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4 DEFINIÇÃO E COMPREENSÃO DA HISTÓRIA EM NGOENHA E KIZERBO

4.2 O PÉ DA LIBERDADE CRIATIVA DA HISTÓRIA AFRICANA

Ki-Zerbo faz uma distinção clara entre liberdade e necessidade, já na Introdução do livro Para quando África? ele sublinha a relação entre a liberdade e a necessidade. Nesta grande entrevista, cujas palavras-chave são a história que focaliza igualmente o sujeito, o federalismo, Estado-nação, consciência. Em 2006, Ki-Zerbo foi marcado, evidentemente sob a influência determinante de Severino Elias Ngoenha. Ki -Zerbo era determinado a propor o federalismo com exigências de autonomia das bases e das margens como o melhor sistema de governo para África, na sua nova visão humanista da história, da emancipação e da unidade africana.

Esse esforço faz-nos compreender porque depois do primeiro capítulo, sobre mundializadores e mundializados, consagrado por uma grande parte ainda ao lugar e aos desafios da África na mundialização, o segundo capítulo do texto Para quando África? consagrado à Democracia e governação258, onde Ki-Zerbo exprime a sua adesão sem nenhuma reserva à fórmula de Estado federalista tradicional africano e, ao mesmo tempo, essa grande visão de Estado de Direito. Essa visão integrava concomitantemente as três ideias: regionalismo, federalismo e descentralização.

Mas o que deverá ser compreendido nesta visão é que o que é cidadania num Estado multinacional e federalista como modelo para o futuro dos países africanos não pode ser separado da utopia concreta, do “sonho para frente” de Bloch e Ngoenha, mas deve antes ser

257 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, P. 165.

258 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? - Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p 63.

como proposta de antecipação concreta das possibilidades de construir vários espaços de autonomia de gestão e de reclamar várias esferas e vários tipos de cidadania em África.

Para Ki-Zerbo, na sua compreensão da História, “os dois aspectos estão ligados. Os dois estão combinados para avançar259. A liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções, novos somatórios, às descobertas”260

Projetar para diante rumo a novas opções significa que o sujeito tem que se lançar para o futuro. Para projetar o que quer que seja, como dizia Sartre, que “nada existe antes deste projeto”. Isto significa que para projetar o que quer que seja, primeiro é preciso ser: a essência (o que se é: um corpo) precede a existência (o que se escolhe, o que se projeta, o que ainda não se é) e a torna possível. Expresso em outras palavras: “eu sou porque nós somos”, a essência e a existência, no presente, confundem-se necessariamente. E o que há além do presente? É o único momento do ser, da ação, da liberdade, o único momento real.

Schelling afirma explicitamente sobre liberdade e necessidade. “O Absoluto, afirma ele, opera por meio de cada inteligência, isto é, a sua ação é também absoluta enquanto não é nem livre nem carecedora de liberdade, mas um e outro juntos: absolutamente livres, por isso também necessária”261.

Essa compreensão ki-zerbiana da história que une a liberdade da necessidade permite- nos identificar o projeto do futuro de Ki-Zerbo para a África. Mas, na leitura atenta sobre compreensão da história em Ki-Zerbo, podemos identificar a “antecipação das possibilidades” (como em Bloch e Ngoenha), já que a ligação dos dois aspectos da história está para avançar para o futuro (já que não se pode avançar para atrás ou avançar para o presente).

Dizer que “a liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções” significa que Ki-Zerbo tal como Schelling, está empenhado a identificar a liberdade com a necessidade. Ki-Zerbo espera que essência dessa liberdade possa manifestar-se na autodeterminação dos povos africanos. A liberdade almejada atribuída não é apenas para um só país ou uma parte da África, mas para todo o continente.

259 O que significa combinar a liberdade e a necessidade para avançar? Penso que significa uma Insatisfação do momento presente. Então, a questão inicial é: Para quando África? A resposta é para futuro, amanhã. Nesta pergunta, está implicitamente escondido o plano, o projeto de Ki-Zerbo para África.

260 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? Entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17.

261Schelling, As Pesquisas filosóficas sobre a essência da Liberdade Humana (1809), in ABBAGNANO, Nicole.

Dicionário de filosofia. Tradução coordenada e ver. por Alfredo Bosi, com colaboração de Maurice Cunio et al....

Este problema da liberdade levanta a questão mais radical: o que é entendido por liberdade do Eu-africano se não a liberdade epistémica?262 O discurso sobre a liberdade não é apenas em si, nem da independência, nem da autonomia. Castiano explica a essência da liberdade para a pessoa africana:

A liberdade do Eu-africano torna-se um valor intrínseco à sua própria existência como sujeito no contexto da escravatura e na condição de colonizado. A liberdade que se clama não tem somente um sentido material de luta pela sua independência económica e pela sua autonomia política em proclamar a sua própria identidade. A liberdade que se quer vai muito mais além da independência e da autonomia: é a liberdade epistémica. Ou seja: a liberdade do sujeito africano de falar por si, de construir o seu próprio discurso sobre a sua condição de existência. É a liberdade de ser livre em negociar a sua entrada na modernidade. Trata-se da liberdade de ter o direito de ser sujeito da sua história e do pensamento sobre si mesmo, que, quanto a nós, é o primeiro passo para o referencial da intersubjectivação263.

