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O HOMEM E O FILÓSOFO: AMOR E RAZÃO URDIDOS

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

3.1 O HOMEM E O FILÓSOFO: AMOR E RAZÃO URDIDOS

Henri-Louis Bergson nasceu em Paris no dia 18 de outubro de 1859, primeiro filho homem de Michaël Bergson e Käte Levinson.83 O pai era judeu polonês e a mãe, também judia e de ascendência irlandesa. Além de Bergson, o casal teve seis outros filhos.

Seu pai era compositor e pianista, o que torna compreensível as constantes analogias que Bergson faz com a música no desenvolvimento de sua filosofia, bem como a frequente alusão às artes, além de uma relação de profunda afinidade que sempre manteve com a experiência estética. É uma unanimidade que os textos bergsonianos expressam uma beleza literária indiscutível.84

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Os dados referentes à vida pessoal de Bergson são de autoria de Philippe Soulez e Frédéric Worms, em Bergson – Biographie. Paris: Quadrige-PUF, 2002.

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É preciso lembrar que o Prêmio Nobel recebido por Bergson em 1928 foi na área de literatura e sua candidatura foi defendida pela Académie des Sciences Morales et Politiques de Paris in corpore e por dezesseis membros da Académie Française, entre romancistas, poetas e historiadores, que assim se expressaram: “Mais do que um chefe de escola, é um indicador que abriu novos caminhos e fundamentou a metafísica na experiência interior. É também o restaurador do espiritualismo. [...] Não é apenas um dos maiores filósofos que honram a humanidade, mas, além disso, um grande escritor e, como Platão, admirável poeta. [...] O pensamento mundial foi, em parte, transformado pelas suas investigações.” (STRÖMBERG, K. in BERGSON, 1964, p.11).

A música - religiosa e clássica do lado do pai, e a religião, do lado da mãe, estão na base de suas reflexões. Na verdade, não se deve concluir de modo apressado que o interesse pela mística tenha surgido exclusivamente pelas origens hassídicas da família paterna. É necessário procurar do lado da mãe, igualmente, sobretudo porque existia um desconforto na relação do filósofo com o pai, o que os conservava distantes. Seu pai permanecia constantemente envolvido com problemas financeiros e de sobrevivência. Diz Bergson (SOULEZ; WORMS, 2002, p. 21) a respeito dele: “Meu pai foi um compositor e pianista dos mais distintos. Seu único erro foi ter desdenhado a notoriedade”. De acordo com os autores, são frases que não demonstram muita objetividade; revelam mais uma avaliação afetiva do filho do que as possibilidades reais de Michaël atingir a notoriedade.

No que se refere à mãe, afirma o filósofo:

Minha mãe foi uma mulher de uma inteligência superior, uma alma religiosa no sentido mais elevado do termo e cuja bondade, devoção e serenidade, eu poderia quase dizer, santidade, fizeram a admiração de todos que a conheceram. (SOULEZ; WORMS, 2002, p. 26).

Bergson foi deixado na França ainda menino, para estudar, quando seus pais se mudaram para Londres em 1869. Isso deve explicar seu comportamento ensimesmado, recluso e profundamente reflexivo. Pôde permanecer no país graças às bolsas de estudo, uma, concedida pela comunidade judaica, e outra, mais tarde, pelo governo francês.

Mantinha uma correspondência semanal85 com a mãe, que, de acordo com Soulez (SOULEZ; WORMS, 2002), deveria ter sido um material de pesquisa mais valorizado por seus comentadores, pois nessa troca de cartas já se esboça a imagem de um Deus amoroso, o que pode revelar certa aproximação com o cristianismo. Bergson86 escreve à sua mãe, em um cartão de Ano Novo: “Pedirei todos os dias ao bom Deus para que ele vos conserve muito tempo [...]” (SOULEZ;

85 “Escrevia-lhe aos domingos e ela lhe respondia todas as quartas-feiras, mantendo-o sempre

atualizado com relação à literatura inglesa”. (SOULEZ; WORMS, 2002, p. 26). É conhecida a faceta de um Bergson cortês, discreto, distinto, quase distante (sem o ser, no entanto) e, às vezes, irônico, bem como solitário e polido. Outro traço que o acompanhou até o final de sua vida, informa Soulez (SOULEZ; WORMS, 2002), foi seu lado suave, extremamente feminino, que parece ter se originado exatamente no apego do filósofo à sua mãe inglesa: uma verdadeira identificação. O fato pode explicar a intensa sensibilidade, demonstrada pelo filósofo em suas pesquisas e linguagem literária, reconhecida por seus alunos e pares, atraindo inclusive um número bastante significativo de mulheres às suas conferências; elas o consideravam extremamente encantador.

