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3 O NADA COMO O UTÓPICO POSITIVO EM NGOENHA E BLOCH

3.2 IDENTIDADE: SOMOS SUJEITOS OU OBJETOS DA ETNOLOGIA?

Essa cultura democrática caracterizada pela aparatocracia confirma, uma vez mais, a interpretação do papel do sujeito na história de Moçambique, no pensamento de Ngoenha, marcada por sujeitos passivos, que fazem a sua história, mas como instrumentos nas mãos dos partidos armados que têm o direito de forçar os moçambicanos para traduzir em vitória os resultados das eleições dos candidatos do poder do aparato, daqueles partidos que manifestam o poder no “arsenal bélico que consegue juntar”. Essas breves análises ngoenhianas servem para mostrar os múltiplos defeitos característicos da “democracia moçambicana212”, que constantemente tendem a ver no homem moçambicano não o fautor da sua história, mas o instrumento da vontade alheia como era no tempo colonial. Tudo isso - a normalidade que se tornou regra - o que viola radicalmente os princípios democráticos213, é recusado por Ngoenha. O que leva o autor a defender a tese central para toda a sua filosofia, que é, pelo menos, a mesma como nas obras anteriores, nomeadamente: Por uma dimensão da consciência história moçambicana (1992) e Filosofia Africana - das independências às liberdades [2014 (1993) ]. Estamos nos referindo à ideia de que, em certo sentido, um Estado de direito, de Estado multinacional e federalista em que a ideia de participação dos cidadãos nos destinos da sociedade deve ser indispensável.

Nas três de obras, Ngoenha continua uma observação importante. O eixo que junta as obras fixa-se na seguinte afirmação: “Na existência, tudo se faz em função do futuro. O passado é campo de recordações e nostalgias, de factos e de necessidades, já que, em cada mudança de tempo, uma vastidão de horizontes se fecha, quando uma estrada, e apenas uma, é aberta, escolhida ou imposta”214. Essa ideia é fundamental: a relação entre o passado e o futuro. No cerne dessa relação, encontramos a mudança e a continuidade dos defeitos do Estado colonial português no novo Estado do Moçambique, atual e independente.

Essas limitações do Estado velho no Estado Novo foram descobertas por Marly Carvalhos Soares: “Certamente elas podem mudar de nome, mas o conteúdo é o mesmo enriquecido”. Não são os progressos de desenvolvimento da sociedade, mas a presença dos

212 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 13. Segundo Thomas Kesselring “A democracia moçambicana é o denominador comum de todas as partes do livro”.

213NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 16.

214 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 10.

insucessos dos esforços dos homens para a realização do futuro melhor que devem conduzir a filosofia africana a refletir a possibilidade de invenção de um mundo novo, o qual Ngoenha está em vias de perspectivar em suas obras. Trata-se, portanto, do amanhã desenvolvendo a sua relação com o passado.

O instrumento que nos é dado para pensar a realidade do homem africano e do seu estar no mundo é utópico, não consiste apenas na dimensão teórica, mas em conceber necessariamente a filosofia no plano empírico no sentido marxiano de “militar pela sua transformação”215 da realidade, a realidade escandalosa de Moçambique. Pode-se afirmar que os filósofos moçambicanos (Castiano e Ngoenha) estão empenhado em reabilitar, no seio da discussão teórica marxista contemporânea, o contributo da filosofia:

Não é por acaso que Marx, criticando a filosofia de Hegel, por ele considerada ‘contemplativa', proclama que die Philosophen haben die Welt nur... interpretiert, es kommt drauf an, sie zu verändern, ou seja, os filosófos, até agora, limitaram-se a interpretar o mundo, o desafio agora é transformá-lo. Marx reconhece, sem dúvida, que para que a filosofia possa contribuir no processo da construção de um mundo melhor, a contribuição da própria filosofia deve ser feita após uma profunda reflexão e interpretação da singularidade do ‘seu’ tempo histórico; dos ‘tempos da filosofia’, diria Ngoenha216.

Lembre-se no título do artigo de Camilo Jimica e Celestino Fernando, Da utopia de Ernest Bloch à futurologia utópica de Severino Elias Ngoenha: Uma aproximação de ideias filosóficas, publicado em Maputo, que afirma que “A filosofia de Ngoenha, pretende ser uma retoma de filosofia de Karl Marx. Na história da filosofia sua proposta é acrescentar a dimensão prática, que permite transformar o mundo. Com isso, os discursos de Ngoenha, são fundados sobre as categorias filosóficas da consciência e da Ação”217.

Lembre-se que um dos problemas sobre as limitações do Estado Velho no Estado Novo, consiste em afirmar que há uma continuidade de pensamento nas obras de Ngoenha, segundo a qual as dificuldades do Estado colonial português em Moçambique continuam na época independência de Moçambique. Elas inscrevem-se sobre a superfície empírica da realidade moçambicana, porque elas atualizam, de forma repetitiva e circular, a presença da força militar, o poder do aparato (da aparatocracia) na jovem democracia de Moçambique, que obriga o homem a fazer a história não como sujeito, mas objeto dela. O exemplo a dar é o seguinte: Em

215 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 69.

