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MÍSTICA ESPECULATIVA: FILOSOFIA E RELIGIÃO ENTRELAÇADAS

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.2 MÍSTICA ESPECULATIVA: FILOSOFIA E RELIGIÃO ENTRELAÇADAS

A quantidade de experiências e suas características, quando investigadas e detalhadas por pesquisadores, apontam para o estabelecimento de diferentes compreensões de um mesmo fenômeno. Embora o foco permaneça na possibilidade humana de experienciar Deus ou o Mistério, observa-se que a variedade de formas de apreensão da experiência, assim como diferentes representações da espiritualidade, estão relacionadas com maneiras diversificadas de apropriação das crenças em culturas e contextos linguísticos diversos. A constatação inquestionável dessa diversidade impôs a necessidade de agrupar tais vivências conforme algumas características comuns.

A denominada mística especulativa, dessa forma, refere-se aos gregos e ao cristianismo primitivo e manifesta acentuada origem neoplatônica, embora possa também ser claramente reconhecida nos relatos da mística profana. O próprio Plotino, figura máxima do neoplatonismo, é apresentado como exemplo da mística profana.

A categoria especulativa apresenta não só o arcabouço conceitual helênico, mas a utilização da própria estrutura da filosofia grega na construção de um corpo teórico, elaborado para facilitar a compreensão e disseminação da doutrina cristã. A mística especulativa remonta, pois, aos primórdios do cristianismo.

No estudo da mística, torna-se inegável a existência de um enfoque claramente de origem grega nos relatos relacionados ao cristianismo primitivo, notadamente no período da patrística. Nesse sentido histórico, é fundamental reconhecer a importância de Paulo, como cidadão romano de formação cultural grega, na difusão universal do cristianismo. Paulo enfrentava acirrada oposição dentro do judaísmo, ao afirmar que a liberdade e a salvação cristãs eram universais e passíveis de serem obtidas não só pelos judeus, mas também pelos gentios fora da lei judaica. Toda a humanidade merecia e poderia adotar Jesus como o salvador. Embora, aparentemente, essa polêmica pareça ser apenas de cunho doutrinário, foi causa de grandes transformações sociais e políticas, que moldaram a civilização ocidental.

O crescente afastamento do judaísmo e da Palestina e a universalização dos ensinamentos de Jesus do modo anunciado por Paulo helenizaram o cristianismo. Observa-se que a universalidade do Logos da filosofia grega, que o tornava

acessível a todos os povos de todas as nações da terra, facilitou a identificação do cristianismo com o platonismo. Deve-se destacar, necessariamente, que a síntese greco-judaica da palavra Logos feita por Fílon de Alexandria, contemporâneo de Paulo, assim como a abertura do Evangelho de João (1,1) - “No princípio era o

Logos” -, deram início ao relacionamento do cristianismo com a filosofia helênica.

Fílon61 é reconhecido por ser o primeiro filósofo a unificar o ideal contemplativo grego à fé monoteísta bíblica. É preciso salientar, no entanto, que, segundo alguns estudos,62 torna-se possível falar de um neoplatonismo anterior ao próprio Plotino.

O neoplatonismo, fundamental no estudo do desenvolvimento da mística, surgiu concomitantemente aos primórdios da teologia cristã, em Alexandria. Plotino, o último representante da filosofia grega, e Orígenes, o primeiro grande pensador da filosofia cristã, tiveram, em Alexandria, o mesmo professor - Amônius Sacas, platonista, personagem misterioso, de quem, virtualmente, nada se sabe, informa Tarnas (2002). Plotino, ao conhecer seu mestre, teria dito que, enfim, encontrara o homem que tanto buscava (VELASCO, 2009).

As semelhanças da doutrina plotiniana com algumas das afirmativas dos

Upanixades sugerem que Plotino teria também recebido influência do pensamento

indiano (VELASCO, 2009). Essa constatação corrobora a afirmação anterior sobre as dificuldades de limitar as experiências místicas em categorias fechadas. Entre os estudiosos da religião não há a menor dúvida de que Plotino se tornou a grande influência da mística ocidental e uma das principais fontes literárias de toda a mística teórica.

