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Corpo: Guardião e Veículo do Sagrado

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CAPÍTULO II AS DIFERENTES FORMAS DE EXPRESSÃO DO MISTÉRIO

2.5 MÍSTICA PROFANA: EXPERIÊNCIA RELIGIOSA SEM RELIGIÃO

2.5.3 Corpo: Guardião e Veículo do Sagrado

A discussão sobre corporeidade é parte integrante dos estudos da mística profana. Embora o corpo seja conhecidamente essencial nas práticas orientais, a importância da corporeidade pode também ser verificada no cristianismo dos primeiros séculos. Os hesicastas79 desenvolveram processos técnicos corporais em busca de iluminação e como um meio mais rápido e eficaz de obter visões. Embora o hesicasmo tenha sido objeto de controvérsias, no século XIV, e alvo de críticas no sentido de que seus seguidores queriam chegar à salvação sem esforço e sem dor, a doutrina foi transmitida à Rússia, mas, por longo tempo, caiu no esquecimento. No fim do século XVIII, a doutrina do hesicasmo foi restaurada pelo monge Paísius Velichkoski, que reúne textos e os publica em 1794. Tais textos “vão guiar os solitários e os místicos russos do século XIX” (GAUVAIN in: Relatos de um Peregrino Russo, 1985, p. 9).

As pesquisas relacionadas às Igrejas Orientais, em particular às Ortodoxas russas, revelam que a ascese, os exercícios respiratórios dos hesicastas e a oração de Jesus não são um fim em si mesmos, mas assumem o aspecto de ‘técnica corporal’, a ser ensinada para conduzir à experiência de união com Deus. Assim relata o Peregrino Russo:

Em seguida, consegui introduzir no meu coração a oração de Jesus e fazê- la sair no ritmo da respiração, como ensinam [...] eu inspirava o ar e o conservava no peito dizendo Senhor Jesus Cristo, e o soltava, dizendo:

tende piedade de mim [...] passava assim quase o dia todo. Quando me

sentia entorpecido, cansado ou inquieto, lia imediatamente na Filocalia [...] Ao cabo de três semanas, senti uma dor no coração, depois uma sensação agradável, um sentimento de paz e consolação. Isso me deu forças para continuar [...] Meu espírito limitado às vezes se iluminava de tal forma que eu compreendia com clareza o que antigamente nem poderia conceber. Outras vezes esse doce calor se espalhava por todo meu ser e eu sentia a presença inefável do Senhor. (RELATOS DE UM PEREGRINO RUSSO, 1985, p. 56, 57).

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O hesicasmo surgiu nos primeiros séculos do cristianismo, no Monte Sinai e no deserto do Egito, e aparece na Igreja Oriental como uma corrente mística que se opõe à tradição puramente ascética originária de São Basílio (GAUVAIN, in Relatos de um Peregrino Russo, 1985).

Esse Relato, ao ensinar que a vida do homem e o que lhe dá sentido é a eterna busca da alma, um incessante caminhar em direção a Deus, resulta de ensinamentos provavelmente recebidos de monges que já haviam sido inteiramente influenciados pelo hesicasmo.

A medicina contemporânea tem demonstrado a relevância da ligação da psique com o corpo. As pesquisas relacionadas à psicossomática atestam essa ligação, já bastante conhecida dos gregos, quando afirmavam não existir doença do corpo separada da doença da alma. O neurocientista Antonio Damásio (1996, p. 18) conclui que “a alma respira através do corpo e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental, acontece na carne”. Ribeiro (1998, p. 26), por sua vez, afirma que o corpo é a condição de acesso ao mundo, tendo a psicologia já demonstrado que o próprio senso de identidade do indivíduo provém de uma sensação de contato com o corpo. “Sem essa consciência da sensação e das atitudes corporais, a pessoa torna-se dividida: um espírito desencarnado e um corpo sem alma”. Uma das características do estado esquizofrênico é exatamente a perda de contato com o corpo.

É evidente que o corpo exerce um papel atuante nas manifestações de estados ampliados de consciência. Historicamente, foi Marcel Mauss (2003), em seus estudos de técnicas corporais, quem explicitou a relação entre o corpo e as alterações na psique. O autor supera o dualismo psicofísico cartesiano e insiste com seus pares para que invistam em estudos que englobem, além do social, os aspectos biológicos e psicológicos do ser humano, sugerindo, assim, uma abordagem interdisciplinar.

As observações do xamanismo, das técnicas de meditação, da respiração holotrópica, das práticas de imposição de mãos e de muitas outras práticas que desencadeiam estados metafísicos foram antevistas por Mauss, quando afirmou:

No meu entender, no fundo de todos os nossos estados místicos há técnicas de corpo que não foram estudadas, e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas muito remotas. Esse estudo sócio-psico-biológico da mística deve ser feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em “comunicação com o Deus”. E, embora a técnica de respiração etc., seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China, creio enfim, que ela é bem mais difundida de um modo geral. Em todo caso, temos sobre esse ponto meios de compreender um grande número de fatos até aqui não compreendidos. (MAUSS, 2003, p. 422).

