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Místico: O Inesperado Vigor Criativo

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CAPÍTULO I SAGRADO, MÍSTICA E MISTÉRIO: O IM-PROVÁVEL QUE SE

1.3 EXPRESSANDO O INDIZÍVEL: A LINGUAGEM

1.3.1 Místico: O Inesperado Vigor Criativo

É bastante comum que o místico, independentemente de sua cultura ou religião, apresente uma aflição muito grande diante da necessidade de comunicar sua experiência. Sofre por não ter a convicção de estar sendo fiel ao descrever o que vivenciou ou pela percepção de que não foi amplamente compreendido. As limitações da linguagem criam a angústia de não obter sucesso na transmissão, aos

outros, da veracidade do conhecimento adquirido na experiência. Tem plena consciência de que aquilo que vivenciou não pode ser transferido, mas deve ser comunicado do melhor modo possível, mesmo com as limitações impostas pela linguagem.

A questão que se apresenta ao místico e o aflige é sobre a melhor maneira de descrever o que viveu com a maior veracidade e compreensão, sem perder a clareza com que foi agraciado.

Desse modo, os místicos se referem a um tipo de conhecimento adquirido, que poderia ser descrito como uma compreensão do incompreensível ou a possibilidade de comunicar o que é indizível. Santa Teresa assim descreve uma experiência contemplativa:

[...] e também algumas vezes lendo, vir inesperadamente um sentimento da presença de Deus que de maneira nenhuma eu podia duvidar de que estivesse dentro de mim ou eu mergulhada n’Ele. Isso não era como uma visão. Creio que chamam de ‘teologia mística’. Suspende a alma de maneira que parece estar toda fora de si. A vontade ama. A memória me parece estar quase perdida. O entendimento não discorre, a meu parecer, mas não se perde. Mas como digo, não opera, antes fica como espantado com o muito que entende. Porque quer Deus que ele entenda que, daquilo que Sua Majestade lhe apresenta, não entende coisa alguma. (SANTA TERESA D’ÁVILA, Vida, 2010, 10, 1).

Nos relatos místicos de diferentes culturas, há evidências de que a experiência apresenta, primeiramente, um determinado tipo de conhecimento, um saber específico, uma gnose no sentido de verdade espiritual, alcançada de forma imediata, como num sopro. E a dificuldade surge quando esse conhecimento, não derivado da experiência, mas ‘sendo’ a própria experiência, precisa ser expresso de forma a produzir sentido para aqueles que não a vivenciaram.

Muitos autores parecem concordar que o oximoro representa, de forma mais concreta, o que os místicos procuram expressar. No entanto, todo e qualquer termo polissêmico e contraditório gera, nas sociedades modernas, inquietação e desconfiança.

Os defensores do pensamento contemporâneo racionalista e racionalizante, estruturado na lógica cartesiana, resguardam-se contra tudo aquilo que possa colocar em discussão um determinado tipo de conhecimento longamente sedimentado. Um comportamento científico intransigente se assemelha, de certa forma, ao posicionamento fundamentalista de determinados grupos religiosos, que

não abrem mão das certezas e verdades absolutas, impostas por um tipo de paradigma já há muito questionado que não aceitam o novo e nem se abrem a ele. Desse modo, no que se refere a experiências transcendentes, tanto cientistas quanto os próprios religiosos podem manifestar uma rigidez dogmática. No entanto, ao longo da história da humanidade, é possível verificar uma constante procura da transcendência a partir do reconhecimento unânime da existência de um mistério.

Bergson (2006b, p. 156) lembra, em suas considerações sobre metafísica, que existem formas de ver que ultrapassam a maneira comum de apreender a realidade. Afirma que, há séculos, existem homens que mostram “que uma extensão das faculdades de perceber é possível”. São os artistas, que Bergson (2006b, p. 157) chama de ‘distraídos’. São pessoas que conseguem se desprender da realidade e, nela, ver ‘mais coisas’; abrir mão de uma visão estreita e limitada e se permitir ‘contemplar’. Semelhante ao modo de ver do místico, embora este não apenas amplie a percepção, mas, principalmente, interiorize e aprofunde sua visão.

Nesse mesmo sentido, Prado (1999, p. 28-29) afirma que “o artista está conectado com esse princípio de transcendência que é por natureza religioso e isso ele expressa na sua obra a despeito dele próprio [...]”. De acordo com ela, poeta e místico falam do que viram, e ter uma experiência desse tipo é ‘ser levado’.

