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Psicologia Transpessoal e o Encontro com o Sagrado

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.5 MÍSTICA PROFANA: EXPERIÊNCIA RELIGIOSA SEM RELIGIÃO

2.5.1 Psicologia Transpessoal e o Encontro com o Sagrado

A psicologia transpessoal, a ‘quarta-força’, refere-se exatamente às experiências que vão além do pessoal, que transcendem o pessoal. A pessoa é descrita como o resultado de uma intersecção de vários fatores, sendo o ser humano um campo de consciência de imensas proporções e infinitas possibilidades.

O termo ‘transpessoal’ vem sendo utilizado com mais frequência desde os anos 1970, mas foi mencionado, primeiramente, de forma independente, por William James e Jung no início do século XX.

Embora sejam muitos os pesquisadores que atuam na área trilhada por Jung, Maslow e Assagioli, é possível afirmar que o campo das pesquisas relacionadas à transpessoalidade contemporânea possui dois representantes, que, mesmo apresentando em seus modelos algumas divergências, construíram um corpo teórico capaz de lidar com as questões metafísicas relacionadas às experiências místicas e suas manifestações, inclusive fora das religiões institucionalizadas. São eles: Ken Wilber e Stanislav Grof.

Wilber (2003) apresenta uma analogia da consciência humana como um espectro eletromagnético de múltiplos níveis ou faixas, que correspondem ao comprimento das próprias ondas eletromagnéticas. Wilber não critica as diversas teorias existentes sobre o psiquismo humano, mas demonstra que as aparentes contradições de análise estão relacionadas com os diferentes níveis de consciência abordados. E os dados obtidos nas cartografias oferecidas não são contraditórios, e sim complementares. Dessa forma, o autor busca construir uma imagem integral do ser humano, agregando estudos das abordagens psicológicas e do conhecimento da consciência existentes em diferentes culturas do Ocidente e do Oriente. Formula uma síntese na qual há espaço tanto para Freud quanto para líderes espirituais.

Wilber (2003) apresenta quatro níveis de consciência: nível do Ego, nível existencial, nível transpessoal e nível da mente ou unidade. Revela que cada

spectrum, ou cada nível, contém um potencial de alienação inconsciente, mas

também possibilidades de crescimento e evolução. O último nível corresponde ao final de um longo processo de uma consciência dividida e inconsciente, em direção a tornar-se consciente e una. Atingir essa meta, de acordo com o autor, é o objetivo das grandes tradições místicas, como a Vedanta, o Zen Budismo; ou as monoteístas: judaísmo (cabala), islamismo (sufismo) e cristianismo.

Wilber preferiu chamar sua teoria de Psicologia Integral, por acreditar que, além de o aspecto transpessoal representar apenas um dos estágios que conduz o indivíduo à unidade plena, o movimento da psicologia transpessoal desconsidera muitas das verdades obtidas pelas demais escolas psicológicas. Esse autor acredita ser necessário integrar em um todo único o conhecimento construído pelas demais cartografias desenvolvidas na história da psicologia, pois elas acumulam informações resultantes da própria evolução da consciência em seus diferentes estágios.

Grof pode ser considerado o grande teórico da Psicologia Transpessoal. A importância de seus trabalhos reside no fato de estarem apoiados em cerca de cinquenta anos de pesquisas, não só de prática psiquiátrica, como também em vivências pessoais e estudos comparativos entre diferentes culturas, etnias e tradições religiosas espalhadas pelo planeta. A base de sua investigação é empírica, ele registrou, gravou e catalogou os relatos dos sujeitos em estado de expansão da consciência. Após muitos anos de observação das chamadas experiências transpessoais, Grof (1997) conclui que elas se originam em níveis profundos da consciência e que não podem ser explicadas pela psiquiatria ou psicologia clássicas. Criou uma nova cartografia, firmada em uma interpretação que transcende o inconsciente pessoal, conforme proposto por Freud. Em sua cartografia, Grof (1997) acrescenta o domínio perinatal (trauma do nascimento) como essencial para a compreensão das manifestações que ocorrem com o ser humano em suas experiências de vida e transpessoais, esta última, também um novo aspecto incluído em sua cartografia. Filosoficamente, o acréscimo de Grof é muito significativo, pois revela que sua base epistemológica se apoia em um conceito de vida que antecede o parto biológico. Assume, dessa forma, a existência de uma consciência pré- nascimento, ou seja, da alma.

Grof (1987) explica a experiência transpessoal como uma expansão ou extensão da consciência, além dos limites usuais do ego e das limitações de tempo e espaço, da forma como são percebidas no mundo tridimensional. Podem também ser chamados de estados incomuns de consciência, por revelarem uma realidade que não pode ser apreendida pelo ser humano em vigília.