É inegável, portanto, a relação de extrema proximidade entre o platonismo e a cristandade, o que irá influenciar todo o desenvolvimento posterior das igrejas cristãs. A pesquisa histórica permite a McGinn (2012) afirmar que, embora o cristianismo tenha começado entre os judeus, o seu meio era fortemente colorido pelo helenismo:

61 Afirma McGinn (2012, p. 69-70) que “a importância de Fílon reside na fusão que ele levou a cabo

entre essa forma de devoção contemplativa grega – com sua ênfase crescente na transcendência do Primeiro Princípio divino - e sua fé judaica baseada na Bíblia e nas práticas e leis de seu povo. Essa reconciliação foi alcançada não apenas ao se buscar um significado mais profundo e mais universal nas Escrituras, mas também ao se transformar a contemplação platônica em um modo mais personalista”.

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Ver referência ao estudo de Philip Merlan em BEZERRA, C.C., Compreender Plotino e Proclo, 2006.

Quase desde suas origens, a nova religião expressou-se na língua grega e, conforme ela se espalhou para uma audiência mais ampla, falou cada vez mais no grego da intelligentsia. Esse processo fica especialmente evidente na história dos elementos místicos do pensamento patrístico grego. (MCGINN, 2012, p. 269).

Cristo foi recebido como o Logos encarnado, resultado da síntese da teoria da racionalidade divina inteligível do mundo com a doutrina da Palavra do Deus criador. Foi estabelecida, de imediato, uma identificação da descoberta do Cristo com a busca da verdade e do ser, numa linguagem metafísica adequada à compreensão da doutrina judaico-cristã. Os elementos platônicos, de caráter claramente espirituais, encontraram um novo significado no contexto do cristianismo, como a própria concepção de uma realidade transcendente de perfeição eterna, que aponta, necessariamente, para a primazia do mundo espiritual sobre o material.

A missão específica de converter contribuiu para que os Pais Gregos utilizassem o conhecimento e categorias teóricas oriundas da filosofia grega. É evidente que toda informação recebida era submetida à luz de Cristo. O cristianismo foi desenvolvendo uma teologia sistematizada, com raízes judaico-cristãs e estrutura metafísica platônica.

Para assimilar o significado da Patrística na história, é preciso uma compreensão do diferencial que o neoplatonismo representou na continuidade da filosofia grega, em sua relação com o cristianismo e sua forte e direta influência na conversão de Agostinho. Alguns estudos sugerem que o neoplatonismo63 estaria mais ligado aos ensinamentos orais de Platão, na Academia, do que ao que se pode obter, analisando sua produção escrita, contida nos Diálogos e na República. Por ser o neoplatonismo totalmente centrado em questões focadas no transcendente, é possível concluir que sua origem deva estar em outras fontes em Platão, pois não houve nenhum interesse dos filósofos neoplatônicos pelos tópicos de política, que representam grande parte da obra escrita daquele filósofo. Há uma teoria sugerindo que a origem dos interesses neoplatônicos reside no que pode ser chamado de “a metafísica não escrita de Platão”.64

Com base nisso, é possível inferir a existência de um Platão místico, centrado em questões metafísicas, e que, de algum modo,

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Bezerra (2006) cita os estudos de José Ramón Arana Marcos, Platón, Doctrinas no escritas.

Antologia. (Bilbao: Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitate, 1998) e Marie-Dominique

Richard, L’ Enseignement oral de Platon, une nouvelle interprétation du platonisme. (Paris: CERF, 1986).