Os poetas têm a licença de entregar-se às contradições porque o objeto da sua expressão deriva da subjetividade, que não é condicionada pela lógica. É nesse ponto exato que mística e poesia se entrelaçam, seja religiosa ou profana. A afinidade entre mística e poesia é mais claramente verificável no que se refere à linguagem. Mas, se para o poeta sua expressão essencial está na poesia perfeita e acabada, comprometida com a estética, para o místico o fundamental é a experiência em si e se ela está adequadamente descrita e passível de comunicar o que ele adquiriu e compreendeu daquilo que experimentou.

Acredita Prado (1999, p. 26) que a linguagem da poesia e a linguagem da mística é uma linguagem só. E oferece como exemplo o Cântico Espiritual de São

João da Cruz: “a linguagem em que ele vaza a experiência dele, na qual eu posso

acreditar ou não, é a mesma linguagem do poema, é a mesma linguagem da arte, é linguagem puramente expressiva”.

O oximoro, figura de linguagem tão comum aos místicos e poetas, representa, portanto, a junção de duas realidades aparentemente contraditórias.41 Panikkar (2007) explica que o paradoxo coloca as opiniões uma ao lado da outra, e o oximoro faz ‘penetrar’ uma ideia na outra. O autor esclarece que o paradoxo coloca o sujeito diante do dualismo e o oximoro do não dualismo. O oximoro seria a contradição, e a contradição não pode ser pensada. Exemplos comuns seriam: música silenciosa, obscura claridade, louca sanidade. Expressões que, embora claramente permitidas e aceitas nas poesias e letras de música, são vistas com desconfiança quando utilizadas nas descrições de experiências subjetivas.

O psiquiatra inglês Laing, citado por Capra (1995), afirmava que místico e esquizofrênico estão no mesmo oceano, a diferença é que o místico nada e o louco se afoga. Mas ambos lidam com reais manifestações de outra dimensão. Portanto, a licenciosidade poética, com suas contradições e paradoxos, é comumente aceita como algo naturalmente esperado apenas no mundo das artes.

Moser (2011, p. 382), analisando a religiosidade mística na obra de Clarice Lispector, afirma, de modo bastante semelhante a Bergson (1978) e James (2004), que “as tentativas de alcançar o divino através da ‘inteligência’ são fúteis”. Para ele, a evolução do místico leva-o do pensamento racional à meditação irracional. A diferença entre o místico e o louco, afirma Moser no mesmo texto, “é que o místico pode voltar, emergindo do estado de graça e encontrando uma linguagem humana pra descrevê-lo”.

Grande parte dos estudiosos da mística afirmam que a utilização das figuras de linguagem pelos místicos demonstra a dificuldade de descrever experiências tão complexas e profundas. A dificuldade, todavia, não reside na experiência, pois esta é sempre clara e compreensível para aquele que a vivenciou, mas nos limites impostos pela linguagem cotidiana. São recursos de que os místicos se servem para mostrar a insuficiência não só da própria linguagem na descrição de experiências sutis, mas para tornar evidente a singularidade da experiência em si, que se opõe a qualquer tipo de acontecimento cotidiano.42

41

Etimologicamente, oxus significa afiado, pontiagudo, sutil, fino, algo que penetra, e moros é algo sem ponta, embotado, embrutecido, louco. O oximoro, portanto, harmoniza palavras de sentido contraditório e lhes dá um novo e profundo significado. É o que o Dicionário Houaiss (2007) define como uma “engenhosa aliança de palavras contraditórias”.

42Velasco (2004, p. 21) afirma: “O paradoxo que é, certamente, a demonstração da insuficiência da

É importante para o místico comunicar que não fala de Deus ou do Absoluto simplesmente como conhecimento abstrato, teórico ou doutrinário. Sua visão não é a do teólogo ou do filósofo. Ele precisa descrever o Deus que conheceu, o Deus que se manifestou, o Deus que se deixou conhecer por ele. Tal encontro contém um determinado tipo de informação que precisa ser expresso, porque, para o sujeito da experiência, a realidade foi alterada. Sofreu uma transformação que o submete, que o faz enxergar a realidade com novos olhos. Seja religioso ou profano, o campo onde ocorreu a experiência representa para o sujeito uma circunstância transformadora. Para o homem religioso, tal experiência é sempre sagrada, recebida com humilde gratidão. É uma dádiva concedida por um Deus amoroso e acolhedor e necessita ser comunicada.