À medida que suas pesquisas avançavam, Grof (2000) estranhou o fato de a psiquiatria tradicional ignorar os estados incomuns de consciência, com especificidades reconhecidamente não patológicas, constatando, inclusive, não

haver nenhum termo em que pudessem ser categorizadas. A psiquiatria revelava-se, portanto, incapaz de explicar as experiências transpessoais e preferia desconsiderar a natureza simbólica de seus conteúdos.

Por meio de Campbell e Jung, Grof (2000) percebe que reside na mitologia a chave para compreender as manifestações incomuns relatadas por seus pacientes e em cujas descrições ele encontra muitos elementos sagrados. Assim, ele confirma as afirmações de Jung de que experiências originárias em níveis profundos da psique têm uma certa qualidade, que foi denominada por Otto de numinosidade. Torna-se bastante evidente o interesse de Grof pelos chamados ‘aspectos irracionais’ do sagrado, conforme o estudo de Otto.

Diante do reducionismo demonstrado pela psiquiatria tradicional, Grof decide cunhar o termo holotrópico, para designar os estados não patológicos de expansão de consciência. Palavra composta, significa, literalmente, “orientado para a totalidade/inteireza, ou indo em direção à totalidade/inteireza (do grego Holos= totalidade/inteireza e trepein= indo em direção a algo).” Já o estado comum de consciência ou estado de vigília é denominado hilotrópico, que tende à parte, ao fragmento. A parcela da pessoa que se identifica com o mundo material, com seu corpo, com a razão e a lógica, é o ego, também chamado de ‘pequena personalidade’. Já a ‘personalidade mais profunda’, identifica-se com o Self, tem a possibilidade de se conectar com o Mistério. Self é a dimensão da pessoa que não necessita de intermediação em sua busca e encontro com o Absoluto.

Em suas pesquisas, Grof (2000) destaca que todas as culturas antigas e pré- industriais valorizavam fortemente os estados holotrópicos, tendo até mesmo desenvolvido formas seguras de induzi-los. Ao conhecer, categorizar e descrever muitas dessas formas, Grof denomina-as ‘técnicas do sagrado’. O autor opta pelo termo ‘sagrado’ ou ‘numinoso’, para designar as experiências manifestadas em estados de expansão de consciência.

Os dados coletados por Grof (2000) com grupos ocidentais contemporâneos corroboram a ideia de que é possível reconhecer o Sagrado como parte indissociável daquilo que é designado como natureza humana. Essa conclusão parece confirmar a teoria de Eliade (1992) de que o Sagrado seria um elemento da estrutura da consciência e não uma etapa na história dela. A existência humana é

“[...] alimentada por pulsões que chegam do mais profundo do ser”, afirma Eliade (1992, p.170); e continua, no mesmo texto: “os conteúdos e estruturas do inconsciente apresentam semelhanças surpreendentes com as imagens e figuras mitológicas”. Também Guerriero (2006, p. 23), ao se referir à insistência com que o fenômeno religioso persiste na história da humanidade, mencionando estudos neurobiológicos e genéticos da evolução do sapiens, afirma que “[...] pode estar em nossas próprias mentes a chave para compreendermos o sentido daquilo que entendemos por Sagrado”.

Grof mostra que os estados holotrópicos, sejam eles induzidos por drogas psicoativas, sejam espontâneos ou resultantes de trabalhos respiratórios e corporais, provocam, nas pessoas, quando elas retornam ao estado de vigília, uma espécie de deslumbramento, uma calma e tranquila certeza de ter estado em contato direto com algo que, certamente, não é deste mundo. Esse algo se apresenta como o Totalmente Outro, desperta a consciência de uma alteridade de natureza superior e transcendente. Os relatos são também ricos em detalhes sobre momentos de terror e sensações assustadoras.

Grof (2000) explica que, em seus achados, as experiências holotrópicas, claramente de base espiritual, manifestam-se de duas maneiras: a) Experiência do divino imanente, que sugere uma percepção da realidade diária transformada, em que pessoas, animais e objetos à sua volta são expressões de um campo unificado da energia cósmica, onde as barreiras entre esses elementos são irreais e ilusórias. É a experiência da natureza como deus, ou o deus sive natura de Spinoza; b) Experiência do divino transcendente, que envolve a manifestação de seres arquetípicos e domínios da realidade, que costumam ser transfenomenais, inalcançáveis à percepção no estado de vigília, o estado comum de consciência.