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WORMS, 2002, p. 25). “O ‘bom Deus’, eis um Deus judeu, singularmente cristianizado”, afirma Soulez, lembrando que o jovem Henri foi, sem dúvida, educado por sua mãe no respeito das observâncias do judaísmo, mas sem rigidez.

Embora o pai tenha falecido mais cedo, sua mãe viveu até os 105 anos, e a família permaneceu sempre em Londres, para onde Bergson viajava todos os verões. O filósofo casou-se na França e teve uma única filha, Jeanne, que nasceu surda e a quem Bergson proporcionou uma educação esmerada. Jeanne conseguiu fazer-se ouvir e se tornou uma desenhista talentosa.87

Apesar da hipótese corrente de que a surdez de sua filha tenha contribuído e estimulado os estudos sobre as relações da alma com o corpo, objeto do livro

Matéria e Memória, Soulez (SOULEZ; WORMS, 2002) informa que a condição da

filha de Bergson não influenciou as argumentações e conclusões do filósofo, posto que as pesquisas que originaram o livro demandaram mais de três anos de trabalho, anteriores, portanto, ao nascimento da menina. Mas o autor (SOULEZ; WORMS, 2002, p. 92) admite que, “no nível do inconsciente e do destino, esta ligação merece ser efetuada. Matéria e Memória é uma mensagem de esperança: o espírito à força de paciência, de inteligência e de vontade pode superar a deficiência do mecanismo cerebral”.

Conquanto toda a formação escolar e profissional de Bergson tenha ocorrido na França, seu domínio do inglês e as conferências em Oxford o tornaram amplamente conhecido e respeitado também fora de seu país.88

Como jovem estudante, destaca-se em grego e latim, mas a matemática lhe proporciona seu primeiro prêmio. Estuda na École Normale Supérieure, na seção Letras. É aprovado no concurso para professor de Filosofia. Defende sua tese de doutorado em 1889. Leciona em alguns colégios e, em 1900, é eleito para a cadeira de História da Filosofia Antiga, no Collège de France, onde permanece até sua aposentadoria, ministrando cursos que se tornaram extremamente concorridos.

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É importante salientar que Jeanne Bergson era muito próxima ao pai (o casal e a filha eram inseparáveis), tendo também se correspondido regularmente com a avó paterna, a quem atribuía seu aprendizado da alegria de viver, da concentração e renovação. Afirma Jean Guitton sobre a filha do filósofo, no estudo introdutório da publicação comemorativa do Nobel para Evolução Criadora de Bergson (BERGSON, 1964, p. 37): “ela acompanhou ou talvez tenha precedido o pai nesse caminho para o catolicismo em que ele via a conclusão do judaísmo. Depois da morte dele pediu para ser batizada com tanta convicção como discrição”.

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É interessante observar que a primeira indicação de Bergson à Comissão Nobel da Academia Sueca foi apresentada, em 1912, por um inglês, o professor A. Laing, membro da Royal Society of

O Congresso de Filosofia de Oxford, em 1920, considera Bergson o maior filósofo do momento - foi convidado para fazer tanto a abertura quanto a conclusão do encontro.

Suas obras demonstram que o interesse pelo modo de o ser humano conhecer não se restringe às questões epistemológicas ou à mera construção de uma teoria do conhecimento. O filósofo amplia a dimensão metafísica de forma a acrescer os aspectos ontológicos, visando encontrar o sentido mesmo da vida. Sua interpretação reside num movimento de consciência de característica psicológica. O espírito humano aparece em suas argumentações como foco permanente. A filosofia de Bergson é uma verdadeira teoria da vida.

Worms (SOULEZ; WORMS, 2002), um de seus biógrafos e respeitado comentador contemporâneo, mostra que são quatro as principais obras do filósofo, embora existam ainda artigos, conferências, cursos e pesquisas também publicados:

Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, de 1889, Matéria e Memória, de

1896, Evolução Criadora, de 1917 – agraciada, em 1928, com o prêmio Nobel de Literatura, e As Duas Fontes da Moral e da Religião, de 1932.

No Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (2011), sua tese de doutorado, Bergson pondera sobre a questão do espaço e tempo e insiste nas discussões acerca da intensidade dos estados de consciência. Nesse trabalho, ele apresenta suas reflexões a respeito da liberdade e a consequente crítica ao determinismo.

