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1 INTRODUÇÃO

2.2 O PAPEL DO CUIDO DE SI EM FILOSOFIA

2.2.3 A NOÇÃO DE PATHOS NA CULTURA GREGA

Do ponto de vista filosófico, uma das várias questões colocadas é determinar quais são os fatos mais antigos da cultura grega que devem ser utilizados no estudo da noção de afeção (pathos) e conhecimento do papel da filosofia. Ultimamente, a concepção mais aceite é aquela que considera a noção de pathos não como a doença do corpo, mas a paixão da alma. Dentro deste contexto, existe um problema extremamente interessante, que é o de saber como ampliar o campo figurativo da noção de pathos ao campo metafórico que permite aplicar ao corpo e à alma expressões como tratar, curar, amputar, escarificar, purgar103. Foucault tem defendido que a concepção segundo a qual tal noção, na verdade, pertence ao princípio familiar dos epicuristas, cínicos e dos estoicos. Com isso, Foucault tenta mostrar que a noção de pathos faria parte do domínio da cultura grega, ou seja, pertenceria ao domínio da filosofia. Seu objetivo era o de examinar a concepção prática de si como sendo um elemento cultural greco-romano por excelência e, em particular, concepção de que a função da filosofia seria uma característica imprescindível de tal cultura. Foucault desenvolve as suas ideias envolvendo a noção de pathos e o papel da filosofia no seu livro póstumo, intitulado Ditos e Escritos (1994). Neste livro, a função da filosofia é de curar as doenças da alma104.

103 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 357.

104 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 357.

A característica mais importante da investigação da cultura de si105 é a descoberta de várias transformações do cuidado de si, com auxílio dos textos de Alcibíades 106 a partir do Séculos I e II.

Entrentanto, o artigo Madarasziano sobre Foucault: arqueólogo estrutural (2016) mostrou que em diferentes períodos de sua atividade intelectual, o autor de ‘L’écriture de soi’ expressa déplacement/ deslocamento de um pensamento, a continuidade ou ruptura na trajetória da sua obra. Norman Madarasz dá um exemplo:

Já Foucault, por seu turno, como bem podemos ler em ‘L’écriture de soi’, assumia que as práticas filosóficas antigas haviam sido ultrapassadas; deslocando o foco, ele apontava mais especificamente para uma escrita transformada em que se configurava a potência prescritiva de pensamento. Pela força da escrita, Foucault antecipava a dupla condição de existir e transformar esta mesma existência que o termo “subjetivação” veio a delinear em seus estudos históricos107.

No mundo hodierno parece que fica difícil continuar seguindo essas etapas intelectuais. Elas tornaram-se simples demais para nós que apostamos um estudo crítico e de avaliação retrospectiva sobre as pesquisas de Foucault, pois para nós a exigência cronológica deve ajudar- nos a compreender não apenas a continuidade da reflexão, mas também os vários momentos complexos da tarefa e da história do projeto de Foucault. Ao descrevermos as etapas intelectuais na obra de Foucault, através das considerações metodológicas, em Vigiar e punir (1975), pode- se perceber uma reflexão que se movimenta, desloca-se da arqueologia do saber à genealogia do poder.

Assim, o domínio da noção de cultura de si é constituído por uma classe bastante abrangente de funções filosoficamente caraterizáveis que dá, por sua vez, a origem a uma investigação diversificada, tanto nos deveres a cumprir, quanto nas técnicas a serem adoptadas108. Este tipo de consideração leva Foucault a formular uma terceira função de

105 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 57 – 58. Pode-se caracterizar resumidamente essa “cultura de si” pelo facto que a arte da existência o techne todo biou em suas diferentes formas - lá encontra-se dominada pelo princípio que é necessário “tomar cuidado de si mesmo”; é este princípio do cuidado de si que funda a necessidade, controla o desenvolvimento e organiza a prática. Mas deve notar-se; a ideia que deve aplicar-se a si mesmo, ocupar-se a si mesmo (heautou epimeleisthai) é realmente um tema muito antigo na cultura grega.

106 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 59. 107 MADARASZ, Norman Roland. FOUCAULT: ARQUEÓLOGO ESTRUTURAL. In MADARASZ, Norman R.; JAQUET, Gabriela M.; FÁVERO, Daniela N.; CENTENARO, Natasha (Orgs.). Foucault: leituras

acontecimentais. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016. p. 23.

108 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 355.

cuidado de si: “a cultura de si tem uma função curativa e terapêutica”109. As razões para adotar- se tal função remetem diretamente as diferenças entre o modelo médico e o modelo pedagógico. Na verdade, as investigações asseguram que, no âmbito da comparação das funções desses modelos, é possível obter uma aproximação. A conclusão obtida por Foucault, através dessa comparação, é expressa, de uma forma bastante enfática, nos seus dois livros Dits et écrit IV (1994) e O Cuidado de si (1984):