216 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 42.

217 SOUZA, Ricardo Timm de; RODRIQUES, Ubiratane de Morais (Org.), Ernest Bloch: utopias concretas e suas interfaces, vol. 2. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016, p. 135.

primeiro lugar, “Em 1928, com o despontar do ‘Estado Novo’ em Portugal, se a realização dos grandes projetos implicava a deslocação de dez mil pessoas de Gaza para Maputo, outras duas vezes mais para a África do Sul, os militares estavam lá para executar as ordens”. Em segundo lugar, em 1974, no período da independência moçambicana, “uma vez mais não nos foi perguntado qual o tipo de futuro que sonhávamos para nós e para os nossos filhos”218; é preciso ainda acrescentar que “uma vez mais pretendia-se que fossemos rápidos a responder com as nossas energias, planos e projetos, na construção de um futuro, na elaboração do que não tínhamos participado219”. Isto significa que não se realizaram os grandes sonhos do povo moçambicano de forma livre e independente, sem imediatamente fazer intervir a vontade alheia na concretização do futuro melhor nas eleições presidenciais e legislativas: “E uma vez mais os militares estavam lá para nos obrigar a traduzir em atos os planos futurísticos daqueles que tinham o privilégio divino de saber o que era bom para todos. Nós fizemos a história, mas, uma vez mais, como instrumentos da vontade alheia”220. O Estado moçambicano atual propõe-se criar um Estado de direito e democrático, mas ele retoma os erros do Estado colonial português em Moçambique: Em definitivo, ontem e hoje, o povo moçambicano fez e continua a fazer a sua história, mas, novamente, como instrumento da vontade alheia - maus lençóis. Por essa razão, consideramos que Ngoenha reeditou o seu livro da Filosofia Africana – das independências às liberdades em 2014, ainda que a primeira edição fosse de 1993, apenas para reafirmar o seu compromisso com a democracia, o qual começa nessa obra, passa pelos Tempos da Filosofia e chega até Terceira Questão – que análise se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? Por isso, há uma continuidade de pensamento na obra de Ngoenha e há também uma missão nova da filosofia. Ela consiste na elaboração de um futuro diferente do presente, o homem vai se consciencializando e moralizando, sendo que a educação formal é a condição para realizar o tipo de futuro e de sociedade sonhados pelos moçambicanos. Nessa missão-futura do processo de pacificação, democratização e federalização de Moçambique, além dos fatores ligados à história e às culturas domésticas, Ngoenha aponta a educação formal como fator importante para o funcionamento de uma organização democrática na África subsaariana, dado que o nível da formação do povo é muito baixo naquela parte do continente

218 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 9.

219 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 9.

220 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 9.

africano. Esta será a tarefa da nova geração dos jovens africanos que passa por distinguir o velho do novo Estado.

Também a nova geração é levada a posicionar-se entre o passado e o futuro na história de Moçambique. A história, na Filosofia Africana – das independências às liberdades e Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana, de Ngoenha, é linear, porque, na medida em que o homem vai agindo no tempo, passa a compreender-se e assume suas ações do passado, porque, só por meio das realizações, as possibilidades do homem mostram-se a ele.

Portanto, há outra maneira abordar o tempo de Moçambique atual a partir da imagem presente. Ela será a maneira própria de Foucault e Hegel. Assim, a nova geração é obrigada a analisar os diversos momentos da história: o passado, o presente e o futuro: a imagem do presente anunciada na obra Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana (1992), encontra-se na Filosofia Africana das Independências às liberdades [2014, (1993) ] e na Terceira Questão - que análise se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? (2015). No Prefácio desta obra escrito por Thomas Kesselring lê-se:

Esta obra, então fala do Moçambique atual. Mas o autor também apresenta um estudo sobre as condições que garantem a convivência pacífica entre diferentes grupos sociais políticos, étnicos et. Ele enriquece seus argumentos com uma grande variedade de amostras que iluminam o funcionamento e o não-funcionamento da política em outros países, no passado histórico como no presente. Esta investigação é iluminadora também para membros de qualquer sociedade do mundo221.

Ngoenha não se contenta com uma filosofia do futuro nas teses da filosofia de Bloch, relativas ao papel da filosofia. Ele rubrica o papel do filósofo em Hegel: “Tu não serás melhor que o teu tempo, mas do teu tempo, tu serás o melhor”222, “neste sentido, o que é o presente senão um instante da viagem noturna, uma mancha que separa o ontem do mundo do amanhã”223. O que está em questão a um dado momento da história é a filosofia do presente que fez Kant e Foucault.

Basta-se lembrar o que escreveu Thomas Kesselring no prefácio do livro de seu amigo Ngoenha (Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas?) ao afirmar que as questões referidas a falar do Moçambique atual são iluminadoreas para membros de qualquer sociedade no planeta Terra. Isto significa que

221 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 13.

222 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 31.

223NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 26.

“mesmo que o autor ponha acento nos eventos ‘domésticos’ ou ‘locais’ de vez em quando, chama atenção para eventos que fogem a este quadro224”.

3.3 A POSSIBILIDADE DE INTERPRETAR A INSÔNIA KANTIANA EM FUNÇÃO