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Mística Judaica

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.3 MÍSTICA PROFÉTICA: PALAVRA E FÉ

2.3.1 Mística Judaica

A análise da mística judaica é principalmente expressa por Gershon Scholem (2008), que a considera um fenômeno que deve ser estudado historicamente. Para o autor, não existe mística fora das religiões. A mística, na verdade, se apresenta para ele como um fato complexo, que ocorre no interior de específicos fenômenos religiosos. Seu pensamento admite que, se a mística for definida como uma união direta e imediata com Deus, certamente ela não existe no judaísmo. Todavia, se for considerada como uma consciência experiencial de realidades divinas, que se apresenta com inúmeras facetas pessoais, ocorrendo nas instituições e em momentos religiosos particulares, então, segundo o autor, poder-se-ia admitir a existência da mística dentro do judaísmo. O fato de Scholem considerar a mística não somente uma experiência, mas um fato que se caracteriza por sua complexidade, no interior das religiões, a ser investigado historicamente, permitiu que suas categorias fossem acolhidas por grande parte dos estudos contemporâneos. Scholem não acredita ser possível definir de forma abstrata a essência da mística, desvinculada dos modelos históricos específicos de onde ela ocorre.

Esse autor descreve a evolução da religião em três estágios: o início fundante, um estado mítico, quando humanos e deuses viviam em harmonia e sem separação; o da religião institucionalizada, quando o ser humano se conscientiza da distância entre a humanidade e o divino. Aqui se estabelece a revelação, e o contato do homem com a divindade se dá por meio da oração. De acordo com Scholem (2008), esse segundo estágio também não oferece condições de surgimento da mística. No terceiro estágio, no entanto, consciente do distanciamento entre Deus e o homem, provocado pela institucionalização da religião, o sujeito busca, por meio da mística, recuperar a inocência vivida no período mítico. Buscará, de forma reflexiva, interiorizar-se. Um estágio que McGinn (2012) chama de ‘romântico’, quando o ser humano acredita poder recuperar a unidade original.

A importância de citar a categorização de Scholem se deve ao fato de ser o autor considerado o criador de um corpo teórico acadêmico que realmente abarca todo o desenvolvimento da mística judaica. Segundo Velasco (2009), a mística, para Scholem, é uma fase de reflexão constituída por uma reinterpretação dos elementos fundamentais da religião institucionalizada, quando as afirmações dogmáticas se convertem em experiência inédita. Com base nessa experiência, surge, então, uma reinterpretação do conjunto da religião institucional: Deus, a revelação e o caminho que conduz a Ele. Afirma, ainda, Velasco:

Estas considerações permitiram avançar até os traços peculiares da mística judia. Nela, o principal do judaísmo: a unidade de Deus e o significado de sua revelação na Torá será reinterpretada numa meditação que conduzirá à concepção de uma esfera, de um reino da divindade, subjacente ao mundo de nossos dados sensíveis e presente e ativa em tudo o que existe. A mística judia constitui, num primeiro plano, um fato histórico perfeitamente identificado. A Cabala, nome comum para o conjunto do movimento, designa um fato que tem durado desde os tempos talmúdicos até nossos dias (VELASCO, 2009, p. 187).

De acordo com Scholem (2008), diante do elitismo da filosofia, a mística judaica se expandiu facilmente para o povo, principalmente por sua relação com a herança espiritual do judaísmo rabínico – a Cabala, muito mais próxima das forças do judaísmo histórico do que a filosofia racionalista. Embora não haja aqui espaço para discutir todas as correntes místicas do judaísmo, é importante citar o

hassidismo, por seu grande alcance popular mesmo nos dias atuais.

A corrente surgiu, em um primeiro momento, na Alemanha medieval, como um importante movimento sociorreligioso, que perdurou por um curto espaço de tempo (1150-1250), nos diz Velasco (2009). Resulta das perseguições aos judeus no período das cruzadas, e durante séculos vai exercer uma influência relevante sobre as massas populares. Scholem (2008) se refere ao livro Sepher Hassidim, O

Livro dos Devotos ou dos Piedosos, como uma das mais notáveis produções da

literatura judia. O líder do movimento é o rabino Jehuda, o piedoso, considerado uma espécie de São Francisco de Assis do judaísmo. Embora seja mencionada a semelhança desse movimento com algumas experiências da mística cristã, sugerindo uma possível influência de São Francisco,68 Velasco (2009) acredita que isso se explique porque a mística estava na atmosfera daqueles tempos.

68

Seltzer, conforme citado por Bogomoletz (in TEIXEIRA, F., No Limiar do Mistério, 2004, p. 244) afirma que Francisco de Assis foi contemporâneo de Judá, o Hassíd, e que provavelmente os

O hassidismo medieval vai apresentar um novo ideal: o devoto piedoso, que se caracteriza pela renúncia ascética do mundo, a serenidade de espírito e um altruísmo extremado. A oração exerce um papel fundamental para os hassídicos. O significado da palavra é objeto de meditação. Um temor a Deus que se manifesta no amor e devoção por Ele. São comuns as descrições desse amor em termos eróticos. E o ideal do piedoso tem muita semelhança com a vida dos monges cristãos, que se retiram do mundo e que demonstram serenidade, indiferença e abandono total (VELASCO, 2009).

Essa nova mística apresenta uma compreensão diferenciada de Deus e de seus atributos. “É uma mística da imanência divina que evidencia a presença de Deus – discreta até o silêncio em muitos casos – sua espiritualidade, sua infinitude”, afirma Velasco (2009, p. 198). Algumas vezes demonstra tendências panteístas, mas representa, primordialmente, um moralismo ético de forte repercussão social.

