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Quando não há Escrita ou a Escrita nada Revela

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CAPÍTULO I SAGRADO, MÍSTICA E MISTÉRIO: O IM-PROVÁVEL QUE SE

1.4 O IMPROVÁVEL SE DEIXA CONHECER: A EXPERIÊNCIA

1.4.3 Quando não há Escrita ou a Escrita nada Revela

Do mesmo modo, é preciso enfatizar que as tradições orais manifestam uma mística peculiar, que não fornece nenhuma expressão linguística, nada que seja escrito pelos próprios sujeitos da experiência. Esse é, certamente, um dos pontos de

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O Seminário em questão reafirma, por meio dos trabalhos apresentados, a possibilidade de mística e místicos se constituírem em objeto de estudo.

grande dificuldade para a mística comparada. Algumas tradições indígenas, africanas e afro-brasileiras não escrevem sobre suas experiências pessoais nem relatam de que forma ocorrem seus processos internos de encontro com o divino. Portanto, o conhecimento obtido sobre essas tradições é normalmente fornecido por pesquisas de etnólogos ou antropólogos, que baseiam seus estudos em observações pessoais e/ou informações de terceiros.

Carvalho (in MOREIRA; ZICMAN, 1994), referindo-se a uma entrevista com a conhecida mãe de santo Olga de Alaqueto, confessa sua surpresa ao constatar que ela simplesmente nada revela sobre sua subjetividade. O autor informa que suas expressões são todas exteriorizantes, que ela fala dos rituais, cerimônias, calendários, genealogia, história, mas “nada nos revela do mundo interno, psicológico, do indivíduo Olga” (p. 85). E continua, o autor, afirmando que já havia enfrentado a mesma dificuldade em sua pesquisa de campo sobre os rituais de Xangô no Recife. Embora atualmente muitos pais de santo escrevam livros, os personagens continuam cobertos pelo cerimonial, diz ele.

Afirma Carvalho:

O processo, porém, de como foram desvelando internamente seu mundo psíquico e como desenvolveram a relação com seu orixá não o expressam jamais em forma discursiva. Não se trata sequer de uma expressão pobre da vida subjetiva, mas simplesmente de uma ausência de expressão (in MOREIRA; ZICMAN, 1994, p. 85).

As tradições orais, portanto, exigem um trabalho diferenciado, bastante etnológico, fundamentado não apenas nas observações do pesquisador, mas, na melhor das hipóteses, em sua convivência com as comunidades específicas e participação em rituais.

Importantes e historicamente reveladores são os estudos sobre o candomblé feitos por aqueles que em algum nível ‘vivenciaram’ de dentro para fora os ritos de iniciação específicos, embora com interesses e experiências diferenciados, como Roger Bastide, sociólogo e professor convidado da Universidade de São Paulo (USP), e Pierre Verger,55 fotógrafo e etnólogo.

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Verger foi fotógrafo, etnólogo e babalaô (sacerdote yoruba), recebeu o nome de Fatumbi (aquele que é renascido do Ifá: o jogo de adivinhação de búzios que ele estudou em Benim, na África). Estabeleceu-se na Bahia. Foi professor da UFBA e responsável pelo museu afro-brasileiro. Existe hoje a Fundação Pierre Verger que, entre outras atividades, guarda seu imenso acervo de fotografias. Ver em: http://www.pierreverger.org

Bastide (1983) reconhece, enquanto pesquisador, as dificuldades de compreender cientificamente o fenômeno que se propôs a estudar. Ao mesmo tempo em que expõe as limitações da racionalidade, aponta, como única fonte possível de conhecimento, o metamorfosear-se em experiências vitais. Em suas vivências como pesquisador interessado no candomblé, esse autor enfatiza a resistência de seu pensamento cartesiano em assimilar novos conhecimentos.

Por sua vez, Verger se refere à importância da passividade e da experiência para, assim, conhecer o fenômeno místico em uma tradição oral. Ele afirma:

Minha aproximação com os problemas é diferente do que os antropólogos em geral costumam fazer. Estes sempre têm uma tese, um plano de trabalho, estão procurando alguma coisa em particular. Usam sua energia para tentar conseguir as informações de que precisam, o que faz com que as pessoas automaticamente se fechem. Eu não estava interessado em coisa alguma em especial, não vivia fazendo perguntas. Mas terminei me transformando em aluno dos babalaôs que são os “pais do segredo”. [...] [segredos] São as informações e o conhecimento da cultura iorubá, que só se transmite oralmente. Eu fui aceito como uma espécie de aluno, tinha não só o direito mas também o dever de aprender. Isso aconteceu na Nigéria e no Benin, inclusive numa pequena cidade chamada Kêto, de onde se originou a maioria dos terreiros de candomblé da Bahia. Quando encontrava coisas interessantes, eu anotava. Com os babalaôs, me iniciei no sistema de adivinhações dos iorubás, que se chama Ifá. É por isso que passei a me chamar Fatumbi, nome que significa “renascido pela graça do Ifá” (VERGER, 2013).56

Carvalho (in MOREIRA; ZICMAN, 1994, p. 86), reafirmando a complexidade do trabalho com tradições orais, explica, por analogia, a história do imperador chinês K’ang-Hsi, que reinou por mais de 60 anos. Conta que seu biógrafo, Jonathan Spence, confessa a dificuldade de encontrar o homem, o sujeito individualizado por trás de protocolos e da linguagem da corte. Admite pensar que esse conjunto de traços “simultaneamente subjetivo e objetivo, que estamos acostumados a encontrar nos textos da grande mística, não é radicalmente distinto de outras tradições religiosas, dentre elas a afro-brasileira”. E conclui que uma resposta afirmativa à questão faria com que os estudiosos se vissem forçados a ter de aceitar, pela primeira vez, “a possibilidade de experiências espirituais qualitativamente ricas com expressões linguísticas simples ou mesmo pobres.” (CARVALHO in MOREIRA; ZICMAN, 1994, p. 86).

