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Consciência do que Transcende

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.5 MÍSTICA PROFANA: EXPERIÊNCIA RELIGIOSA SEM RELIGIÃO

2.5.2 Consciência do que Transcende

Richard Bucke (1996), médico psiquiatra de origem inglesa, criado e radicado no Canadá, reuniu, em livro, relatos, descrições e análises de experiências de estados de expansão de consciência que sucederam na vida de pessoas comuns e também de artistas conhecidos, como poetas, escritores e filósofos. Foram incorporadas à categoria de mística profana as experiências que os próprios sujeitos identificavam como algo não pertencente a este mundo, claramente transcendentes, e que ocorriam fora de qualquer contexto religioso.

O livro de Bucke, Consciência Cósmica, hoje um clássico, foi publicado em 1901 e recebeu o seguinte comentário de William James:

Creio que V. Sa. trouxe esta espécie de consciência à atenção de estudiosos da natureza humana de um modo tão claro e inevitável que será

impossível, de agora em diante, não fazer caso dela ou ignorá-la... Mas minha reação global ao seu livro, prezado Senhor, é de que se trata de uma contribuição da mais alta importância à Psicologia e de que V. Sa. é um benfeitor de todos nós. (JAMES, apud ACKLOM, in: BUCKE, 1996, p. 18).

Bucke preferiu denominar de consciência cósmica as experiências por ele realizadas, muito embora suas pesquisas também incluam nesse conceito os relatos de grandes místicos religiosos, como São João da Cruz, Paulo de Tarso, Lao-Tze, Maomé, Buda e outros. O que interessa a este trabalho de pesquisa é sua abordagem da consciência e as manifestações expressas por pessoas sem vínculo religioso.

Bucke (1996) apresenta em sua teoria da psique três tipos de consciência: a) Consciência Simples, que é própria do reino animal. Todos têm consciência de seu próprio corpo e do mundo objetivo ao seu redor; b) Autoconsciência, que é essencialmente humana. Consciente do mundo material que o cerca, consciente de si mesmo como uma entidade distinta do resto do universo, mas capaz de tratar seus próprios estados mentais como objetos de consciência. Ou seja, um ser capaz de raciocinar a respeito de si e de suas circunstâncias. Criou a linguagem, exclusivamente humana; c) Consciência Cósmica, que é o objetivo de todo ser humano e parte intrínseca da própria evolução. Uma consciência do Cosmo, da vida e da ordem do universo. Segundo o autor, com ela ocorre também uma iluminação intelectual, bem como um estado de exaltação moral, um indescritível sentimento de elevação e júbilo. A isso é acrescentado “o que pode ser chamado de senso de imortalidade, uma consciência da vida eterna; não uma convicção de que o indivíduo terá isto, mas a consciência de que já o tem” (BUCKE, 1996, p. 37).

Bucke considera o poeta Walt Whitman o mais perfeito exemplo de alguém que atingiu a consciência cósmica e que a ela se referiu claramente em todos os seus escritos posteriores. Opinião compartilhada por James (2004), que afirma ter o poeta excluído de seus escritos qualquer tipo de elemento contraditório. Segundo James, os escritos de Whitman expressam sua expansão de consciência; e ele os formula sempre na primeira pessoa, mas direcionados à humanidade. Suas palavras estão carregadas de emoções místicas ontológicas e passionais que acabam sempre persuadindo o leitor a acreditar que homens e mulheres, vida e morte e todas as coisas são divinamente boas. Isso contribuiu para que muitos o considerassem um restaurador da eterna religião natural.

O seguinte trecho do poema Canto a Mim Mesmo se tornou uma clássica expressão da experiência mística de Whitman (1983, p. 28):

Creio em você, minha alma: o outro que sou não deve rebaixar-se a você,

nem você deve rebaixar-se ao outro.

Folgue comigo na grama, afrouxe o nó da garganta [...]

eu gosto é do acalanto

do murmúrio valvar da tua voz.