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manteve vivo um provável conhecimento não escrito, recebido das escolas de mistério, particularmente do orfismo.65

A mística de Plotino, seguramente o principal representante do neoplatonismo, apresenta algumas características66 que facilmente podem ser identificadas nos ensinamentos cristãos e, dessa forma, compreendida sua mútua interação. A mística plotiniana não é facilmente experienciada por todos. Exige exercícios preparatórios e é difícil de ser mantida; assemelha-se a um sentimento de presença, que se faz por uma espécie de contato, uma visão, um retorno à unidade originária: o sujeito e o objeto. Provoca uma transfiguração: visão e luz se identificam e formam uma unidade. Essa união é inteiramente amorosa e a experiência se caracteriza como um não saber. Desaparecem os limites do eu. Torna-se pura unidade. Sente-se uma profunda nostalgia: o desejo de retorno ao Uno. É uma experiência indizível. Para Plotino, suas experiências extáticas representavam a luta de sua alma para ascender ao Uno.

De acordo com Bezerra (2006, p. 70), a imagem que Plotino e também Dionísio utilizam para representar o Uno é a de uma fonte que não tem princípio nem fim, dado que se “entregou por inteira a todos os rios, permanecendo em completa quietude”. O Uno é a causa de toda a vida, fonte de todo o ser, afirma Bezerra (2006), mas que não se confunde com nada, exceto consigo mesmo.

Esses traços, ainda que descritos de forma diferenciada, são encontrados na maior parte dos relatos dos místicos da cristandade, mesmo entre aqueles que, cronologicamente, se encontram bastante distantes dos Pais e de Plotino. A linguagem, que se apresenta como um instrumento de conhecimento e análise da mística, oferece descrições muito semelhantes àqueles primeiros testemunhos e suas imbricações com o neoplatonismo. É possível verificar tais semelhanças em Bernardo de Claraval, Mestre Eckhart, Santa Teresa d’Ávila, São João da Cruz, dentre outros.

Embora tenha havido sempre um incentivo à leitura dos textos e ao estudo das escrituras, a ênfase dada à experiência de Deus é determinante na história da cristandade. É evidente que não se pode conhecer Deus pelas ideias e pela

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Importante lembrar que a crença fundamental do orfismo afirma que a vida terrena é apenas uma preparação para uma vida mais elevada, que se conquista por meio de cerimônias e ritos purificadores.

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Ibidem Bezerra p. 94. Ver a descrição dos 10 pontos que P. Hadot resumiu como característicos da

inteligência. Tal assertiva, da incapacidade de a inteligência vir a conhecer Deus, será amplamente defendida por James (2004) nas primeiras décadas do século XX, em suas pesquisas de psicologia. O autor afirmava que a consciência possui outras dimensões e formas de manifestação que ultrapassam a inteligibilidade.

O grande diferencial entre neoplatônicos e cristãos reside exatamente na abordagem dos Pais Gregos sobre o Amor místico: aquele amor introduzido por Jesus na comunidade e que trazia como essencial a compaixão, o amor direcionado não só a si mesmo, mas ao outro, o que implicava ação – algo que estará bastante presente e será vivenciado, ensinado e demonstrado por São Francisco. Para a cristandade, o Amor é o centro de todo o pensamento. O neoplatonismo deposita seu objetivo primeiro na contemplação, experiência luminosa e plena de amor, mas nela se recolhe como fim último.

Bergson (1978) vai afirmar que Plotino67 foi subjugado pela própria inteligibilidade helênica e não ousou transformar a contemplação em ação, tendo estabelecido o êxtase como etapa final da experiência do Absoluto. Assim afirma Bergson:

No que se refere a Plotino, a resposta não comporta dúvida. Foi-lhe dado ver a Terra Prometida, mas não o tocar-lhe o solo. Ele foi até o êxtase, estado de alma em que se sente ou se crê sentir-se na presença de Deus, estando-se iluminado por sua luz; ele não ultrapassou este último estágio para atingir o ponto em que a vontade humana se confunde com a vontade divina, prejudicada que fica a contemplação ao transformar-se em ação. Ele se acreditava no ápice: ir mais além significaria para ele descer. Foi o que quis dizer numa língua admirável, mas que não é a do misticismo pleno: “a ação”, diz ele, “é um enfraquecimento da contemplação”. (BERGSON, 1978, p. 182-183).