O hassidismo polaco-ucraniano do século XVIII apresenta algumas semelhanças com o medieval, e se constitui na última das grandes correntes da mística judia, cuja presença se tornou marcante no mundo moderno. É considerado um movimento de reavivamento que propaga os conhecimentos da Cabala às camadas populares e expõe uma característica totalmente comunitária. Seus mestres demonstram um entusiasmo primitivo dos antigos místicos, diz Velasco (2009), e oram de forma extática. O ideal do místico hassídico é viver entre os homens comuns e ao mesmo tempo ficar a sós com Deus.

De acordo com Scholem (2008), o hassidismo obteve, do povo, sua força; não é fruto da doutrina cabalística, mas, essencialmente, de uma experiência pessoal intensa. Daí a importância do chefe popular, figura central da comunidade e mestre religioso, considerado piedoso e justo. Para esse autor, trata-se de uma ideologia mística de ascendência cabalística, porém, vulgarizada. No hassidismo, a personalidade do místico ocupa o lugar da doutrina. O Mestre representa o afastamento da forma intelectualizada rabínica, que criou um afastamento entre Deus e os homens.

Há grandes discordâncias, no que se refere à interpretação de Scholem, no sentido de não existir uma mística genuinamente judia. Velasco (2009, p. 208) pietistas judeus tomaram emprestado elementos de folhetos de penitência do misticismo cristão popular, bem como do folclore germânico de vida além-túmulo. “Os Hassidêi Ashkenaz fizeram sua própria contracruzada psicológica, procurando defender a verdade de sua religião em oposição a seus perseguidores e afastar os judeus de um contato maior com a cristandade”.

afirma que somente uma concepção muito estreita do que seja a mística pode negar a condição de mística “à experiência dos Patriarcas, de Moisés, dos Profetas, de Jó; à que originou muitos dos Salmos e talvez à que produziu o Cântico dos Cânticos”.

A abordagem de Scholem, condicionando a experiência mística a períodos históricos específicos, nega a existência de processos ontológicos individuais. Seu ponto de vista não admite a mística como experiência fundante. No entanto, é claramente possível inferir que, sem o homem Jesus, não haveria cristianismo. Do mesmo modo, sem o príncipe Gautama, não existiria budismo. Por outro lado, Bergson (1978) não só afirma estar na mística a origem das religiões, como apresenta a possibilidade de existir uma experiência pessoal verossímil, pela qual o homem entra em comunicação com um princípio transcendente. E, para esse filósofo, místicos são pessoas de sólido intelecto, extrema simplicidade, discernimento profético entre o possível e o impossível e um sentido comum superior.

Dentre as diferentes correntes da mística judaica descritas por Scholem, a

hassídica influenciou diretamente Martin Buber, cuja teoria é necessária para o

estudo e a compreensão da mística em seu aspecto dialógico relacional e ético. Buber (1977) desenvolveu uma filosofia existencialista da religião. A base de sua reflexão se encontra na alteridade, no diálogo entre o Eu (ser humano) e o Tu (o outro), o Isso (todas as coisas) e Deus, sendo, este, o Tu Eterno, O Totalmente Outro. São as palavras-princípio. O Tu é a presença. O Isso, um objeto. Os objetos existem para serem usados. O Eu não existe sozinho, constrói- se na relação. O homem é um ser de relação. O Tu é anterior ao Eu. O Eu se torna consciente de si no diálogo. O Eu passa a existir no encontro com o Tu. Trata-se de uma concepção fenomenológica da vida. O Eu experimenta o Isso, mas é com o Tu que ele se relaciona. É no diálogo com o Tu que o Eu vai encontrar a unidade. A relação com o Tu Eterno ocorre como de pessoa a pessoa. A relação com o Totalmente Outro é intersubjetiva. O Tu Eterno não pode ser intelectualizado, conceituado, nem encontrado no mundo ou fora dele. Nada pode ser compreendido fora de Deus, mas tudo deve ser apreendido Nele, nesta relação. Para Buber (1993), o que se diz de Deus são apenas metáforas. Afirma que, da ruptura com Deus, originam-se os problemas da humanidade: na ruptura do diálogo e na transformação do Tu e do Totalmente Outro no Isso. Para o autor, a relação dialógica exige responsabilidade. Todo relacionamento deve ser responsável. Aí se encontra sua ética.

Buber (1993) considera ética e religião indissociáveis. Sua doutrina é profundamente humanista. A realidade humana é o caminho para Deus. Cada Tu individualizado, diz ele, é uma perspectiva para Ele, o Tu Eterno. O objetivo final de toda relação se encontra no Tu Eterno e está presente em qualquer sujeito que busque a transcendência. A manifestação do Tu Eterno só ocorre na relação ética, seja com o Tu, seja com o Isso. Não é possível compreender nada fora de Deus, afirma Buber (1977), mas é preciso apreender tudo Nele, o que significa na relação Eu e Tu. Buber acreditava que, nessa perspectiva relacional ética dialógica e responsável, haveria possibilidade de salvação para a humanidade.

Tradicionalmente o judaísmo criou um hiato muito grande entre Deus e os homens. Um Deus amedrontador faz parte da tradição hebraica, e o seu distanciamento é alimentado pela discussão, muito controversa, sobre a inexistência do verbo ser, no hebraico, porque só Deus É. O crente vive a sensação de inacessibilidade de Deus e total impossibilidade de ver o seu rosto ou saber o seu nome. Bogomoletz (in TEIXEIRA, 2004, p. 235) cita Heschel, afirmando que a pessoa bíblica “veria uma reivindicação de união com Deus como blasfêmia. A consciência profética está marcada por um sentimento estremecedor da inaproximável santidade de Deus”, postura essa antagônica aos grandes místicos cristãos, cujo Deus Amor não só permite como anseia pela união.

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