No caso da mística profana, muitas vezes a reação é um significativo e incomunicado silêncio, que resulta em perplexidade e profunda reverência diante de algo do qual é melhor não falar, como informa Grof (2000), citando as experiências da psicologia transpessoal, a ser abordada no próximo capítulo.

Velasco (2009, p. 53) chama a atenção para a ‘transgressão’ da linguagem mística, que consiste na constante tendência de “conduzir o primeiro sentido do vocábulo até o limite de sua capacidade significativa e na utilização simbólica de todos eles”. Daí a quantidade de superlativos, metáforas e paradoxos e a instituição da negação, na teologia, como uma característica da linguagem sobre Deus. Certamente dizer o que Deus não é, linguagem bastante explicitada na Teologia Mística de Dionísio Pseudo Areopagita,43 como já citado, e sua utilização do tema da escuridão revelam a completa incognoscibilidade de Deus, diz McGinn (2012).São indicações de que o ser humano só pode alcançá-Lo através do não saber.

Na Teologia Mística, Dionísio44 faz afirmações a respeito de Deus para, em seguida, negá-las, assim como, intencionalmente, exagera nos superlativos.

Ó Trindade superexistente, ó SuperDeus, ó superótimo norteador da teosofia dos cristãos, eleva-nos à sumidade superdesconhecida e experiência que o comove e o envolve inteiramente e desperta nele energias que nenhuma outra experiência é capaz de suscitar”.

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Dionísio toma a linguagem da escuridão, da nuvem e do silêncio, informa McGinn (2012, p. 259), “da descrição da ascensão de Moisés para encontrar Deus no Sinai (Êxodo 19-20) para fornecer descrições metafóricas da realização do Deus oculto”.

44Sob o título “Como devemo-nos unir à Causa universal e transcendente, e como devemos louvá-La”

Dionísio Pseudo Areopagita, (2005, p. 21) assim se expressa: “Rezemos para encontrarmo-nos também nessa treva superluminosa, para ver através da cegueira e da ignorância, e para conhecer o princípio superior à visão e ao conhecimento, justo porque não vemos e não conhecemos”.

superluminosa e sublimíssima das revelações místicas, onde os mistérios simples, absolutos e imutáveis da teologia são revelados na treva superluminosa do silêncio que ensina ocultamente. [A treva] superesplende na mais profunda obscuridade que é supermanifesta e superclaríssima. Nela tudo refulge, e ela superpleniza com os esplendores dos superbens espirituais as inteligências espirituais. Assim sejam minhas orações. (PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, 2005, p. 15).

As afirmações de Deus como luz e, em seguida, Deus como escuridão, ouvir Deus e ao mesmo tempo afirmar o silêncio de Deus, manifestação do apofatismo, revela a acentuada dificuldade em expressar a experiência vivida. A linguagem do místico é esticada para além das fronteiras do possível. O que parece inteiramente confuso e desordenado representa, na verdade, a impossibilidade da apreensão meramente intelectiva.

As limitações da expressão não se encontram na linguagem em si, mas no espaço entre a apreensão intuitiva do Mistério e a fala. Não existe ressonância com o mundo cotidiano, com a realidade anteriormente conhecida. É neste momento que a linguagem se torna assustadoramente inadequada. Existe um calar e uma urgência em comunicar. A isso se soma uma perturbadora sensação de impotência e insegurança diante de um possível insucesso.

Conforme Bergson (1978, p. 227), o místico é um ser privilegiado que gostaria “de arrastar consigo a humanidade inteira”, mas tendo clareza de que não pode “comunicar a todos seu estado de alma”, busca uma “tradução” do que foi experienciado, para que a “sociedade esteja em condições de aceitar e de tornar definitiva pela educação”.

Tanto budistas quanto judeus, cristãos e muçulmanos, chamaram de “Nada” a plenitude que vivenciaram, por não encontrarem nenhuma semelhança com experiências da vida ordinária e, muito menos, termos adequados para descrever algo tão inusitado (ARMSTRONG, 2001). Diante da transcendência, afirma Armstrong (2011), a língua tropeça, o místico encontra dificuldades que parecem impossíveis de serem superadas e acredita que a terminologia negativa é a única forma de realmente enfatizar a alteridade que se manifesta naquele encontro.

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