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Os Traços Con-sagrados da Experiência Mística

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CAPÍTULO I SAGRADO, MÍSTICA E MISTÉRIO: O IM-PROVÁVEL QUE SE

1.4 O IMPROVÁVEL SE DEIXA CONHECER: A EXPERIÊNCIA

1.4.1 Os Traços Con-sagrados da Experiência Mística

Embora muito se tenha estudado sobre o assunto ao longo dos anos, qualquer investigação sobre a mística exige, ainda, necessariamente, que se apresente a caracterização elaborada por James em 1902, em seu clássico The

Varieties of Religious Experience (2004), já consagrada entre os pesquisadores

como uma das mais cuidadosas análises sobre o tema. Esse consenso, no entanto, não impediu que James fosse criticado por muitos, sob a acusação de ter reduzido a mística a um estado alterado de consciência. No entanto, o que é relevante, por se tratar da psicologia do início do século passado, ele não a transformou em estado patológico.

James (2001) apresenta como legítima característica humana não apenas a vontade de crer, mas o direito que o indivíduo tem de escolher crer, e confirma a possibilidade de a experiência religiosa fornecer um determinado tipo de

conhecimento.48 Assegura o significado metafísico das experiências místicas e atesta a incapacidade de esse conhecimento ser obtido pela inteligência. A esse respeito, James (2004, p. 392) já afirmava como conclusivo em suas pesquisas: “[...] é com triste sinceridade que, penso, devemos concluir que a tentativa de demonstrar, por meio de processos puramente intelectuais, a comunicação da experiência religiosa direta é absolutamente sem esperança”. Essa asserção, considerando o peso do positivismo na primeira década do século passado, significou um enorme avanço para os estudos sobre fenômenos religiosos. James mostra a necessidade de estar aberto para o desenvolvimento de uma Ciência das Religiões, que seja simultaneamente crítica e acolhedora dos relatos de experiências pessoais. O que, de certo modo, não é diferente da filosofia, que vive das palavras, mesmo que fato e verdade se coloquem em nossas vidas transcendendo formulações verbais.

Embora os quatro traços descritos por esse autor, e que caracterizam a mística, realmente não esgotem tudo o que tais experiências manifestam, são capazes de sintetizar alguns pontos essenciais comuns aos inúmeros relatos estudados.

O primeiro, é a ‘inefabilidade’, que demonstra ser a mística uma experiência estritamente pessoal, subjetiva, incapaz de ser transferida a outrem e de difícil comunicação, muito semelhante aos estados afetivos, o que difere das experiências de ordem intelectual. É a característica mais evidente de todas, pois torna claro que a mística é algo que só pode ser experienciado individualmente. Afirma Velasco (2009, p. 320): “e esta dependência da experiência é tamanha que pode ser comparada à que condiciona captar música com ser dotado de ouvido”.

Conforme Santa Teresa d’Ávila,

Há coisas tão delicadas que o intelecto, por mais que se esforce, não tem capacidade de sugerir sequer uma ideia para exprimi-las adequadamente. Qualquer explicação parecerá obscura aos que não o experimentaram.

48

No texto A Vontade de Crer (2001), James discute questões relacionadas ao dogmatismo, tanto científico quanto religioso, na busca da verdade e se posiciona abertamente contra o ceticismo pirrônico. Convida seus alunos a perceberem que a crença nas chamadas ‘evidências objetivas’ resulta, necessariamente, de escolhas subjetivas. Mostra que a história da filosofia nada mais é do que a alternância de proposições consideradas evidentemente certas por alguns e em seguida consideradas falsas por outros. E que abandonar a doutrina da certeza absoluta não significa abandonar a busca da verdade propriamente dita. Legitima, dessa forma, a pesquisa acadêmica sobre experiências místicas e a necessidade de o pesquisador se manter aberto e flexível diante de seus objetos de investigação.

Quem, todavia, tiver experiência, bem o entenderá, especialmente quem muito a tiver. (2012, p. 72)

O segundo traço é a ‘qualidade noética’. A experiência mística apresenta um modo de conhecimento que não depende e não passa pelo intelecto. “São estados de profundos ‘insights’ de verdades não exploradas pelo discurso intelectivo. São iluminações, revelações cheias de significado e importância”, diz James (2004, p. 329).

O sujeito tem possibilidade de atingir a verdade e obter conhecimento sem o auxílio da racionalidade. A experiência proporciona um determinado tipo de conhecimento imediato, sem interferência de nenhuma autoridade, de nenhuma espécie de intermediação e independe da bagagem intelectual prévia do sujeito experimentador.

A esse respeito Santa Teresa d’Ávila (2012, p. 172-173) relata que são tantas coisas juntas que lhe são ensinadas, as quais não poderiam ser concebidas “ainda que trabalhasse em ordená-las com a imaginação e o pensamento durante muitos anos. Não é a visão intelectual [...] sem palavras compreendem-se várias coisas.” Admite ser algo que vê com os olhos da alma e não do corpo, e que se trata de “um conhecimento admirável que não é capaz de explicar”.

A ‘transitoriedade’ é o terceiro traço. A experiência mística não é passível de ser prolongada. De acordo com James (2004), com exceção de algumas raras circunstâncias, as experiências duram meia hora ou, quando muito, uma ou duas horas. Quando a experiência se dissolve, pode ser reproduzida pela memória, embora não com o mesmo grau de precisão. Daí a urgente necessidade de expressão. A experiência pode ocorrer novamente e, quando acontece, é prontamente reconhecida. E, nas recorrências, seu contínuo desenvolvimento se aprofunda em riqueza interior e importância.

Diz Santa Teresa (2012, p. 174) às suas irmãs que não parecerá de muito proveito a graça, “porque passa bem depressa”, mas afirma que “são tantas e tão grandes as vantagens que deixa na alma que só quem as experimenta poderá entender o seu valor”.

O quarto, é a ‘passividade’. Trata-se de um estado de consciência em que o místico sente que sua própria vontade se encontra em um ponto de suspensão como se tivesse sido envolvido e preso por um poder superior. Há uma completa abdicação do livre desejo e da própria racionalidade.

“Haverá meio de resistir?”, pergunta Santa Teresa (2012, p. 169). “Nenhum, absolutamente”, a Santa mesma responde. Afirma que a resistência é pior, pois “Deus quer mostrar à alma que ela não é mais dona de si mesma [...]”.

Convém salientar que, embora os exemplos citados sejam cristãos, a experiência de Deus ou do Mistério não é monopólio de nenhuma religião ou cultura específica. São muitos e bastante esclarecedores os exemplos de Santa Teresa d’Ávila, exatamente pela forma quase didática com que se dirige às suas irmãs, para orientá-las em seus caminhos e em suas experiências específicas. É bastante evidente a certeza interior de Santa Teresa sobre todo conhecimento adquirido em suas experiências, mas também salta aos olhos a sua consciência sobre as dificuldades de fazer os outros compreenderem o que sabe e o que viveu.

James (2004) se refere também a uma outra qualidade fundamental nas experiências místicas, que, de acordo com Velasco (2009), poderia ser considerada uma quinta característica: os estados místicos exercem uma profunda transformação nas pessoas. Modificam a vida interior do sujeito, provocando, consequentemente, alterações na sua dinâmica social.

A força e profundidade dessas transformações serão enfatizadas por Bergson (1978) em suas análises sobre o misticismo de ação – a característica fundamental dos místicos cristãos, para o filósofo, os únicos que podem ser denominados ‘místicos completos’.

Assim como alguns traços da experiência mística são recorrentes, também o caminho percorrido por esses homens e mulheres apresenta características similares que devem ser examinadas.

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