Lembro como uma vez nos espichamos numa certa manhã de verão transparente, [...]

docemente cresceu e se espalhou em torno de mim a paz-sabedoria além de todo argumento da terra, e eu sei que a mão de Deus é promessa da minha,

e eu sei que o espírito de Deus é irmão do meu

e que todos os homens já nascidos são também meus irmãos

- e as mulheres, irmãs e amantes minhas – e que o esteio da criação é o amor

[...]

E diz, ainda, o poeta (1983, p. 33), referindo-se à unidade e ao tempo:

Em toda pessoa eu vejo a mim mesmo, nem mais nem menos um grão de mostarda, e o bem ou mal que falo de mim mesmo falo dela também

sei que sou sólido e são, para mim num permanente fluir convergem os objetos do universo; todos estão escritos para mim e eu tenho de saber o que significa o que está escrito.

Sei que sou imortal,

sei que esta minha órbita não pode ser traçada

pelo compasso de um carpinteiro qualquer.

Interessante constatar, pelas referências sobre Whitman, que aqueles que com ele conviveram tinham a percepção de que o poeta vivenciava algo que o tornava diferente e que não parecia pertencer a este mundo. Na estrofe “Creio em você, minha alma: o outro que sou não deve rebaixar-se a você, nem você deve rebaixar-se ao outro”, Whitman refere-se ao ego e à alma, revelando ambos como

formas complementares de conhecimento, não formas antagônicas. Não há nenhuma rejeição ao mundo terreno, apesar de sua ampliação de consciência, que parece ter sido permanente; ao contrário, existe nele a certeza de que ambos os estados de consciência são parte do todo e devem atuar em conjunto.

Bucke (1996) cita muitos outros exemplos que não podem ser analisados aqui, pois, naturalmente, não haveria espaço para tanto. É fundamental, todavia, lembrar alguns nomes, pelo grau de importância e transformações provocadas na história humana: Honoré de Balzac, que, de acordo com Bucke, tinha como instrumento a intuição, uma espécie de segunda visão, própria dos profetas e dos sonâmbulos. A ele é atribuído um tipo de êxtase crônico - consequência de uma iluminação maior do que a concedida à humanidade em geral - que transcende qualquer expressão intelectual e revela coisas intraduzíveis ao seu sentido interior; o poeta inglês William Blake, possuidor de uma intuição, inspiração ou revelação tão real ao seu olho espiritual quanto o mundo real ao seu olho físico. Há muitos indícios, de acordo com seus biógrafos (BUCKE, 1996), de que Blake vivenciava constantemente estados de ‘consciência cósmica’, a ponto de afirmar que seus poemas lhe eram ditados. Outros nomes são investigados por Bucke, como Francis Bacon, Ralph Waldo Emerson, Alfred Tennyson, Henry David Thoreau e outros tantos, além de relatos de pessoas comuns, provavelmente seus pacientes.

A extensa obra de Bucke, mesmo tendo sido analisada por William James, mereceria um estudo atualizado, com base em fundamentos contemporâneos.

Os trabalhos de Bucke (1996), James (2004) e também Bergson (1978) assinalam a ocorrência frequente de muitas dessas experiências não comuns de consciência, salientando seu aspecto espontâneo, mesmo ‘natural’, entre os humanos. São experiências ‘internas’, claramente percebidas como ‘algo’ que não pertence a este mundo, e que provocam reações de ordem física, ou seja, o corpo também expressa tal acontecimento inusitado: algo que pode, inclusive nos dias atuaais, ser analisado por meio de exames laboratoriais e de imagens computadorizadas. A importância dos sinais corporais nas experiências de expansão de consciência, plenamente aceitas no mundo oriental, é também verificável entre os ocidentais, como já mencionado. Mesmo Plotino (BEZERRA, 2006), que gostaria de libertar-se de seu corpo, o considera indispensável para atingir o Absoluto. As tradições orais, a mística oriental e algumas escolas sufis, entre outras, usam o

corpo para estimular, desencadear e acelerar estados de expansão de consciência, atribuindo-lhe, portanto, um papel ativo na ligação com o transcendente.

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