“É notável a descoberta de que as pessoas de uma determinada cultura ou raça não são limitadas aos arquétipos78 das mesmas”, afirma Grof (1994c, p.197). São descobertas reveladoras que parecem identificar-se com o perenealismo ou essencialismo e a defesa da universalidade das experiências de expansão de

78

Grof se fundamenta em conceitos de Jung, para quem os verdadeiros mitos, por este chamados de arquétipos, “são manifestações fundamentais de princípios organizadores que existem no cosmos, afetando todas as nossas vidas”. (GROF, 1994, p. 192). Esses arquétipos, diz Grof (1994), se manifestam na psique individual, mas não são criações humanas. São princípios cósmicos, completamente abstratos, muito além da capacidade humana de percepção; são universais e ultrapassam fronteiras históricas, geográficas e culturais, embora possam ter diferentes nomes e mostrar variações, dependendo de cada cultura. Fazem parte do extenso conhecimento humano e compõem o que Jung veio a denominar de ‘inconsciente coletivo’.

consciência. Fornece exemplos de experiências de pessoas naturais da Índia ou Japão, criadas em suas tradições e que relatam encontro e profunda identificação com Cristo; ou indivíduos americanos brancos, de classe média e moradores de zona urbana, que apresentam, em estados holotrópicos, encontros com Xangô, deus

bantu do sexo e da guerra.

Em seus trabalhos de consultório ou em grupo, Grof (1998) conclui que as pessoas sentem que entram em contato com o princípio supremo do universo. O autor afirma que há evidência de duas formas distintas de experimentação desse princípio: “[...] fundir-se com a fonte divina, sentindo-se um com ela e indistinguível dela, ou manter o sentido da própria identidade, separada e como um observador perplexo, testemunhar de fora o mysterium tremendum da existência” (GROF, 1998, p. 28).

Há uma certeza interior de ter encontrado Deus. Mas uma maioria expressiva se sente desconfortável, acredita que o termo ‘Deus’ é impróprio, porque se tornou trivial e comprometido com correntes convencionais de religião e cultura. Mesmo os termos Consciência Absoluta ou Mente Universal também parecem muito inadequados para expressar a grandeza e o impacto de tal encontro. Algumas pessoas consideram o silêncio a reação mais apropriada à experiência do Transcendente. Para elas, é óbvio que “aqueles que sabem não falam e aqueles que falam não sabem” (GROF, 1998, p. 29).

Após descobrir o potencial curativo e heurístico dos estados de expansão de consciência, Grof (2000) decide desenvolver um método terapêutico, que denominou “respiração holotrópica”. Método que surgiu exatamente da observação e conhecimento das “técnicas do sagrado”, pode facilitar a eclosão dos estados de expansão da consciência por meio de uma respiração abdominal profunda e consciente, de música evocativa e de um trabalho corporal focalizado em pontos específicos.

Grof (1994a) revela também o despertar intenso e inesperado de uma ‘consciência cósmica’. As experiências relatadas mostram que o indivíduo não só percebe a si próprio, mas também o planeta terra como parte integrante de um todo maior - o cosmos - ordenado e inteligente, que se manifesta de forma unificada. A pessoa não se vê mais como um ser isolado, mas como parte de um todo integrado. Quanto mais mergulha em seu interior e vivencia suas experiências transcendentes, mais aprofunda sua ligação com tudo e com todos.

A psicologia transpessoal, portanto, abarca todo o espectro da experiência humana. Assim a descreve o próprio Grof:

A psicologia transpessoal [...] tem uma maior sensibilidade cultural e oferece uma forma universal de compreensão da psique, aplicável a qualquer grupo humano e período histórico. Ela também honra as dimensões espirituais da existência e reconhece a profunda necessidade humana de ter experiências transcendentais. Nesse contexto, a pesquisa espiritual parece ser uma atividade humana compreensível e legítima. (GROF, 2000, p. 211).

Em termos terapêuticos, essa área da psicologia afirma que um indivíduo saudável é um indivíduo uno. Ou seja, tem saúde aquele que se conecta com o transcendente. Desse modo, só é considerada curada a pessoa que tem consciência dessa dimensão espiritual e busca meios de criar acesso a ela.

Embora a abordagem grofiniana tenha sido construída sobre parâmetros da psicologia e corroborada por pesquisas desenvolvidas pela psiquiatria, as manifestações do transcendente também foram observadas e registradas no mundo laico, por Richard Bucke (1996), mencionado no primeiro capítulo. Esse autor manteve seu interesse voltado para as expressões de artistas e de pessoas comuns, não do ponto de vista médico, mas com o objetivo de comprovar a existência de uma consciência cósmica comum aos humanos, passível de ser por eles identificada.

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