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4 DEFINIÇÃO E COMPREENSÃO DA HISTÓRIA EM NGOENHA E KIZERBO

4.3 O CENTRO DE INTERESSE DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA: O FUTURO

Constata-se que existem diferenças de fato entre os pontos de vista dos filósofos africanos pensadores da relação entre a tradição e a modernidade. Consideram-se essas diferenças como reveladoras de amizade e inimizade com a tradição. Trata-se de uma liberdade intelectual, daí a aplicação do princípio de opinião – o poder de opinar sobre algo. Aqui é preciso retomar por instante os diferentes interesses que podem ser atribuídos ao estudo da história e dar-se conta de que o conflito existe ou não existe de acordo com os interesses que são traçados. Estão em conflito, certamente, a tradição e a modernidade em Mbiti. Essas duas noções não estão em conflito, isto é, são perfeitamente compatíveis em Ngoenha. Nenhum conflito existe afinal, em particular, na visão do filósofo moçambicano, onde as proposições tais como: a tradição não é inimiga da modernidade; o centro de interesse da história e da filosofia africanas deve prospectar o futuro revelam ausência de conflito.

O conflito que se teme e, portanto, as preocupações que se recomendam dizem respeito a uma posição de Mbiti: “Na concepção tradicional africana, a História não se move para frente, ou seja, para um futuro de progresso ou para o ‘fim do mundo como tal’”270. Penso que, para tentar construir um futuro saudável para os africanos no período das independências africanas, a História deve ocupar-se de questões relativas ao passado e ao futuro. Com isso, Ngoenha

269 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? - Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17

Penso que para tentar construir um futuro saudável para os africanos no período das independências africanas, a História deve ocupar-se de questões relativas ao passado e ao futuro. Com isso, Ngoenha debruça-se sobre a História, olhando o passado com vistas a entender o presente para, depois, orientar o futuro melhor de seu povo. Segundo ele “A história dar-nos-á a consciência das dificuldades da vida, mas também a consciência de que a última palavra ainda não foi dita”. NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da

consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 24. Isso significa esperança. O que Ngoenha tira da

obra de Bloch, O Princípio Esperança, V. 1 (2005), neste fato utópico-empírico, é a expectativa do ainda não. 270 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 91.

debruça-se sobre a História, olhando o passado com vistas a entender o presente, para, depois, orientar o futuro melhor de seu povo. Segundo ele: “A história dar-nos-á a consciência das dificuldades da vida, mas também a consciência de que a última palavra ainda não foi dita”271. Isso significa esperança. A esperança é, por excelência, uma afeição do futuro com dois sentidos, porque, na esperança, a apreensão do futuro afeta-nos, ao mesmo tempo que se torna para nós o objeto de uma fixação dinâmica.

Assim, a esperança implica que a obtenção do bem esperado, a tomada de consciência histórica, deve ser objeto de um esforço difícil. Alimentar essa esperança com bastante força significa que essa força reside precisamente na confiança em um advento ou “futuro não totalmente previsível”272. O que Ngoenha tira da obra de Bloch, O Princípio Esperança, V. 1 (2005), nesse fato utópico-empírico, é a expectativa do ainda não.

Essa concepção de História, que completa aquela de Ki-Zerbo, expressa em Para quando África? e seu grande capítulo consagrado à introdução, tem, incontestavelmente, não apenas a dimensão histórica, mas uma dimensão puramente filosófica. Porque a leitura das páginas 17 e 18 da obra atesta também a vontade explícita de Ki-Zerbo aproximar-se de Bloch. Essa aproximação é, em grande parte, atestada nas reflexões consagradas aos afetos expectantes, principalmente, a confiança no futuro. Esse sentido de confiança pode encontrar- se na obra de Bloch, no Princípio Esperança, (2005) vol. 1, e, ao longo do desenvolvimento deste texto, Bloch não hesita de sublinhar a sua angústia e a esperança: “Acreditava-se ter sido descoberto que todo o presente está carregado de memória, carregado de passado no porão do não-mais-consciente”273. Mas qualquer futuro apoia-se no presente.

