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A Complexidade do Fenômeno

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CAPÍTULO I SAGRADO, MÍSTICA E MISTÉRIO: O IM-PROVÁVEL QUE SE

1.2 GNOSIOLOGIA DO INDIZÍVEL: REFLEXÕES SOBRE O MÉTODO

1.2.2 A Complexidade do Fenômeno

A busca da objetividade acadêmica deve considerar de forma efetiva as pressões exercidas pelo ethos do próprio pesquisador. É essencial ser meticuloso com relação às limitações do próprio pensamento e de axiomas e paradigmas que norteiam seu trabalho. Ter consciência, por exemplo, de ser fruto de uma sociedade ocidental cristã patriarcal e, hoje, totalmente pluralista. O peso do logos cartesiano na busca do conhecimento, mesmo tratando-se da opção por uma postura fenomenológica, pode influenciar o modo de proceder, inclusive na escolha e interpretação dos diferentes relatos místicos.

A sociedade ocidental é resultado da racionalidade científica, que atingiu seu apogeu no positivismo. Embora posturas críticas evidenciem os desacertos positivistas, eles ainda interferem não só na pesquisa acadêmica em geral, mas também na formação de sujeitos de orientação exclusivamente racionalista. O processo de obtenção de conhecimento, fixado em rígidas regras empiristas e sustentado pela lógica, permanece entre os fundamentos básicos do que é considerado científico nas áreas de humanas, apesar de toda crítica elaborada e constantemente citada de Thomas Khun (2001).30

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Khun desenvolve uma crítica cuidadosamente elaborada do conhecimento científico, em que aponta a existência de ‘paradigmas’ preestabelecidos que fundamentam o trabalho dos pesquisadores.

Ruiz (2004) afirma que a racionalidade ou entronização do logos procurou destituir de valor lógico, epistemológico ou ontológico qualquer aspecto simbólico ou referência ao mundo do imaginário. Por muitos, e de muitas maneiras, os relatos místicos foram e ainda são considerados fruto da imaginação, e esta, identificada como mera fantasia.

A análise psicológica decorrente das teorias freudianas perpetuou, durante muitos anos, a patologização das experiências místicas, por julgá-las resultado de conflitos não resolvidos no desenvolvimento psicossexual infantil.

Por um longo tempo, o mundo psiquiátrico considerou patológicas31 as experiências de alguns dos místicos mais conhecidos da história das religiões. As visões de Hildegard Von Bingen foram atribuídas às suas violentas crises de hemicrania; São João da Cruz foi chamado de degenerado hereditário; Santa Teresa d’Ávila teria sido uma psicótica histérica; as experiências místicas de Maomé seriam resultado da epilepsia (GROF, 1999).

São ‘diagnósticos’ relacionados à pressão exercida pelos parâmetros científicos do início do século XX, quando havia uma exigência de estudos psicológicos de base empírica, determinantes do que poderia ser considerado um comportamento ‘normal’ do ser humano.

Embora, a partir do final do século XX, tenha havido uma intensificação nas pesquisas desenvolvidas pelas neurociências32 por meio de técnicas avançadas de exames e mapeamento do cérebro, trazendo novas informações sobre seu funcionamento, sobre a consciência e suas diferentes manifestações, ainda persiste certa postura de desconfiança e descrédito relacionada a experiências de transcendência, contribuindo para o ceticismo e o preconceito.

Desse modo, referindo-se à tentativa de alguns cientistas atuais de explicar a mística como um epifenômeno do cérebro, Terrin afirma que essa teoria,

[...] ao apoiar-se em uma concepção organicista e neurobiológica da vida do espírito como um todo, torna-se estranha e dificilmente conciliável com o

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Bastide (1959) analisa de forma detalhada questões relacionadas à tese patológica no universo místico, em seu livro Os Problemas da Mística.

32 Damásio (2000, p. 425) explica que “a consciência vem sendo um importante tema da filosofia, mas

até pouco tempo atrás, pouquíssimos neurocientistas haviam trabalhado com ela. Por um breve período do século XX, especialmente nas décadas de 1940 e 1950, a neurociência dedicou considerável atenção aos estudos da consciência. [...] o que hoje se conhece como o campo dos estudos da consciência foi criado ao longo da década de 1980 por um punhado de filósofos e cientistas, de maneira independente, sem que planejassem e inesperadamente”.

mundo espiritual e religioso, devido aos impedimentos e às restrições de sentido em nível espiritual que poderia provocar (TERRIN, 1998, p. 144).

O neurobiólogo contemporâneo Damásio (2004), em seus estudos sobre o cérebro e níveis de consciência, admite ser embaraçoso neurologizar as experiências religiosas. Assim se posiciona o cientista:

É desagradável [...] identificar Deus com um centro cerebral e justificar Deus e a religião com base nos dados da neuroimagem funcional. E os processos fisiológicos por trás do espiritual não explicam o mistério da vida, mas apenas revelam [...] a ligação com o mistério (DAMÁSIO, 2004, p. 297-300).

Sendo, os humanos, seres essencialmente visuais, há uma tentativa de considerar verdadeiro apenas o que pode ser visto e tocado. No entanto, na relação com o mundo, as pessoas atribuem significados, compreendem a realidade, obtêm verdades e as manifestam por meio de linguagem simbólica.

É a junção simbólica, diz Bartolomé Ruiz (2004, p. 134), que proporciona sentido pleno à realidade fraturada. “O ser humano, ao conferir um sentido às coisas, realiza uma juntura simbólica com o mundo [...] confere uma nova unidade ao que estava distante”. A função simbólica se constitui em instrumento de equilíbrio psicossocial (CASSIRER; JUNG apud BARTOLOMÉ RUIZ, 2004).33

O objeto de estudo da mística são relatos pessoais, portanto, mediados pela linguagem e repletos de símbolos. É preciso estabelecer a importância do symbolon não só nos estudos religiosos específicos, mas na compreensão da vida humana em geral.

A imposição de um pensar homogeneizante, baseado no logos, contribuiu para a fragmentação da psique humana moderna. Na mesma medida em que ocorreu uma certa perda de intensidade na capacidade humana de produzir símbolos que atribuíssem sentido à vida, aumentou o individualismo e a alienação social. O peso da racionalidade e o entusiasmo pela técnica e pela ciência aprofundaram um já esboçado período de secularização no mundo ocidental, criando, nos indivíduos, uma desconfiança relacionada às suas verdades subjetivas. Como afirma Eliade (1992), porém, um homem exclusivamente racional é uma abstração. Segundo esse autor, o homem vive uma inextinguível sede

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Conforme Cassirer e Jung (apud Bartolomé Ruiz, 2004, p. 146), “A doença mental nada mais é do que a perda ou distúrbio da função simbólica”.

ontológica, é sedento de Ser. Ou, conforme complementado por Bartolomé Ruiz (2004, p. 130): “[...] sempre existe uma certa dimensão de sacralidade na forma como o ser humano se relaciona com o mundo”.34

Essas considerações parecem fornecer uma explicação clara e coerente para o entendimento das inúmeras experiências místicas que ocorrem no mundo profano, totalmente desvinculadas da fé ou de qualquer sistema religioso.

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