Os estudos de Grof (2000) sobre as técnicas do sagrado, já mencionados neste trabalho, confirmam as conclusões de Mauss. Técnicas corporais e respiratórias não se restringem à Índia e China, mas podem ser encontradas nos povos da África, Ásia e Américas. Grof (2000) cita, além de outros, os rituais de cura dos kung bushman, no deserto africano de Kalahari; a respiração do fogo dos budistas; a respiração e o rodopio dos sufis, entre os árabes; a música da garganta dos esquimós; a dança do sol dos lakota sioux americanos.

A busca por atingir estados de expansão de consciência sempre fez parte do cotidiano de vários povos. Normalmente relacionada à cura tinha por objetivo restaurar o bem-estar e eliminar desequilíbrios psicossomáticos. Havia, entre esses povos, a certeza de que harmonia e saúde plena só poderiam ser recuperadas pelo contato com o transcendente.

O próprio James (2004) menciona suas experiências com a ingestão de óxido de nitrogênio e éter, quando concluiu que a nossa consciência racional em vigília é apenas um nível de consciência e que os humanos possuem, em potencial, outros níveis de consciência completamente diferentes, que podem ser desencadeados por algum estímulo externo. Acredita o autor que podemos passar a vida inteira sem ao menos suspeitar da existência deles. Observando suas próprias experiências, James não pôde evitar a constatação do surgimento de um insight significativamente metafísico: como se todas as oposições do mundo, com as contradições e conflitos que dificultam nossa vida, se diluíssem, tornando-se uma unidade.

Também Aldous Huxley (2002), em suas experiências com mescalina, ao vivenciar um estado de fusão com a realidade exterior, reconheceu aspectos transcendentes cujo conteúdo acreditava ser semelhante àqueles descritos nas experiências místicas de todas as tradições religiosas e que se tornou o núcleo central da filosofia perene.

Com essas descrições relacionadas a estímulos corporais, queremos apenas enfatizar dois aspectos: primeiro, a estreita relação entre a psique e o corpo, algo já bastante conhecido pelos estudos referentes à ascese, desde os hindus, os gregos e inteiramente incorporada pelos primeiros cristãos; segundo, a possibilidade de a ingestão de substâncias externas desencadear estados de expansão de consciência capazes de promover um encontro com algum aspecto inefável de natureza transcendente que permita ao sujeito reconhecer como divino.

Velasco (2009) identifica alguns traços nas experiências da mística profana que podem resumir o que até aqui vem sendo descrito: há sempre uma ruptura com o estado de consciência em vigília, abrem-se novos horizontes e a realidade existente é banhada por uma nova luz; a consciência sofre uma transformação radical, com um aprofundamento de seus conteúdos e a intensificação de estados cognitivos e afetivos; surgem sentimentos de profundo gozo, de paz, de reconciliação com a totalidade do real, difíceis de serem expressos em palavras. Esses estados também podem ser acompanhados de sentimentos de espanto e de horror, mas que não chegam a eliminar a sensação de paz. Mesmo quando se trata de uma busca, a experiência acontece de forma tão surpreendente que não parece ser resultado de esforços pessoais. Finalmente, o sujeito toma consciência de ter estado em contato com algo definitivo. E, por isso, tais experiências se tornam marco na vida das pessoas, inesquecíveis e verdadeiros pontos de mutação, que dão início a uma nova etapa de vida.

É consenso que as experiências de mística profana representam um conjunto de fenômenos de difícil interpretação. Alguns teólogos as denominam fenômenos de mística natural, em oposição à experiência cristã do Deus trino, chamada de mística sobrenatural.

As questões apresentadas até este momento, relativas a experiências transcendentes que ocorrem fora dos sistemas religiosos, sejam elas espontâneas ou desencadeadas por técnicas corporais, demonstram existir, em potencial, estados de consciência de natureza metafísica não inteiramente conhecidos ou reconhecidos pela ciência, mas que parecem pertencer a uma estrutura biológica do ser humano em franca evolução, como gostaria Bergson (1978).

A discussão a seguir demonstra a vitalidade com que tais questões se apresentam no mundo contemporâneo. Há, hoje, um reconhecimento praticamente unânime da existência dessas manifestações, aceitas como experiências subjetivas que fornecem um determinado tipo de conhecimento. A grande polêmica que acontece atualmente, na área, é sobre a real natureza de tal modo de conhecimento: são experiências puras e imediatas, como defendido pelos universalistas, ou seriam, como qualquer outra experiência humana, mediadas pela cultura e linguagem dos sujeitos experimentadores, como defendem os contextualistas?

Experiências que podem ser enquadradas como mística profana ou estados não comuns de consciência, que ocorrem fora dos sistemas religiosos, demonstram

que tais estados de consciência não patológicos, diferenciados daqueles da vigília, são mais corriqueiros do que se poderia imaginar. Tanto a afirmação de James (2004), referente à potencialidade de estados metafísicos adormecida no ser humano, quanto as atuais pesquisas da psicologia transpessoal (GROF, 2000) parecem tornar a argumentação bergsoniana bastante atual.

Em meio à discussão dualista, universalismo X contextualismo, surge uma tese proposta por Formam (1997), denominada psicologia perene, que prioriza um tipo de reflexão que se aproxima do método intuitivo sugerido por Bergson, como poderá ser visto a seguir.

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