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Mística Cristã

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.3 MÍSTICA PROFÉTICA: PALAVRA E FÉ

2.3.2 Mística Cristã

Há um questionamento sobre se seria possível afirmar a existência de uma mística originalmente cristã, pois não existe nenhuma menção ao termo mística no Novo Testamento, e a influência das experiências neoplatônicas é evidente em toda a história do cristianismo. Também as diversas formas de mística que se apresentam na história do cristianismo, tanto ocidental quanto oriental, assim como as diferentes interpretações surgidas após a Reforma, tornam difícil classificar quais experiências seriam especificamente cristãs.

Bergson (1978), no entanto, afirma que os místicos são imitadores e continuadores originais, mas incompletos, do que foi, de forma completa, o Cristo dos Evangelhos. É necessário aceitar o fato de que, apesar das diferentes influências e manifestações desenvolvidas pela mística cristã ao longo da história, certamente toda ela se origina na vida e na própria experiência de Jesus Cristo.

Como a sabedoria divina é insondável, a entrega pela meditação e pela contemplação penetra e revela a verdade da palavra. E a fé também se forma na caridade. Expressa uma comunicação entre conhecimento e amor, momento profundo da vida mística, que encaminha o sujeito à transformação da sua circunstância.

Para Vaz (2009), a fé é um dom gratuito de Deus e exige absoluta receptividade, um estado de profunda passividade da própria experiência mística. Santa Teresa d’Ávila (2010) menciona os momentos de consciente entrega e a paciência de Deus, que a esperou por tanto tempo.

Na categoria profética, a palavra não é separada da experiência e, em muitos momentos, a palavra/oração encaminha o sujeito à experiência e proporciona o encontro com o ‘Totalmente Outro’. “As grandes experiências não se assemelham somente pelo seu conteúdo, mas frequentemente também pela sua expressão”, afirma Eliade (1998b, p. 9).

O livro O Sagrado (1985), de Rudolf Otto, que se tornou um referencial no estudo dos elementos que envolvem a experiência mística, merece destaque por apresentar tanto a categoria, chamada de ‘numinoso’, que o autor considerou entidade ontológica absoluta, quanto a experiência em si e os aspectos subjetivos do indivíduo diante do numinoso. Embora criticado por apresentar um referencial essencialmente monoteísta cristão, é importante verificar que Otto está ciente das imensas diferenças entre os místicos, mas admite que as experiências se assemelham exatamente em seus aspectos irracionais. O autor acredita que a experiência mística não se opõe à palavra revelada. De acordo com Eliade (1998b), o próprio Otto destaca, assim como Underhill (1974) já o fizera, impressionantes semelhanças entre o vocabulário e as fórmulas de mestre Eckhart e os de Çankara. Também Velasco (2004) salienta a proximidade das expressões místicas de mestre Eckhart e de São João da Cruz com as noções de ‘nada’ e de ‘vazio’ dos orientais.

Já no início de seu texto, Otto nos apresenta a ideia de sagrado como algo divino, diferente da realidade natural. A concepção de divindade corresponde a uma “racionalização personalista” do predicado que o homem vê em si mesmo como limitado e reduzido, e, aplicado ao divino, seria absoluto e perfeito. (OTTO, 1985, p.7). Como o próprio título do capítulo inicial sugere, o autor analisa os elementos racionais e irracionais encontrados no sagrado. Os predicados atribuídos à divindade são de ordem racional, já que podem ser captados pelo pensamento,

analisados e definidos. Ele alerta ainda para o fato de que os predicados racionais não esgotam a ideia de divindade. A pergunta chave de Otto é se “[...] na ideia de Deus o elemento racional sobrepuja o elemento não-racional, se o exclui completamente ou se é o inverso do que se produz”. (OTTO, 1985, p. 8).

As doutrinas e o tratamento doutrinário, não só nas religiões mas também no próprio misticismo, não encontraram “meios de salvaguardar o elemento não racional de seu objeto. Ela não soube manter viva a experiência religiosa. Por isso a ideia de Deus tornou-se exclusivamente racional”. (OTTO, 1985, p. 9). O objetivo do autor, ao examinar a categoria especial do sagrado, é mostrar que “a religião não se esgota em enunciados racionais e em colocar em evidência a relação de seus elementos de tal sorte que ela tome consciência de si mesma”. (OTTO, 1985, p. 9).

O sagrado é uma categoria complexa. Os predicados de ordem ética a ele atribuídos, como absoluto, moral, perfeitamente bom, são racionais. O autor cria, então, o termo numinoso, do latim numen, necessário para designar as características próprias do sagrado, subtraídos os elementos moral e racional. O termo representa o elemento vivo presente em todas as religiões, a parte mais íntima, e, sem ele, a religião perderia suas características. Para Otto, essa é “uma categoria especial de interpretação e de avaliação, um estado de alma que se manifesta quando esta categoria é aplicada, isto é, cada vez que um objeto é concebido como numinoso”. (OTTO, 1985, p. 9). Essa categoria sui generis não permite uma definição no sentido estrito da palavra, mas é um objeto de estudo. Os elementos irracionais do sagrado se manifestam, via sentimentos quando nos deparamos com o numinoso, já que este surge no plano da experiência religiosa vivida. É inexplicável. É preciso ser vivido. A presença do sagrado desperta no homem o que Otto chama de ‘o sentimento de ser criatura’, o sentimento que a criatura tem de seu próprio nada, em oposição àquela presença numinosa que está além de e acima de toda criatura.