Uma das teses da relação entre o futuro e o presente consiste em afirmar que “o futuro é hoje”; e nela defende-se que o presente é investido do passado. O que chamamos de futuro (por exemplo, amanhã) será o dia do presente, o que não é verdade no caso do passado. “Pode- se acelerar uma ação, mas não sair do presente que ela supõe ou que ela é, como dizia

271 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 24.

272NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p, 18.

273 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 22. NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 30. “A memória coletiva é muito mais que o conjunto dos factos do passado, ela é sobretudo o código semântico de memorização, de retenção de factos do passado. Pode-se, portanto, dizer que o passado é a via mestra de pensar o futuro, pois este último já está no primeiro”.

Bergson”274. Neste sentido, a história apresenta-se com dupla preocupação: a conservação do passado e a pesquisa das causas dos acontecimentos que marcaram este passado.

Neste aspecto, Ngoenha escreve a sua obra, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992), em que ele tenta “perspectivar a história em função do futuro, para sabermos que tipo de esperança ela permite sonhar275, e com que forças reais podemos contar para a edificação desse futuro”276. A esse propósito, Ki-Zerbo escreve uma passagem (parágrafo) de Para quando África? onde ele tenta ilustrar a importância do estudo do futuro na História, que representa um sentimento de esperança: “De certa maneira, a parte da necessidade História escapa-nos, mas pode-se dizer que, mais cedo ou mais tarde, se imporá por si própria”277. Essa passagem revela a existência das relações indissociáveis entre os dois principais motores da história – a liberdade (a história-necessidade) e a necessidade (a história- invenção).

No que concerne ao problema de “perspectivar a história em função do futuro”, Ngoenha refere-se explicitamente em duas obras, afirmando que “a nossa missão é o futuro”278. Mas qualquer futuro apoia-se no presente, isso significa que o futuro é hoje.

Explicando a complexidade desse posicionamento de Ngoenha e de sua argumentação, podemos reforçar essa lógica e conclusão analisando, sobretudo, essa espécie da afirmação da dimensão da consciência histórica e filosófica para a superação de problemas dos insucessos dos programas de ajustamento estrutural nos últimos 50 anos, depois das independências africanas. Porque essa dimensão da consciência será um dos principais leitmotivs de seu pensamento, tal medida servirá não apenas como um instrumento no qual o povo moçambicano e a sociedade situar-se-ão na História, mas também servirá de método através do qual o povo

274COMTE-SPONVILLE. O ser-tempo: algumas reflexões sobre o tempo da consciência. Tradução Eduardo Brandão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.78.

275COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Tradução Eduardo Brandão. Revisão técnica Luís Filipe Pondé. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 16. “A vida é a tempestade dos nossos sonhos. O porto não é mais sonhar: desespero”.

276NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 33.

COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Tradução Eduardo Brandão. Revisão técnica Luís Filipe Pondé. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 16. Sim, é um Tratado de desespero que empreendo aqui; mas não como doença mortal, conforme o título que Kierkegaard lhe deu. Quero escrever um tratado do desespero, assim como saúde da alma, e que estaria para a esperança assim como a serenidade está para o medo. A esperança, virtude teologal. Mas se não há Deus ... O desespero é a minha virtude teologal pessoal, e minha saúde. A esperança é que é uma doença, uma droga. O futuro não mede nada mais que minha fraqueza presente. Quanto maior for a minha potência, menos necessito esperar. Desespero: força da alma.

277 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17.

278NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto velho: Paulinas Editora, 2014, p. 6.

moçambicano compreende o sentido da História de duas maneiras: primeira, em forma privativa de ausência da consciência histórica e, por último, em forma duma crença no “fim da História”. Ngoenha vê ainda a consciência histórica como um fator essencial e a forma que a história efetiva de jovem nação moçambicana.

Com isso, Severino Ngoenha escreveu duas obras: primeiro, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992). A consciência histórica é a compreensão que o homem de Moçambique ou o povo moçambicano tem da sua situação no curso da história. E a seguir, Ngoenha publicou a Filosofia Africana – das independências às liberdades (1993), já na sua segunda edição (2014), como possibilidades e métodos utópicos da melhor maneira de pensar o futuro e decidir livremente pelas vidas dos moçambicanos e pelo futuro dos africanos em geral.