Esta concepção do Eu-afriano é pós-kantiana que é retomada nas reflexões filosóficas de Ernest Bloch e Severino Elias Ngoenha. Para esses filósofos, a discussão sobre o ser tem a ver com aquilo que ainda não se deu. Na filosofia de Bloch e de Ngoenha trata-se de retomar a questão kantiana da liberdade do sujeito de falar por si: Quem somos nós? Mas no decurso de desenvolvimentos de pesquisas filosóficas, esta questão da liberdade epistémica já foi desenvolvida na filosofia ubuntu africana. Trata-se de ponto de vista do sujeito ético ou moral. O princípio “Eu sou porque nós somos” fornece ao sujeito africano uma possibilidade de “construir o seu discurso sobre a sua condição de existência”.

Segundo Ngoenha, a liberdade representa a capacidade de projetar-se na medida em que: “Viver significa saber-se existente. Na raiz da vida está um atributo que nos projeta, não no passado, mas aquilo que seremos no futuro. A nossa vida é, sobretudo, embater-se no futuro, é uma atividade que nos projeta em frente. O presente e o passado descobrem-se em relação ao

262 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p223 – 224. “A reflexão sobre as condições epistémicas da própria filosofia africana pareceu a Castiano possuir algo para criar e desenvolver espaços de intersubjectivação e de interculturalidade. Ele considera importante repensar a questão seguinte: como é que a filosofia africana pode abrir-se no sentido de deixar enriquecer os seus pressupostos a partir das referências teórico-conceptuais sugeridas com base nos contextos culturais para que ela própria possa criar uma ‘nova filosofia africana’ conforme sugere Ngoenha”. Se se tentar renovar a filosofia africana ngoenhiana no sentido indicado, deve-se contar um objetivo, o de usar o carácter auto-reflexivo da filosofia. Ao mesmo tempo, lembre-se em benefício da renovação intentada, que ela abre uma possibilidade de um outro objetivo para criação de ‘sociedades de discurso sem territorialização’, como queria Foucault.

263 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 200.

futuro”264. Isto significa que, antes Bloch265, mais tarde Ngoenha, estão empenhados em mostrar que a essência real do conteúdo da esperança engaja-se na existência humana. Explicar o significado da liberdade como capacidade de projetar-se no mundo significa reconhecer as relações filosóficas de Ngoenha com o pensamento existencial de Heidegger. “O problema que aborda a filosofia africana é de caráter existencial266. Por conseguinte, nenhum progresso no debate filosófico africano será legítimo se não tiver, antes dado solução a esse problema, cuja primazia advém não simplesmente da cronologia, mas sobretudo da ontologia”

Na introdução à Filosofia Africana – das independências às liberdades, podemos ler explicitamente a mesma concepção da história formulada por Ki-Zerbo. Na obra Para quando África? o autor longe de imaginar uma concepção diferente da formulada por Ngoenha, defende ainda a mesma noção. Nesta perceptiva, Ki-Zerbo opera também, uma definição de história, exprimindo o mesmo significado da liberdade enquanto pé da história. Por exemplo, em Para quando África? Ki-Zerbo insiste para assinalar o significado da relação entre liberdade e história, para assim dizer, concluindo que “a liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções, novos somatórios, às descobertas”267. Com isso, Ki-Zerbo posiciona-se voluntariamente ao lado de Ngoenha, que afirma: “De fato não nos seria possível viver sem uma imagem do futuro, sem aquela fantasia política que permite inventar o amanhã e viver o hoje”268.

264 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 139. Castiano procurará esboçar a ideia da “crítica da crítica à etnofilosofia” e às etnociências em Hountondji e Ngoenha. Assim, na análise castianiana, ambos almejam libertar a filosofia das amarras de um pensar que se quer filosofia. Mais do que isso, o reconhecimento de que “eles aqui têm razão”, conduz a filosofia castianiana a explicitação de que só se pode falar em antropologia, compreende-se que ela “quer (re)inventariar os hábitos e costumes dos povos africanos e apresenta-los como sendo ‘filosofia africana’”. Cfr. CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjetivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 15. Não é por outro motivo que, amarra a filosofia africana ao passado, é apontada como método ineficaz para contribuir para o ‘projeto futuro’, como Ngoenha afirma propor sua filosofia.

265 MUNSTER, Arno. Espérance, Rêve, Utopie dans la pensé d’Ernest Bloch, L’Harmattan, Paris, 2015, p. 35. 266 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 131. “A mensagem dos existencialistas evidenciou a originalidade do homem no ato de abrir-se aos outros, através da palavra. Já Platão tinha feito a distinção entre a palavra falada e a palavra escrita, defendendo a superioridade da primeira em relação à segunda. Os existencialistas carregam a palavra com uma rara força de testemunho e de compromisso, exatamente porque nela se reflete ‘a entrega’ do ser (Heidegger), ‘a centelha da transcendência’ (Jaspers), um ato de amor e de felicidade (G. Marcel), uma carga de compromisso ético-político (Sartre) ”.

267KI-ZERBO Joseph. Para quando África? entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17.

268 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 10.

COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do Desespero e da Beatitude. Tradução Eduardo Brandão. Revisão técnica Luís Filipe Pondé. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 17. “E que esperança não é frustrada? Não há esperança que não seja ‘impotência d’alma’ e promessa de tristeza. Em lugar da qual o silencia nada espera”

Essa aproximação de Ki-Zerbo a Ngoenha acompanhada da defesa de como Ngoenha apreende o futuro é focalizada também sobre o conceito de história em Ki-Zerbo que atesta as fortes aproximações existentes entre eles: “a História ocupa-se de questões relativas não apenas ao passado, mas também ao futuro. Na medida em que a História tem este pé da liberdade, que antecipa o ‘sentido’ do processo, continua a existir uma grande porta aberta para o futuro”269.