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A Opção pelo Mistério

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CAPÍTULO I SAGRADO, MÍSTICA E MISTÉRIO: O IM-PROVÁVEL QUE SE

1.2 GNOSIOLOGIA DO INDIZÍVEL: REFLEXÕES SOBRE O MÉTODO

1.2.3 A Opção pelo Mistério

A grande variedade de experiências místicas documentadas35 proporcionou, no final do século XIX e ao longo do século XX, o surgimento de diferentes abordagens e questionamentos por parte das ciências das religiões, das teologias, da sociologia, da fenomenologia da religião e, ainda, outras pesquisas específicas da filosofia, da psicologia e de estudos comparativos. O impacto das informações surgidas sobre o comportamento religioso de povos fora da Europa aprofundou questionamentos e a vontade de conhecer esse humano, particularizado em cultos específicos, e em suas formas diferenciadas de compreender o mundo.

Mesmo em uma área de estudo tão peculiar quanto a religião, que envolve, especificamente, experiências pessoais, os pesquisadores se veem pressionados por paradigmas científicos, oriundos do positivismo e que criaram especialistas. Tais paradigmas ainda impõem métodos e exigências das ciências naturais que, certamente, reduzem e limitam qualquer tipo de estudo relacionado à subjetividade humana. Desse modo, é possível perceber que, em religião, além do parâmetro científico, muitas vezes equivocado, também há a interferência da fé do pesquisador e de seu envolvimento com sua própria tradição religiosa, dificultando, assim, uma postura objetiva, desvinculada de sua escala de valores, pois não consegue admitir mudança em seus rígidos paradigmas.36

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Bartolomé Ruiz (2004) discorda de Weber com relação ao desencantamento do mundo. Afirma que o desencantamento será sempre relativo. Argumenta que (p.129) “A desconstrução da visão mítico- mágica não desencadeou um processo de anulação total da dimensão simbólica do ser humano, pois o simbolismo não é superável, [...] mas o modo antropológico e social de se relacionar com o mundo e de transformá-lo”.

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Antropólogos como Malinowski, Turner, Lévy-Bruhl, Marcel Mauss e Levis Strauss buscaram em suas pesquisas compreender o ‘pensamento nativo’. Como afirma Geertz (1989, p. 89), “um dos maiores problemas metodológicos ao escrever cientificamente sobre religião é deixar de lado, ao mesmo tempo o tom do ateu da aldeia e o do pregador da mesma aldeia”.

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Thomas Kuhn (2001, p. 115) alerta para a dificuldade do cientista em de abrir mão de seu paradigma e reconhecer os momentos de crise que envolvem sua pesquisa. Cita o próprio Einstein,

Pode também ocorrer a atribuição de graus de hierarquia entre esta ou aquela religião, esta ou aquela experiência, este ou aquele místico. Isso acontece com mais evidência em relação aos fenômenos que não pertencem ao universo religioso do pesquisador.

A questão que se impõe desde o início, e que somente uma cuidadosa metodologia pode minimizar, refere-se exatamente às dificuldades de comparação entre experiências de tradições tão variadas. Existe a possibilidade de concluir que nem tudo neste mundo humano tão diversificado seja passível de comparação. É uma questão que permanece, mesmo que subjacente, nas tentativas de compreender a essência da mística.

Todo estudo, necessariamente, implica interpretação. E não se trata aqui de discutir questões hermenêuticas, mas apenas de salientar a influência da história de vida do pesquisador em geral e seu papel na análise e conclusão dos dados obtidos. Em se tratando da mística, temas que envolvem emoções, sentimentos e afeto não devem ser ignorados.

Da mesma forma, áreas específicas, como história, teologia ou antropologia, tentam construir análises que abranjam todo o universo religioso pesquisado, apresentando respostas que, na verdade, deixam abertas várias questões. Os relatos de mística profana causam desconforto para o pesquisador que segue, por exemplo, rígidos parâmetros teológicos. Alguns estudos de Grof (2000) descrevem relatos de indivíduos saudáveis que, após a ingestão de LSD, apresentaram conteúdo semelhante às descrições de experiências místicas religiosas. São estudos que podem provocar a incômoda constatação de que conteúdos de natureza religiosa também são desencadeados, externamente, por substâncias químicas.

