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4 DEFINIÇÃO E COMPREENSÃO DA HISTÓRIA EM NGOENHA E KIZERBO

4.1 NECESSIDADE E HISTÓRIA INVENÇÃO: NGOENHA E KI-ZERBO

Apesar da sua repugnância, compreensível na sua época, para citar o nome de Ngoenha (1962 -), Joseph Ki-Zerbo (21 de junho de 1922 — 4 de dezembro de 2006) retoma, repensa, renova ou inverte frequentemente as posições teóricas e os conceitos de seu “predecessor”. Isto é válido também no plano histórico e no plano-ético político. Podemos identificar uma reformulação crítica de conceitos a propósito da teoria da história?255 Essa pergunta tem duplo

253NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 17.

254 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 169. Aqui já se explica a ideia de tudo militar a aparatocracia.

255 Para um tratamento alargado dos objetivos da pesquisa arqueológica e a questão da obra (des)contínua, ver MADARASZ, Norman Roland. FOUCAULT: ARQUEÓLOGO ESTRUTURAL. In MADARASZ, Norman R.; JAQUET, Gabriela M.; FÁVERO, Daniela N.; CENTENARO, Natasha (Orgs.). Foucault: leituras

acontecimentais. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016. p. 34. “A arqueologia intentava compensar o que faltava na

filosofia da história e na teoria da história correntes à época para entender as formações discursivas em sua transformação em saberes. Por certo, Foucault procedeu, em alguns momentos específicos de sua pesquisa, por uma suspensão da arqueologia”.

desafio: histórico e filosófico. No plano histórico, trata-se de determinar em que medida Ki- Zerbo teve conta do tratamento ngoenhiano do problema da história.

No plano propriamente filosófico, trata-se de determinar o conteúdo teórico que se produz na passagem da concepção de um para o outro: que tentaremos caracterizar como a passagem de uma utopia concreta sem Ngoenha mencionar a teoria de Ki-Zerbo e vice-versa.

Esses dois planos de problemática animarão o exame comparado ao qual nos propomos submeter a análise. Para atingir este objetivo, vamos analisar o livro de Ki-Zerbo e René Holenstein, intitulado Para quando África? - Entrevista com Holenstein, René (autor); Ki- Zerbo, Joseph (Entrev.) Porto: Campo das Letras, 2006; e os três livros de Severino Elias NGOENHA: (1) Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992; (2) Filosofia Africana – das independências às liberdades, Prior velho: Paulinas Editora, 2014 e (3) NGOENHA, Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015.

O trabalho desses livros consiste largamente em argumentos mais convincentes que procuram conhecer cientificamente o passado humano da África, em que as interpretações feitas por Ngoenha e Ki-Zerbo valorizam as relações existentes entre o passado e o presente.

É preciso guardar em mente o objetivo fixado por Ki-Zerbo quando ele propõe este estudo sobre a África, considerando neste sentido de “África para quando”? Trata-se de uma pergunta que permite pensar a história não apenas nas suas relações com dois momentos do passado e do presente. Isto implica alargar o horizonte da história na sua relação com o futuro. Nesta pergunta de Ki-Zerbo, o termo “quando” expressa circunstância de tempo. Assim, a questão é: África em que ocasião: passado, presente ou futuro? Em outros termos: África, em que ocasião? África, em que circunstância de tempo?

Esta é uma pergunta que lhe permite imaginar várias circunstâncias de tempo. Ela abre as possibilidades de imaginar um futuro possível, uma outra África nova, melhor do que aquela do passado e do presente. Com isso a pergunta Ki-Zerbo parte para uma missão-futuro como faz Ngoenha, para a utopia concreta. A partir da pergunta – África para quando? (2006) –, Ki- Zerbo tentou abrir a História de África a novas curiosidades; mas, ao mesmo tempo, criticar a situação presente do seu país e também do seu continente.

Seduzido pela história, geral da África, Ki-Zerbo procura tornar mais claras, a nosso ver, as suas teses sobre a compreensão da história. A principal, entre elas, é a seguinte:

A História anda sobre dois pés, o da liberdade e o da necessidade. Se considerarmos a História na sua duração e na sua totalidade, compreenderemos que há simultaneamente continuidade e ruptura. E há fazes em que as invenções se atropelam: são as fazes da liberdade criativa. E há fases em que, porque não foram resolvidas as contradições, as rupturas se impõem: são as fazes da necessidade256

Cumpre questionar quais são os dois pés ou fases de continuidade e de ruptura da história no pensamento de Ngoenha?

Neste processo de definição e compreensão da história necessidade e história invenção em África em geral e, em particular, em Moçambique, ainda não é a liberdade e a necessidade como os únicos dois pés e motores da história como queria Kizerbo, isto é, que o homem africano vai se universalizando cada dia que passa, mas através da filosofia africana do ubuntu, baseada no princípio – eu sou porque nós somos. Isso significa que o indivíduo africano quer ser universal e a primeira universalidade já se deu no ser. Mas defendemos que, nessa máxima, há já uma universalidade não apenas no âmbito do ser, mas no âmbito de interesse: o eu entra em acordo com o outro (o nós ) não apenas pelo ser, pelo reconhecimento do ser do outro do outro (como queria Emmanuel Levinas), mas porque o nós satisfaz as necessidades do eu. É ainda o pilar da necessidade e não o motor da liberdade que domina o processo de compressão do presente momento da história das independências africanas.

Não podemos esquecer as lutas pelas independências africanas po que o homem de Moçambique passou para atingir o objetivo de libertar o homem e libertar a terra e instituir a igualdade racial e no trabalho. O resultado não se deu porque esses objetivos pareciam justos, mas porque a participação de todos os povos oprimidos / colonizados da África na luta contra o apartheid revelaram-se como os meios mais eficientes para vencer colonialistas, libertando os povos da África subsaariana de qualquer tipo de opressão e descriminação.

Não se pode negar que as virtudes da sociedade africana no sul de Saara plasmadas na filosofia do ubuntu são indispensáveis para compreensão da realidade cultural das comunidades dessa região do continente, mas não bastam. A vitória sobre o apartheid na África do Sul, como também a luta contra o colonialismo em África, não é fim em si mesmo. São meios necessários para viver-se em liberdade na sociedade. E viver em liberdade na comunidade da África subsaariana ou passar das independências às liberdades africanas é ainda um processo histórico,

256 KI-ZERBO Joseph. Para quando África? - entrevista com Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Porto: Campo das Letras, 2006, p. 17.

quer dizer, socialmente utópico, ainda por realizar. A moral ainda se compreende mais em oposição à política e à racionalidade.

Neste sentido, pensamos que a definição e a compreensão da história de Moçambique é ainda dominada por dois motores da história: “Existe, contudo um fio que liga todos estes problemas e justifica que sejam todos em conjunto: este fio é a necessidade de pensarmos um direito, uma constituição uma organização dos poderes públicos em adequação à situação histórica e social que o país atravessa”257.