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CATEGORIZAR PARA COMPREENDER

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.1 CATEGORIZAR PARA COMPREENDER

A observação, compilação e descrição da mística gerou, entre teóricos de diversos campos de estudo, a formulação de classificações que agrupam diferentes tipos de experiência. Trata-se de uma divisão metodológica que procura fornecer um modo objetivo de conhecer o fenômeno místico em seus traços mais específicos,

embora não haja, com isso, a intenção de fragmentar ou esvaziar um saber de reconhecida função unificadora e totalizante.

A experiência mística é, evidentemente, observada como experiência totalizante, que resulta de uma estrutura ontológica, surgida da consciência e projetada para o ‘alto’ e para o ‘outro’, experiência, portanto, de profunda interioridade, no sentido de englobar imanência e transcendência. Desse modo, a mística pode ser vista como algo inerente à espiritualidade humana. Uma experiência simultaneamente interna e relacional. Surge como desenvolvimento natural de anseios metafísicos da humanidade, que vêm se repetindo e se perpetuando ao longo da história.

Para melhor compreendê-la, são comumente mencionadas duas grandes categorias, que buscam abarcar todos os fenômenos místicos relacionados na história humana: 1) aqueles considerados de orientação essencialmente mística/contemplativa, como os do Extremo Oriente, e também os de origem filosófica e profana; e 2) os fenômenos proféticos derivados do tronco abraâmico. No entanto, essa classificação pode ser facilmente refutada, pois não tem condições de explicar de que forma algumas experiências apresentam traços de ambas as categorias. Do mesmo modo, alguns relatos da mística profana se assemelham tanto a algumas experiências orientais quanto a algumas cristãs.

Certos teóricos sugerem uma tipologia diferenciada, e seus critérios, evidentemente, são variáveis, embora resultantes de observações e estudos feitos, na maioria das vezes, com base nos mesmos relatos místicos. Apresentam interpretações específicas, decorrentes das áreas de seu interesse e conhecimento. Podem-se encontrar abordagens teológicas, filosóficas, psicológicas ou, ainda, algumas exclusivamente comparativistas, de enfoque histórico.

Autores60 como W. Ralph Inge, J. A. Cuttat, W. T. Stace, N. Smart, B. Barzel e R. C. Zaehner, além de outros, apresentam diferentes tipologias, com alguns aspectos em comum, mas que acabam por se tornar reducionistas. A própria complexidade da experiência, com seu caráter altamente subjetivo, aliada à dificuldade de descrição em linguagem comum, impede que tentativas de enquadrá-

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Velasco (2009) expõe a tipologia desses autores, enfatizando os pontos em comum e demonstrando o quanto é complexa a tarefa de enquadrá-los em categorias específicas, porque tais fenômenos não são entidades isoladas que possam ser compartimentalizadas. Muitas, embora enquadradas em uma tipologia específica, podem apresentar também características identificadas com uma categoria oposta.

la em tipologias objetivas obtenham sucesso. Todas as classificações sofrem críticas e não conseguem abarcar o fenômeno em sua totalidade.

É possível compreender a quantidade de tipologias da mística disponíveis nos mais variados estudos, em função do grande número de religiões existentes e pelo fato de todas poderem manifestar fenômenos místicos diferenciados, às vezes dentro de uma mesma tradição religiosa e, ainda, acrescentados os fenômenos de natureza semelhante, que ocorrem no mundo profano.

As tentativas de classificação salientam a importância do fenômeno místico na vida humana e o esforço empreendido por muitos pesquisadores no sentido de torná-lo epistemologicamente compreensível.

Três motivos justificam comentar a proposta tipológica de R. C. Zaehner (1978), historiador e profundo conhecedor das religiões orientais: primeiro, por ser um trabalho especificamente desenvolvido em Ciência das Religiões; segundo, por ter se tornado um referencial para outros autores que se propuseram a classificar os fenômenos místicos; e, terceiro, por refutar de forma contundente o essencialismo (ou universalismo) de Huxley (1994), que, com o nome de filosofia perene, tornou-se o alicerce da mística profana. E esta discussão: universalismo X contextualismo ainda se mantém vigorosa no mundo contemporâneo.

Zaehner destaca alguns pontos essenciais que merecem registro. O autor apresenta, em um primeiro momento, duas grandes categorias: a sagrada ou religiosa, que engloba a não bíblica, representada por qualquer religião extra bíblica, e a bíblica ou sobrenatural, constituída pelas manifestações bíblicas e cristãs; e a categoria profana. Ele propõe, no entanto, uma grande classificação, de maior importância, que pretende incluir todos os fenômenos presentes em todos os contextos e em todas as tradições.

Segundo Zaehner (1978), existem três formas de mística. A primeira, a mística da natureza ou o-todo-em-um, quando o todo é um e o um é o todo: por ele denominada ‘pan-en-ismo’. Mas nem o todo nem o um são identificados com Deus, portanto não é panteísta. Ele apresenta exemplos dos Upanixades e da mística profana, experiências conhecidas, que ocorrem no mundo todo. São caracterizadas por um estado de expansão de consciência, quando a distinção entre o sujeito e o objeto desaparece. Sujeito e objeto parecem fundir-se. O objeto experimentado é designado por ‘todo’. Desponta, na personalidade individual, uma consciência cósmica - tudo que existe externamente parece estar contido no interior do indivíduo.

A segunda, a mística monista. São as experiências de unidade com o Absoluto, como princípio do todo, representada pelas muitas discussões dos

Upanixades. É o Brahman dos textos Vedantas. São três as formas fundamentais

apresentadas por essa mística: tu és isso; esse Atman é Brahman; eu sou Brahman,

sendo que Atman é a alma individual idêntica ao Absoluto. Brahman é o Absoluto, o

único que existe verdadeiramente e é eterno. Está além do espaço e do tempo, não tem dependência causal e nada o afeta.

A experiência da chamada espiritualidade filosófica ou mística especulativa, de influência platônica, apresenta traços que podem ser compreendidos como monistas ou como teístas.

A terceira é a mística teísta. São as experiências de união da alma e da pessoa com Deus, pelo amor. O sujeito permanece em união, transformado e deificado. Acontece principalmente nas religiões monoteístas, embora também sejam encontradas tais experiências no Bhakti, uma forma de hinduísmo devocional.

Embora Zaehner seja criticado por deixar, de algum modo, transparecer em suas interpretações certo comprometimento com o catolicismo, seu estudo, juntamente com o Mysticism (1974), de Evelyn Underhill, “permanece como o livro mais lido sobre o assunto no século XX” (MACGINN, 2012, p. 480).

São tantas e tão diversas as experiências místicas descritas na história da humanidade, assim como os contextos históricos, sociais e culturais onde ocorrem tais fatos, que as tentativas de criar uma tipologia que abarque todas as experiências conhecidas se revelam infrutíferas. É possível que o estudioso se apoie em algumas características mais específicas, que parecem definir melhor determinados tipos de experiência, tendo, entretanto, clareza de que sua decisão deve ser maleável.

Desse modo, apesar das muitas tipologias estudadas, optamos por desenvolver um quadro de traços mais gerais, que melhor favorece nossa compreensão da mística. São estes: os aspectos especulativos, os proféticos e aqueles que ocorrem no mundo profano. É preciso enfatizar que as fronteiras que separam tais classificações devem ser bastante flexíveis.

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