Desse modo, Bergson afirma que o misticismo não foi atingido pelo pensamento helênico, embora tivesse querido sê-lo, pois, para o filósofo francês, o verdadeiro misticismo se estende na ação, que se constitui em um prolongamento do amor divino, discussão que será abordada no próximo capítulo.

Muitos fizeram da contemplação do Belo, atitude certamente platônica, sua via mística. Santo Agostinho (1973, X, 27), indubitavelmente, expressa-se por essa via: “Tarde vos amei, Ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei. Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos!” E, afirma McGinn (2012, p.

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Nesse sentido, Bezerra (2006) afirma que a alma do homem, para Plotino, é divina e possuidora de uma natureza que a converte no espaço do encontro com o inteligível; essa alma tem a capacidade de esquecer a si mesma e entregar-se a um desejo de contemplação eterna de pura racionalidade.

333), foi ainda um teólogo doutrinal e especulativo, um teórico educacional, um líder eclesiástico, fundador monástico, pregador e polemista, “mas foi também um autor que deu atenção considerável ao elemento místico no cristianismo [...]”. Para esse autor, é impossível separar, em Agostinho, descrições da visão contemplativa da teoria do conhecimento, pois o amor e o conhecimento estão entrelaçados em sua consciência mística. Diz Santo Agostinho (1973, VII, 10): “Quem conhece a verdade conhece a Luz Imutável, e quem a conhece, conhece a Eternidade. O Amor conhece-a! Ó verdade eterna, Amor verdadeiro, Eternidade Adorável! Vós sois o meu Deus”.

Agostinho, assim como Plotino, ensinava que (MCGINN, 2012, p. 349) “ir para dentro é ir para cima”, e que o movimento ‘enstático’, rumo ao fundo da alma, levaria a uma descoberta do Deus interior, que é infinitamente mais do que a alma e, portanto, a um movimento ‘extático’, além do eu. No entanto, embora toda a sua sistematização fosse plotiniana, ele a usou com significados inteiramente cristãos. Para Agostinho, as ideias intelectuais só podem surgir na mente se estiverem iluminadas por Deus, assim como a revelação cristã também se constitui em fonte de conhecimento. Portanto, a experiência direta do Deus amor se constitui em fonte de conhecimento real e verdadeira, mais importante e definitiva do que as manifestações intelectuais das Ideias platônicas.

Conforme Medeiros (2010), o ontologismo agostiniano assegura que o ser humano possui uma intuição direta de Deus, ou seja, o conhecimento deriva da iluminação divina no intelecto. Essa asserção, continua Medeiros, que associa revelação cristã e tradição platônica, será retomada pelos românticos no início do século XIX, em oposição ao psicologismo cartesiano da sociedade moderna. É preciso, portanto, reconhecer a profunda e duradoura influência de Agostinho no desenvolvimento da cristandade ocidental.

A mística especulativa em muitos momentos se confunde com a filosofia grega e se intelectualiza, o que favorece críticas severas por parte dos estudiosos que defendem o essencialismo e a universalidade da experiência do Absoluto como uma propensão inata do espírito humano, sem interferência da razão. Uma experiência, diz o universalista, que independe da razão e não necessita de intervenção do intelecto para acontecer, constituindo-se, assim, em essência comum, que ocorre de forma semelhante nas diversas culturas humanas.

A mística assim elaborada pode ser reconhecida nas expressões da mística profana, as formas não religiosas da experiência do Mistério, como serão apresentadas mais adiante, neste capítulo.

O ponto máximo da mística especulativa cristã ocidental acontece no final da Idade Média. De acordo com Vaz (2009), seu declínio ocorre no início da modernidade, com o crescente movimento de secularização do pensamento, sendo substituída pela filosofia especulativa. É o momento em que a teologia deixa definitivamente de ser o centro das discussões, elaborações e construções teóricas do pensamento ocidental.

É preciso observar que a mística especulativa buscava, por meio da filosofia grega, ocupar não somente um espaço de conhecimento, mas ser um eficiente instrumento de auxílio na conversão ao cristianismo.

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