Por outro lado, é possível ocorrer uma exacerbada psicologização das experiências místicas, estimulada pelo próprio desenvolvimento das neurociências, o que contribui para a insistente tentativa de transformar algumas dessas experiências em meros fenômenos cerebrais, como já foi observado.

quando confrontado com as novas teorias quânticas de Heisenberg: “Foi como se o solo debaixo de nossos pés tivesse sido retirado, sem que nenhum fundamento firme, sobre o qual se pudesse construir, estivesse à vista”.

A filosofia, do mesmo, modo reduz a compreensão do Mistério a um Absoluto, racionalizado e isento do afeto, parte essencial da experiência mística, limitando-a aos seus aspectos de conhecimento noético.

Realmente não convencem teorias cujos métodos buscaram enquadrar as diferentes manifestações religiosas na categoria mais ampla, ‘religião’, apenas descrevendo, comparando e classificando, sem a preocupação de elaborar um entendimento mais profundo das questões subjacentes ao próprio fenômeno. A comparação já implica interpretação. O que está subjacente às determinações do pesquisador diante de suas escolhas sobre ‘o que’ se encaixa ‘nesta’ categoria e não ‘naquela’, é uma pergunta que revela a existência de critérios interpretativos sutis, não elaborados com o necessário distanciamento. A mera classificação não abrange o contexto em que ocorre o fenômeno, permitindo uma interpretação subjetiva, baseada em critérios científicos, às vezes muito vagos, que não contemplam a complexidade do fenômeno.

Historicamente, a grande quantidade de relatos resultantes dos trabalhos de etnólogos e antropólogos que, em suas viagens, entraram em contato com diferentes povos e tradições, mostrava que os estudos religiosos estavam diante de fenômenos que se apresentavam em formas múltiplas, mas, simultaneamente, convergiam para um mesmo ponto. Os estudiosos perceberam naquela grande variedade de formas algo a que Velasco (in FRAIJÓ, 2010) atribuiu um certo parentesco, um ar de família, que permitia serem classificadas como diferentes formas de um mesmo fato.

Fenômenos que demandavam, portanto, para seu estudo, a exigência de um método que contemplasse não apenas as descrições e categorizações históricas, mas um aprofundamento capaz de revelar o entendimento de seus significados.

O fundamento metodológico da fenomenologia da religião reside na apreensão do fenômeno como uma experiência vivida. Não se trata de um mero objeto de estudo, é imprescindível a observação e compreensão da experiência como vivenciada pelos sujeitos e suas comunidades. É uma metodologia que acredita ser possível chegar à essência do fenômeno, à sua verdade própria, pois estuda toda a variedade de formas com as quais se apresenta e todos os elementos que interferem em seu desenvolvimento.

Como afirma Velasco (2009), a palavra religião, para o fenomenólogo da religião, não contém a definição de uma essência, que se encontra no cerne das religiões e de suas diferenças.

Desse modo, a palavra “religião” não se refere a um conceito univocamente efetivado nas diferentes religiões. Constitui antes uma categoria interpretativa, dotada de um conteúdo preciso, efetivado de forma analógica nas diferentes religiões. (VELASCO, 2009, p. 46).37

Velasco (in FRAIJÓ, 2010) resume a abordagem da fenomenologia da religião em três passos: descobrir os elementos comuns das diferentes manifestações do fenômeno religioso por meio de uma comparação sistemática e cuidadosa de todas essas manifestações, utilizando-se de recursos da história das religiões e das ciências das religiões; depois, procurar captar as relações que guardam entre si esses elementos comuns, a lei interna que rege sua organização; e, por último, tratar de apreender o significado presente neles e no respectivo mundo humano, o âmbito de realidade que constituem.