“Devemos, é claro, lembrar dos fatos na cultura grega antiga: a existência de um conceito como o pathos, que significa tanto a paixão da alma do que a doença do corpo110”.Na cultura de si, o aumento da preocupação médica parece bem ter resultado por certa forma, ao mesmo tempo específica e intensa, de atenção ao corpo. Esta atenção é muito diferente do que tinha sido a valorização do vigor físico numa época onde a ginástica, o treino desportivo e militar fazia parte integrante da formação de um homem livre. Tem também, em si, algo de paradoxal uma vez que se inscreve, pelo menos em parte, dentro de uma moral que põe que a morte, a doença, ou mesmo o sofrimento físico não constituem mais verdadeiros males e que vale melhor aplicar-se à sua alma do que de consagrar (dedicar) os seus cuidados (atenção) para manter o seu corpo. Este é o ponto em que é dada atenção nestas práticas de si, é o ponto onde os males do corpo e alma podem se comunicar entre eles e trocar a sua indisposição (desconforto): onde os maus hábitos da alma podem provocar misérias físicas, enquanto os excessos do corpo manifestam e mantêm os defeitos da alma111. Foucault ressalta que a magnitude de um campo metafórico é o que permite aplicar ao corpo e à alma as expressões como tratar, curar amputar, escarificar, purgar. Neste sentido, ele adverte que o nosso dever é também lembrar o princípio familiar dos epicuristas, estoicos e cínicos. Esse princípio afirmava que "o papel da filosofia é curar as doenças da alma112”.

Mas o grande legado foi o cuidado consistia em tratar da sua alma, fazendo lembrar um preceito que Zenão teve deu a seus discípulos e que Musonius, no século I, repetirá numa sentença citada por Plutarco: Os que querem salvar-se devem viver tratando-se incessantemente. Sabe-se a amplitude tomada, em Sêneca, pelo tema da aplicação a si mesmo: este princípio tem um aspecto positivo pois consiste em apenas consagrar-se a si mesmo. Com

109 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 357.

110 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 357.

111 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 72. 112 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 60.

isso, é necessário de acordo com Sêneca, renunciar às outras ocupações: assim se poderia tornar-se vago para si mesmo (sibi vacare).

Mas este feriado toma a forma de uma atividade múltipla que pede para não perder tempos. E que não poupa esforços para fazer-se a si mesmo transformar si mesmo, se retornar à si, voltar para si113. Portanto, Sêneca dispõe um todo um vocabulário para designar as formas diferentes que devem tomar o cuidado de si e o ódio com o qual procura-se juntar-se a si mesmo (ad se properare). A relação entre a alma e o corpo também é interessante. Para os estoicos, o corpo não era importante, porém, Marco Aurélio falava de si mesmo, de sua saúde, do que tinha comido, de sua garganta dolorida114. Isto é muito característico da ambiguidade entre o corpo e a cultura de si. Teoricamente, a cultura está orientada para a alma, mas todas as preocupações pelo corpo adquirem uma importância imensa.

Em relação aos dois modelos médico e pedagógico, Foucault utiliza, em pontos chaves de sua comparação e argumentação, a função curativa e terapêutica para identificar a semelhança entre esses modelos. O uso dessa comparação, em seu curso como o de Hermenêutica do sujeito (1982), vem necessariamente acompanhado de algum tipo de exemplo e isto devido a razões bastante específicas. No caso do problema da relação entre a filosofia e a medicina, o resultado dessa comparação é que a função curativa constitui um só campo. Nos termos de Michel Foucault: “Para Plutarco a filosofia e a medicina constituam miakhôra115

uma região, um só um domínio”116. A recusa a exemplos envolvendo o caso do problema relação entre a medicina e a pedagogia é um problema bastante semelhante ao da relação entre a medicina e filosofia, na avaliação das conclusões obtidas por Foucault “Epiteto não queria que a sua escola seja considerada como um simples lugar de formação, mas como um gabinete médico, um iatreîon”117; para Foucault, o que é desejável, neste exemplo, é o apelo função curativa. Este tipo de consideração mostra-nos como a conclusão estabelecida por Foucault, a

113 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 61. 114 FOUCAULT, Michel. Tecnologías del yo y otros textos afines. Introducción de Miguel Morey. Edicions Paidós Ibérica. Barcelona: Buenos Aires, 1996, p. 65.

115 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 356.

116 FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité III: le souci de soi. 8.ed. Paris: Gallimard/ Seuil, 1984, p. 69 – 70.

117 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Tome 4. 1970-1975. Editado por D. Defert, F. Ewald e J. Lagrange Paris: Gallimard, 1994, p. 357. Isso toca em um dos pontos mais importantes desta atividade dedicada a si mesmo: ela constitui, não um exercício de solidão, mas uma prática social real, verdadeira. E isso, em vários sentidos. Na verdade, muitas vezes tomou forma em estruturas mais ou menos institucionalizados.

partir de certos exemplos ligados à função curativa e terapêutica do cuidado de si, é passível de uma interpretação semelhante àquela pretendida por seu autor, Epiteto.

Aliás, na argumentação de Foucault, que pretende mostrar que as relações entre medicina e pedagogia são equivalentes, existe um problema envolvendo a consciência de ser paciente. Na demonstração disso, pedagogicamente, o aluno que quer aprender não se pode considerar como uma pessoa sã, mas sim doentia, que quer curar-se.

Ele queria que seja “uma clínica da alma”; queria que os seus alunos chegassem com a consciência de ser pacientes: “Um, dizia, com um ombro deslocado, o outro com um abcesso, o terceiro com uma fístula, e este com dores de cabeça118”.