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Mística Islâmica

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.3 MÍSTICA PROFÉTICA: PALAVRA E FÉ

2.3.3 Mística Islâmica

Uma pesquisa sobre o Islã, mesmo que superficial, demonstra ser impossível separar religião e política. É necessário, pois, abordar a questão religiosa, não perder de vista circunstâncias relacionadas ao aspecto político. Estudos (PACE, 2005) mostram que um pequeno grupo, mesmo minoritário, se unido religiosamente, tem condições de conquistar poder político. Isso porque, para o muçulmano, somente a religião tem a capacidade de remover as diferenças pessoais e

consolidar a solidariedade tribal, reforçando, assim, o Estado. Desse modo, um pequeno grupo religioso pode ter controle sobre multidões.

O Islã surge na figura do profeta Muhammad, o Maomé (provavelmente nascido em Meca em 570 e falecido em Medina em 632), sendo, portanto, uma religião da palavra revelada. É importante salientar que sua missão surge de uma experiência extática, decorrente de sua caminhada ascética em busca de Deus. O Profeta tem o hábito de afastar-se da vida cotidiana e entrar em outra dimensão, para ouvir as vozes interiores. O Alcorão mostra que Maomé teria recebido o anjo Gabriel e a revelação, resultante de um estado de iluminação interior de quem busca o verdadeiro sentido das coisas e, finalmente, sabe que entrou em contato com a esfera do sagrado e do divino (PACE, 2005).

Maomé recebe sua missão profética já adulto e em um contexto de pluralismo religioso. Ele se referiu a modelos cristãos e judaicos, como Jesus, Abraão e Moisés. Em um período em que os árabes acreditavam em muitos deuses, sua pregação sobre a existência de um Deus único gerou conflitos e muitas dificuldades para o Profeta.

Após uma série de problemas, Maomé, já com seus discípulos, emigra para Yathrib em 622, ano em que os muçulmanos iniciam a contagem do seu tempo sagrado – o calendário religioso islâmico. A ruptura com o ambiente social de origem, Meca, e a chegada em Yathrib, Medina (em árabe: al-medina significa literalmente “a cidade”), que se chamará a cidade do Profeta, representa um ponto de mutação: o líder carismático, portador de uma mensagem profética de reforma religiosa e ética, torna-se também líder político, informa Pace (2005).

As circunstâncias históricas o forçam a exercer uma soma de poderes que inextricavelmente se fundem com o dom extraordinário recebido de Deus enquanto Enviado seu. A dimensão religiosa e a política se sobrepõem e os dois níveis ficam integrados graças à força da autoridade do carisma originário reconhecido e posto à prova pela e diante da comunidade dos fiéis. (PACE, 2005, p. 53).

Um dos pontos fundamentais que permite a expansão do islamismo é a superação do laço de sangue, determinante das normas das sociedades tribais. Maomé introduz à comunidade de crentes um vínculo de fidelidade a Deus, não mais importando a raça, a procedência social ou pertença tribal. Tornam-se, assim, todos irmanados pela fé. “É a ideia de uma ética universal, portanto, que rompe com

o princípio de identificação étnica que valia na sociedade tradicional.” (PACE, 2005, p. 54).

A experiência de Deus, ou seja, a mística, no islamismo aparenta ser algo inteiramente contraditório, pois essa doutrina se fundamenta na lei, no culto, em alguns atos específicos e centrais da vida religiosa e em uma representação de Deus como radicalmente transcendente. São aspectos que parecem tornar impossível uma união com Ele.

Velasco (2009) nos diz que o Deus do Islã se revela na palavra e em normas de conduta, mas nunca a Si mesmo; o Deus do Alcorão é único, criador, juiz justo, que fala aos homens por seus profetas e enviados, mas que, apesar de sua proximidade dos homens, o mistério de sua vida íntima continua inacessível e sem possibilidade de participação.

Sufismo é o nome dado à corrente mística islâmica. Surge como resultado de um caminhar individual em busca de conhecimento e comunhão com Deus. Os sufis não foram totalmente aceitos, pois se afastaram da rigidez doutrinária, por acreditarem ser possível obter um conhecimento direto de Deus, por meio da devoção e do isolamento e não das instituições religiosas.69

Ocorre uma discussão interessante70 entre alguns pesquisadores: se o sufismo teria recebido influências do monaquismo cristão ou, ao contrário, se os místicos cristãos teriam sido influenciados pelos sufistas. Isso ocorre muito também em função de relatos de experiências místicas com simbologias semelhantes.71

O sufismo desponta, segundo Velasco (2009), como um epifenômeno do Islã, e só teria surgido em função das influências recebidas de diferentes povos e religiões com os quais teve contato ao longo de sua história.