A mística, enquanto campo de estudo, é, por muitos, considerada um fenômeno específico que ocorre dentro dos sistemas religiosos. Não representa um fenômeno à parte. No entanto, Bergson e também James demonstraram que essa ideia não é inteiramente correta. Para esses autores, as religiões surgem das experiências místicas, que, em muitos casos, acabam por se tornar experiências fundantes. Porém, e isto é essencial com relação ao significado humano desses fenômenos, um grande número de tais experiências não origina nenhuma religião ou seita, tornando-se unicamente um profundo elemento transformador na vida do indivíduo.

A mística, portanto, é um fenômeno que exige um estudo multidisciplinar. São inúmeros os elementos que envolvem essa experiência, e o risco de fornecer uma visão parcial é muito grande, quando o fenômeno é analisado sob a perspectiva de uma determinada área de conhecimento, incapaz de obter a visão de conjunto.

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Velasco (2009) salienta a importância de compreendermos que os termos são mais do que meras palavras. São símbolos da experiência humana acumulada em épocas e culturas específicas. Alerta para o fato de que devemos estar conscientes de que só podemos falar nosso próprio idioma e que este não esgota o aspecto universal da experiência humana. Palavras como filosofia, religião, arte, mística, Deus, homem e outras têm conotações diferentes em diferentes culturas e regiões, e não necessariamente se referem ao mesmo objeto e são passíveis de comparação ou proporcionam o mesmo entendimento.

Desse modo, o cientista da religião, consciente das possibilidades e limitações de suas diferentes áreas de investigação, deve manter, como parâmetro de seus estudos, uma abordagem fenomenológica.

Quando, em 1889, em sua tese de doutorado, Bergson (2011) reconhece a existência de dados imediatos da consciência, admite ser possível uma experiência imediata. Para Bergson, essa experiência primeira é a intuição, que ele sugere como o método necessário à reflexão filosófica. Ou seja, é a própria experiência interna, que não se restringe a si mesma, mas também a tudo o que é dado sem mediação.

A mística se enquadra, pois, de acordo com Bergson, na categoria das experiências que ocorrem sem nenhum tipo de intermediação.

A presente pesquisa, embora percorrendo os caminhos da fenomenologia da religião, pressupondo a veracidade dos testemunhos, conforme fundamentado por Michel de Certeau (2006), procura manter como fio condutor a intuição bergsoniana enquanto postura metodológica. A alteridade manifestada nas experiências místicas será identificada pelo termo Mistério. Desse modo poderão ser contempladas tanto as experiências das religiões monoteístas quanto das demais religiões, incluindo também os exemplos da mística profana.

As considerações até aqui expostas possibilitam conhecimento e explicações plausíveis para as muitas experiências místicas que acontecem no mundo profano, totalmente desvinculadas da fé ou de qualquer sistema religioso. Há o exemplo do Movimento Nova Era,38 que surgiu nos anos 1960, teve seu apogeu como movimento de massa nos anos 1980 e forneceu muitos relatos de experiências acontecidas fora das tradições religiosas, caracterizando-se por manifestar uma sensibilidade inteiramente impregnada de espiritualidade mística.

Bergson (1978) oferece meios para a compreensão do que é a mística. Seu método, a intuição, abre a possibilidade de conhecimento dessa complexa manifestação de religiosidade humana enquanto área de estudo, por suas diferentes expressões, mantendo um diálogo permanente com a experiência vivida. A busca das fontes, a leitura dos místicos, a contextualização histórica, a classificação dos fatos, são passos necessários em qualquer pesquisa.

38 “[...] a religiosidade de hoje tenta o caminho privilegiado de um novo ingresso na sociedade por

meio da vivência experiencial e das características místicas que lhe são próprias”, diz Terrin (1996, p. 184), referindo-se ao Movimento Nova Era.

O testemunho da experiência contido nos relatos é parte fundamental da abordagem bergsoniana, mas não a essência. O desenvolvimento de um tipo diferenciado de linguagem convida o estudioso a distanciar-se de conceitos apriorísticos e sentir a experiência, alinhar-se com o místico em seu encontro com a alteridade, para depois, então, proceder a sua análise.

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