Japonês: As duas formas teatrais mais famosas japonesas são nô e o kabuki. O primeiro era um teatro nobre em que participavam poucos atores; seus movimentos eram lentos e usavam máscaras para indicar seus papéis; um coro canta grande parte da história, ao som de flauta e de tambores. Disponível em: < http://www.edukbr.com.br/artemanhas/teatro_japones.asp >. Acesso em: 5 de julho de 2007.

62A palavra kabuki, junção de três ideogramas, indica por si só a variedade e as múltiplas formas desta arte. Em japonês

moderno, o vocábulo se escreve com três caracteres: Ka, bu, ki, que significam canção, dança e habilidade. Ele é um espetáculo popular japonês que combina realismo e formalismo, música e dança, mímica, encenação e figurinos. Em geral, as peças de kabuki, intensamente líricas, são vistas menos como literatura do que como veículos por meio dos quais os atores exibem suas habilidades, em desempenho visual e vocal. Tradicionalmente, o kabuki implicava uma constante integração entre os atores e a platéia. Como a programação durava de manhã à noite, o ir e vir do público no teatro era constante e as refeições se serviam ali mesmo. A origem do Kabuki remonta ao início do século XVII, quando a dançarina Okuni, à frente de uma companhia de atrizes, realizava uma representação que parodiava temas religiosos, com danças de ousada sensualidade. Em 1629, esse tipo de kabuki foi proibido pelo governo. O espetáculo passou a ser montado com rapazes vestidos de mulher e, mais tarde, como ainda fosse reprimido, com homens maduros, solução que se manteve. O kabuki incorporou elementos tradicionais do drama japonês, como o nô e o joruri, teatro de marionetes. Disponível em: < http://www.dionisius.hpg.ig.com.br/t_japones/kabubi.htm >. Acesso em: 7 de julho de 2007.

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O Surrealismo foi um movimento artístico e literário surgido primariamente em Paris dos anos 20, inserido no contexto das

vanguardas que viriam a definir o modernismo, reunindo artistas anteriormente ligados ao Dadaísmo e posteriormente expandido para outros países. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Seus representantes mais conhecidos são Max Ernst, René Magritte e Salvador Dalí no campo das artes plásticas e André Breton na literatura. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo>. Acesso em: 7 de julho de 2007.

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Impressionismo: movimento artístico. Revolucionou profundamente a pintura e deu início às grandes tendências da arte do século XX. Surgiu na pintura européia do século XIX. Nome derivado da obra “Impressão, nascer do sol” (1872), de Claude Monet. Os autores impressionistas não mais se preocupavam com os preceitos do Realismo ou da academia. A busca pelos elementos fundamentais de cada arte levou os pintores impressionistas a pesquisar a produção pictórica. Não mais interessados em temáticas nobres ou no retrato fiel da realidade, mas em ver o quadro como obra em si mesma. A luz e o

movimento utilizando pinceladas soltas tornam-se o principal elemento da pintura. As telas eram geralmente pintadas ao ar livre, para que o pintor pudesse capturar melhor as nuances da natureza. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Impressionismo >. Acesso em: 7 de julho de 2007.

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que você é uma plantinha que está nascendo.” Algo completamente careta! A Débora não. Ela trouxe

uma visão de trabalho corporal buscando para isto fundamento em diferentes culturas. Se eu vou buscar uma soltura da musculatura do corpo, então, eu vou trabalhar com os ritmos africanos, vou buscar esta qualidade de vibração da musculatura. Foi um dos grandes cursos que eu fiz. Isto porque, ao mesmo tempo em que ela trabalhava um movimento, ela trazia a música, falava sobre a cultura, mostrava livros referentes a este lugar. Foi um curso fantástico! Durante o curso nos construímos uma grande amizade. Com base no que eu aprendi no curso, eu comecei a desenvolver o meu próprio trabalho de preparação corporal para artistas. E quando eu tinha alguma dúvida, nós trocávamos cartas e ela me dava dicas sobre o que eu poderia experimentar.