O numinoso não é racional, portanto, não pode desenvolver-se em conceitos. Para Otto (1985, p. 17), “ele é o elemento primário, enquanto que o sentimento de ser criatura é um elemento secundário, e segue o primeiro como uma sombra projetada na consciência”. Segundo o autor, para sabermos o que ele, é precisamos compreender as relações e oposições dos sentimentos que se manifestam. Ainda de acordo com Otto, apenas a expressão mysterium tremendum é capaz de exprimir o numinoso. Segundo o autor, o sentimento por ele provocado se espalha como um

calafrio. A pessoa sente horror e atração, permanece humilde, silenciosa e paralisada diante daquele mistério inefável. Otto chama o objeto numinoso de

mysterium tremendum. E não se pode falar de um sem referir-se ao outro. Os

elementos de um e de outro são claramente diferentes.

O mistério, para o autor, pode ser definido como o mirum ou mirabile. O

mirum é a surpresa do que é secreto, o incompreensível, aquilo que paralisa. Seria o

estupor, diferente do tremor. Segundo Otto, o mysterium, ao longo do desenvolvimento de quase todas as religiões históricas, passa por uma evolução interna, que reforça o seu caráter de mirum. São três graus de evolução: qualitativamente diferentes, incompreensíveis ao entendimento comum; paradoxal, antirracional; e, antinômico, irreconciliáveis e irredutíveis.

Otto salienta o duplo caráter do numinoso, uma estranha harmonia de contrastes: ao lado do elemento repulsivo, o tremendum, há também aquele aspecto que atrai e cativa, o fascinans. O autor caracteriza esse contraste como “o fenômeno mais estranho e mais notável” de toda a história das religiões. “O divino sob a forma do demoníaco, é para a alma objeto de terror e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz”. (OTTO, 1985, p. 35).

A harmonia do contraste - mistério tremendo e mistério fascinante - tem resistido, segundo Otto, a todas as tentativas de descrição. Por isso, a utilização de um termo análogo, emprestado do domínio da estética: a categoria de sublime, que, segundo expressão de Kant, é uma noção não analisável. De acordo com Otto, sublime e numinoso têm em comum alguma coisa de misterioso. Humilha e exalta, mas também comprime a alma e a eleva acima dela mesma.

Otto recorre à lei da associação de ideias, utilizada pela psicologia: ideias semelhantes se atraem. Assim também acontece com os sentimentos. Um sentimento pode fazer um outro vibrar e receber vibrações dele, desde que sejam similares. Ocorre uma transferência da qualidade do sentimento. Este evolui de forma gradativa. Para o autor, não se trata de transmutação, mas, sim, de substituição de um sentimento pelo outro. O sentimento do sublime e do numinoso excitam-se e transferem-se de um para o outro. Na complexa ideia do sagrado e seu duplo caráter do mistério - tremendo e fascinante -, a esquematização encontra-se muito clara: o aspecto aterrorizante, a cólera divina se manifesta nos conceitos racionais de justiça divina, da vontade moral; já o aspecto fascinante se manifesta na misericórdia, no amor e na bondade divinas. É a conexão íntima e duradoura dos

sentimentos que, em todas as religiões superiores, indica que o sublime é também um verdadeiro esquema do sagrado.

Para Otto, é essencial que o culto cristão cultive o elemento racional na ideia cristã de Deus, sempre sobre a base de seus aspectos irracionais, para, assim, garantir-lhe a profundidade.

A mística cristã une a prática da oração e a contemplação da forma, como o fizeram os primeiros discípulos. A base da mística cristã é, portanto, a correspondência entre a fé e a palavra. A mística cristã “nasce no terreno da fé, e a Fé, por sua vez, nasce da audição da palavra. A palavra, por sua vez – e é esse ponto de decisiva importância – é a palavra revelada na história [...]” (VAZ, 2009, p. 75).

O mistério insondável de Deus, revelado na experiência, é o amor: um amor que não se mantém estático ou congelado, mas se direciona ao outro. A essência da mística cristã, que será analisada e enfatizada por Bergson, é o fato de essa experiência ser essencialmente uma experiência que se prolonga em ação amorosa. “[...] No presente permanecem estas três: fé, esperança e caridade; delas, porém, a mais excelente é a caridade” (1 Cor 13,8.12-13).

O retorno da experiência de Deus, para o cristão, é carregado do sentido de unicidade. Cessam as divisões e fragmentações da vida ordinária. O hiato entre o sagrado e a vida profana é superado. As fronteiras entre o ‘eu’ e o ‘outro’ são transpostas e eliminadas, porque o outro se torna uma extensão, o objeto e o objetivo do amor vivido na união com Deus. “A caridade é paciente, a caridade é benigna [...]; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera. A caridade nunca acabará; as profecias? Terão fim. As línguas? Cessarão; a ciência? Terminará” (1 Cor 13, 1-8).

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