Da leitura do Prefácio do Princípio Esperança, vol. 1 (2005), resulta claramente que Bloch toma uma posição no seu pensamento concernente à “consciência do amanhã”. Ele reconhece que “o futuro é hoje, e o presente é investido do passado”279. Com isso, Bloch mostra um acordo grande relativamente sobre a relação entre o passado, presente e futuro, mas com a vontade de distanciar-se e criticar filosoficamente: “não se descobriu que em todo o presente, mesmo no que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma antecipação do que ainda não veio a ser”280.

A partir daqui Ngoenha vai montar, no primeiro momento, a tarefa dos filósofos africanos dizendo que, apesar dos nossos resultados de insucesso de um devir melhor, “a nossa missão é o futuro”281. Em outras palavras, a tarefa atual da civilização e da geração africanas visa participar na elaboração e realização da ‘missão-futuro’, tal como a maneira filosófica desenha as suas esperanças, os seus sonhos e desejos porão da meritocracia e da consciência histórica em direção ao domínio da realidade cultural africana.

O que é característico para a leitura e a compreensão de Ngoenha na realização da missão-futuro é que ele quer, como, mais tarde, faz Ki-Zerbo, enraizar os projetos, os programas de desenvolvimento prioritariamente na realidade cultural de cada comunidade, localidade, distrito ou província. A esse respeito, Éric Weil tem a sublinhar, precisamente, numa

279NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 80.

280BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p.22.

281 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 6.

perspectiva de crítica, que “a realidade é totalmente compreensível pelo conjunto das categorias, mas ela não segue os esquemas das categorias. Há uma continuidade de atos livres, de atos de ruptura e de negação pelos quais o homem passa de uma atitude a outra, sem que jamais a passagem seja exigida pela anterior”282. Em outras palavras, Éric Weil encontra-se na impossibilidade de negar a definição de História posta em relevo por Ki-Zerbo, no quadro do desenrolar dos processos históricos, a saber aquele da duração e totalidade da História. Ele admite que: “Se considerarmos a História na sua duração e na sua totalidade, compreenderemos que há simultaneamente continuidade e ruptura”283.

Mas esse reconhecimento acompanha-se imediatamente com a crítica de Marly Carvalho Soares, “contudo, uma atitude pode ser ultrapassada, mas somente por uma escolha livre, por um ato que não se justifica no discurso da atitude anterior, no mundo que ele recusa e para o qual é incompreensível”284. A importância do ato de escolha livre, em sublinhado por Ngoenha, não foi a primeira vez que o futuro estava no centro do debate, mas foi a primeira vez que fomos chamados a escolher o “tipo de futuro” que queríamos que fosse o nosso.

Aqui, está presente, de modo especial, nos textos de Comte-Sponville, a afirmação do futuro no momento presente; quer dizer que o futuro não é mais o que pode-se escolher, mas o presente. “É só o futuro que se escolhe? Pode ser. Mas o escolhemos no presente. Aqui, a ontologia prevalece sobre a ética, ou melhor, a ética não é mais que uma ontologia em ato. Viver no presente, como diziam os estoicos, como dizem todos os sábios, não é uma palavra de ordem; é uma necessidade, (quem poderia viver o passado ou o futuro?), é uma realidade para cada um de nós (ser é ser presente) e é a própria vida. Lembrar-se? Só é possível no presente”285. Aqui, segundo a nossa opinião, essa escolha pode-se denominar o “presentismo” de Comte- Sponville. A possibilidade de uma escolha não no futuro, mas no presente é o que aproxima Ngoenha e Comte-Sponville. Somente que, para Ngoenha, a nossa missão é o futuro.

Com isso, o papel da filosofia na análise do que é essencial para a política hoje em Moçambique não é criar a experiência das eleições anteriores, mas organizar a experiência e os atos que se tornam compreensíveis depois das eleições terem sido realizadas.

282WEIL, Éric, Logique de laphilosophie. 2ª éd. revue. Paris: Vrim, 1967, p. 80. Para mais informações. 283KIZ, 2006, P. 17.

284SOARES, Marly Carvalho. O filósofo e o político segundo Éric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 56. 285 COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana. Desenhos SylvieThybert. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martinho Fontes, 2007, p. 25.