A literatura mística é imensa, afirma Pace (2005). O sufismo pode ser estudado por uma série de textos e documentos existentes desde o início de sua

69 Eliade (2011b, p. 123) afirma que “os sufis eram antirracionalistas ferozes; para eles, o verdadeiro

conhecimento religioso era alcançado por meio de uma experiência pessoal, que terminava numa união momentânea com Deus”. Desse modo, as experiências místicas e as interpretações sufistas claramente ameaçavam as bases da teologia ortodoxa.

70

Velasco (2009) informa que M. Asín Palácios se posicionou contra a tese de L. Massignon, segundo a qual a mística islâmica teria se originado de uma imitação do monaquismo cristão. Mas esse mesmo autor voltou atrás, anos mais tarde, descrevendo uma possível influência dos primeiros sobre os grandes místicos cristãos, como Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz. Porém, Velasco (2009) considera essa discussão já superada pela clareza de traços fundamentalmente islâmicos dos sufis.

71 Pace (2005, p. 193) informa que “[...] o modelo de autoridade e a cultura organizativa das vias

místicas no Islã, embora tomem como ponto de partida o princípio sectário, evoluíram para um tipo de estrutura que recorda as nossas ordens religiosas monásticas”.

história, mas que têm origem em ensinamentos orais de seus mestres. Existem quatro períodos bastante distintos nessa história, informa Velasco (2009): 1) os três primeiros séculos, conhecidos como os anos de luta pela existência, com autores considerados representantes da idade de ouro do sufismo, entre eles, Rabia al-

Adawyya,72 mulher que introduziu o tema do amor gratuito e desinteressado de Deus no ensino austero dos ascetas do sufismo; 2) os autores do século X, que se caracterizam por um conjunto de exposições que se tornariam manuais clássicos indicativos da consolidação do sufismo; 3) engloba o século XI e o místico afegão

al-Gazzali, conhecido, na idade média latina, como Algazel; 4) nos séculos XII e XIV

aparecem importantes obras filosóficas, poéticas e literárias. Surgem tratados filosóficos de caráter gnóstico. O período apresenta alguns dos mais importantes nomes da mística muçulmana, como o poeta Ibn al-Faridh, no Cairo, Djalal al Din

Rumi, o maior poeta místico em língua persa, e Ibn Arabi, nascido em Murcia e

morto em Damasco (1165-1240), que se distingue pela profundidade de seu pensamento metafísico.

É importante enfatizar que, para o sufista, o fim supremo de todo ser humano é a união mística com Deus, realizada pelo amor. E a aniquilação em Deus provoca uma transformação, uma nova vida. Alguns mestres, como Abû’l Qâsim al-Junayd, acreditavam que a experiência mística não podia ser formulada em termos racionalistas, informa Eliade (2011b), por isso proibia que seus discípulos falassem dela aos leigos. Assim, o sufismo adquiriu, ao longo do tempo, uma aura de mistério, só desvendável aos iniciados.

Outro modo de categorizar o sufismo (VELASCO, 2009) apresenta uma corrente intelectual, gnóstica, metafísica; outra corrente afirma o amor como meio de união; e uma terceira, formada por correntes mais populares de confrarias religiosas, que dão maior importância aos meios, como: repetição continuada de palavras ou frases, posturas, danças e outros movimentos corporais, que levam ao êxtase.

Pace conclui que:

O sufismo demonstrou e ainda demonstra grande vitalidade social justamente porque em cada época soube e sabe manter, por assim dizer, “os pés nos dois estribos”: tensão elevada para a procura espiritual mais rigorosa, por um lado, e elaboração de éticas econômicas e sociais (e às

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Relata Eliade (2011b, p. 122), que Rabia, uma escrava alforriada, transforma sua prece noturna em uma longa e amorosa conversa com Deus e é a primeira a referir-se ao ciúme: “Ó minha esperança, remanso e deleite meu, o coração a ninguém mais pode amar além de Ti”.

vezes até de poder político) não indiferentes, portanto, “ao mundo” da vida cotidiana, pelo outro. (PACE, 2005, p.187).

De fato, as pesquisas atuais concluíram que o sufismo é considerado um fenômeno autóctone, mesmo que tenha sofrido numerosas influências de outras tradições espirituais, principalmente no que se refere às expressões e interpretações que os sufis apresentam de sua experiência interior.

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