Matéria e Memória (2006a) expõe as relações entre a memória e o cérebro. É

extremo o rigor de Bergson nesse estudo, fundamentado nas muitas pesquisas de doenças da memória, investigadas pela psiquiatria do século XIX.89 Embasado em estudos sobre danos cerebrais, ele estabelece a distinção entre memória e cérebro, demonstrando a impossibilidade de localizar a memória no cérebro, sendo este último apenas um centro de ação. O cérebro, para Bergson, só tem a função de receber e transmitir movimentos, jamais poderia originar uma representação.

Em A Evolução Criadora (1964), Bergson discute a existência da matéria e sua relação com a inteligência. Fundamenta-se em dados de pesquisas biológicas da época. Apresenta uma confrontação com as teorias da evolução, especificamente com o evolucionismo de Spencer, de quem havia sido, anteriormente, um seguidor.

89 Afirma Vieillard-Baron (2007, p. 22) que “a importância atual das neurociências e das

Reflete sobre a função ativa da vida animal, por ele denominada de instinto – algo que não é adquirido, mas fornecido pela natureza. Aponta o impulso vital como o princípio ativo da criação. Estende a discussão sobre a intuição e a duração da consciência humana.

Em as Duas Fontes da Moral e da Religião (1978), Bergson vai aprofundar as questões relacionadas à metafísica que não foram finalizadas em a Evolução

Criadora. Apresenta as características da moral e religião estática e dinâmica. E,

nesta última, reconhece, nos místicos, o alargamento da base intuitiva que os conduz, pela ação efetiva, à superação da inteligência e ao reencontro com a criação. Sua análise, bastante contemporânea, oferece uma reflexão sobre o progresso e seus perigos, representados pela mecânica, apontando para a urgência de a humanidade, se quiser sobreviver, escolher o caminho místico, que é, sem dúvida, para ele, o caminho do amor.

Bergson, assim como Descartes, foi considerado um dos mais significativos filósofos da França. Sua teoria representa um marco divisor na história do pensamento ocidental, pela incansável crítica ao determinismo e mecanicismo e por sua originalidade no resgate da metafísica90 e elaboração de conceitos profundamente ousados e instigantes. Tornou-se um dos grandes nomes da filosofia do século XX, alcançando fama internacional, tendo permanecido no auge das discussões filosóficas até 1930. Caiu no esquecimento por cerca de sessenta anos. Começou a ser revitalizado a partir dos anos 1990.

É possível encontrar traços significativos da reflexão bergsoniana, sejam favoráveis ou contrários, em filósofos que se tornaram pensadores fundamentais do século XX, como Bachelard, Sartre, Merleau-Ponty, Deleuze, Foucault ou Derrida. Incluem-se aí também alguns dos principais teólogos neotomistas, como Maritain e Gilson. (CHAUÍ, in PRADO JUNIOR, 1989).

Bergson se inspirava constantemente na biologia, nas teorias da evolução e nas pesquisas neuropsiquiátricas. Teve acesso aos estudos de etnólogos, como Hubert e Mauss; dominava as teorias da evolução, estudou as religiões orientais, dialogou com Durkheim; Lévy-Bruhl foi seu aluno; conhecia as pesquisas de William James em psicologia, com quem manteve contínua correspondência. Isso forneceu

90 “[...] esse novo filósofo, no momento oportuno, acabou conseguindo denunciar, com seus tantos

erros, o cientificismo, o materialismo e o determinismo que os próprios teólogos consideravam seus mais perigosos inimigos [...] ele tirou suas próprias conclusões da ciência do século XX [...]”, afirma Gilson a respeito de Bergson. (GILSON, 2009, p. 125).

às suas investigações filosóficas uma interessante reflexão interdisciplinar, o que as torna extremamente ricas e contemporâneas, possibilitando um diálogo profícuo com as Ciências da Religião. O principal objetivo de Bergson era compreender a vida.

Defende a liberdade do espírito humano em relação ao paradigma científico e suas equivocadas tentativas de abordar questões relacionadas à espiritualidade humana, tendo por critério a simples transposição, para a área da metafísica, de leis físicas e biológicas, derivadas das ciências naturais e fortalecidas pelo positivismo.

Os filósofos, em geral, não atribuem à obra As Duas Fontes da Moral e da

Religião a importância devida. Suas conclusões ainda causam certo desconforto na

comunidade acadêmica e revelam a dificuldade de cientistas e filósofos em discutir questões relacionadas ao mysterium, conforme relatado pelos místicos em geral, pois isso significa, necessariamente, acreditam eles, flexibilizar, ampliar ou até abandonar um paradigma que privilegie a racionalidade e a inteligência.

3.2 O FILÓSOFO DA PALAVRA ENCANTADORA E DOS CONCEITOS

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