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Entrevista ao jornal O Globo. Disponível em <http://www.pierreverger.org> acesso em 03 março 2013.

As tradições orais, portanto, alertam o pesquisador sobre o peso da herança judaico-cristã no estudo de suas expressões e os perigos de simplificação e reducionismo que podem ocorrer ao investigá-las. Do mesmo modo, são essas as tradições que demonstram de forma mais nítida a importância da corporalidade nas experiências de transcendência e expressão do Mistério. Assim como a palavra é corporal, a dança é uma oração entre os povos chamados arcaicos, informa Bastide (2006).

O papel da corporeidade ocupa um espaço de grande importância no estudo das questões relacionadas aos estados contemplativos, pois há muitos fenômenos de ordem física que ocorrem nos processos de experiências incomuns, o que será examinado com mais profundidade no capítulo referente à mística profana.

Um fenômeno religioso de tradição oral e características específicas que pode variar conforme suas regiões de origem é o xamanismo,57 bastante conhecido pelas técnicas arcaicas para obtenção do êxtase. O fenômeno atraiu a atenção dos ocidentais a partir dos anos 1970, tendo sido bastante divulgado nos livros do antropólogo Carlos Castañeda.58

O xamanismo59 tem por objetivo conduzir o indivíduo a um estado de consciência superior. Para se tornar um xamã, o ser humano deve morrer, no sentido simbólico de aniquilação do próprio ego. A iniciação no xamanismo incentiva o desapego do próprio mundo e ambiente, proporciona um absoluto isolamento: a reclusão em local fora do comum. A partir disso, o indivíduo deve retornar transformado, verdadeiramente renascido. Terrin (1998) afirma que o xamanismo implica uma concepção de saúde integral: corpo e espírito equilibrados com as forças da natureza. A base da saúde reside na dimensão espiritual. “O corpo não pode sustentar-se sem a alma” (TERRIN, 1998, p. 250).

O conhecimento de experiências que demonstram diferentes estados de consciência, sem uma linguagem escrita, auxilia a nova compreensão da união entre

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Eliade (1998a, p. 16) apresenta um estudo detalhado sobre o xamanismo nas Américas, Ásia e Oceania. Informa que o xamanismo, embora esteja popularmente identificado com a história da ‘magia’, da ‘feitiçaria’ e dos ‘medicine-man’, tem, na pessoa do xamã, o sacerdote, místico e poeta. Diz ainda que “uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase.”

58 Castañeda tornou-se uma espécie de ‘guru’ das gerações dos anos 1970, por suas experiências de

estados de expansão de consciência, vividos com os índios Iaquis no México. No primeiro livro descreve seu aprendizado com o mestre Don Juan Matus. Ver: A Erva do Diabo – Os Ensinamentos

de Don Juan, Viagem a Ixtlan, Porta para o Infinito e O segundo Círculo do Poder. 59

alma e corpo, atestada por Bergson, e suas argumentações sobre os conceitos equivocadamente estabelecidos do que é considerado ‘primitivo’, como poderá ser acompanhado no terceiro capítulo deste trabalho.

As informações apresentadas e discutidas até aqui demonstraram não só a complexidade do tema, mas também a centralidade da experiência mística na vida humana. É possível obter, deste capítulo, as informações necessárias ao conhecimento das manifestações de estados não comuns de consciência que ocorrem na vida dos indivíduos, letrados ou não, a forma como são descritos e testemunhados e os debates teóricos que suscitam. No entanto, é ainda necessário apreender o modo como essas experiências peculiares se manifestam nas diferentes culturas e doutrinas religiosas. Isso porque a reflexão bergsoniana se insere em um arcabouço filosófico fundamentado em processo evolutivo de características biológicas da humanidade como um todo, e apoiado por pesquisas da psicologia. Bergson não se deteve somente em análises sociais e culturais. Seu interesse principal era conhecer a vida. O filósofo enfatiza o aspecto prático da religião. Ele não a percebe como um simples corpo teórico a ser polemizado. Bergson (2009) se mostrava claramente desfavorável a polêmicas, afirmava que as refutações e críticas mútuas de diferentes pensadores ao longo da história não trouxeram nenhuma contribuição positiva para a vida.

É preciso conhecer e aceitar para compreender e não simplesmente concordar ou discordar. Torna-se, portanto, necessário para o encaminhamento deste trabalho conhecer as diferentes formas como o ser humano vivencia o transcendente. Para compreender as reflexões bergsonianas em torno da mística e de seu método intuitivo, é preciso não se ater a uma única forma de expressão. O interesse do filósofo é a alma humana.

Assim, o próximo capítulo expõe o modo como algumas das diferentes doutrinas e povos específicos descrevem, relatam e apreendem a experiência do Mistério, e de que maneira isso pode contradizer ou corroborar com a teoria bergsoniana da mística.

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