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3 O NADA COMO O UTÓPICO POSITIVO EM NGOENHA E BLOCH

3.3 A POSSIBILIDADE DE INTERPRETAR A INSÔNIA KANTIANA EM FUNÇÃO DO

Ngoenha, em sua obra Filosofia Africana - das independências às liberdades, desempenha o seu papel de filósofo educador, na medida em que anuncia a insatisfação dos povos africanos no tocante aos resultados dos programas de desenvolvimento econômico e de ajustamento estrutural implantados ao longo dos 50 anos das independências das africanas. Nessa obra, ele apela para a função mais apropriada do filósofo quando tenta responder a interrogações sobre i) qual é “o lugar da filosofia na problemática da construção do futuro”225; “qual é a melhor maneira de pensar o futuro”226. ii) como é que Moçambique pode enfrentar os desafios atuais (fome, ignorância, desigualdade entre ricos e pobres que não cessa de aumentar)227. Isso significa uma vontade de reavaliação da herança utópica de participação do filósofo africano na elaboração de um futuro diferente do presente que os moçambicanos são dados a viver e a observar.

O seu desejo de refundação do marxismo, à luz do papel da filosofia na reflexão sobre o futuro e utopia, procura encontrar em Karl Marx as possibilidades de como pode a filosofia contribuir na realização da missão-futuro melhor em Moçambique. Essa busca de novas possibilidades do mundo africano no período das independências, em Ngoenha, implica um missão-pedagógica que necessita saber 1) que tipo de homens queremos que sejam os moçambicanos; 2) que tipo de sociedade que queríamos ter hoje e 3) que tipo de futuro que queríamos que fosso o nosso e dos nossos filhos sem condicionamentos ideológicos228, somos ou não sujeitos da história?

224 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p. 17.

225 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 6.

226 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 11.

227 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p.20.

228 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 7-8.

Com isso, pensamos que missão-futuro do filósofo, em Ngoenha, é missão-pedagógica, que consiste em denunciar os fatos que empobrecem a realidade cultural da África independente e anunciar a possibilidade de introduzir, no ensino, estudos sobre o futuro que tendem a ser normativos, isto é, a estar mais orientados para finalidades, para escolhas e opções: “A perspectiva deve tender a educar o nosso sentido de responsabilidade 229civil, fazendo-nos descobrir todas as repercussões políticas e sociais dos nossos atos, que, muitas vezes, julgamos privados. Os filósofos têm a colossal responsabilidade de formar as gerações presente e futuras em ordem a uma consciência civil”230.

Ngoenha retoma, em 1993, a grande obra intitulada Filosofia Africana das - independências às liberdades, publicada em Prior Velho (Portugal), sobre a filosofia do presente Hegeliana e de Ortega Y Gasset no seu livro Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? (2015), relendo, ao lado de Hegel, sobretudo no Wastebook de Iena, a possibilidade de interpretar o “despertar do sono dogmático”, um estado de insônia kantiano e a sua forte incidência sobre o pensamento filosófico de Michel Foucault, como um despertar no coração do sujeito de uma hermenêutica do sujeito. A esse respeito, a obra de Ngoenha, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica não deixa de apresentar um grande interesse. Ela marca a retomada da reflexão de Ngoenha dentro da direção que acabamos de evocar como Ngoenha, ele próprio, questiona: “o homem de Moçambique pode reconhecer-se sujeito ou objeto dos eventos temporais? Somos nós a fazer a História ou somos feitos pela História dos outros”231.

De José Paulino Castiano, pode-se dizer que seu texto mais conhecido é Filosofia Africana: Em busca da subjetividade. É preciso ter em consideração que est texto traz a questão do sujeito da história. E isso pode ser comprovado pelo modo como José P. Castiano se refere, por exemplo, nesse texto, ao problema da história, afirmando que: “A história de narrativas científicas da objectivação dos africanos na história é tão velha como a história das narrativas de subjectivação, nas quais este mesmo sujeito africano revela-se a si mesmo como tal e nega ter sido ‘descoberto’232.

229 NBUNTU, eu sou porque nós somos sua essência é esta responsabilidade civil.

230 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 189.

231NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 7.

232 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 124.

Essa tentativa de recusa é sublime. Sabe-se que o sujeito apresenta-se como o germe dessa obra de pesquisa. Trata-se de uma obra em que o autor procura explicar-se a si mesmo e à sua época. Ele interroga-se sobre o sentido e o significado da sua aventura temporal, não como objeto, mas sujeito da história, dotado de conhecimento, vontade, liberdade e decisão, responsabilidade na sua ação do presente e do seu futuro. Defende que o sujeito da história é o homem capaz de decidir pela própria vida. O sujeito histórico é um homem livre com possibilidade de protagonizar a sua história.

Os principais temas da reflexão de Ngoenha tratam da noção do presente, seja porque essa noção distingue-se de identificar-se com a missão do filósofo, seja, ao contrário, porque ela identifica-se com a realidade, o tempo do Moçambique atual. O presente é o momento onde as coisas encontram-se e, interessantemente, os sujeitos ativos individuais e coletivos ligados a uma consciência histórica e fatores do devir da história a partir da visão realista do tempo do presente.

Como Bloch, Ngoenha procura explicar o sentido da vida, o destino do homem e as suas possibilidades de realizá-lo. Ele tenta formular os sonhos e as esperanças mais altas da sua comunidade e da comunidade humana em geral. Conforme Bloch: “O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis”233.

Mas o mundo é indissociavelmente ligado à utopia e à política como projeção e plano de satisfação da necessidade. O mundo novo apresenta-se como um projeto, um futuro melhor concebido pelo próprio sujeito e de suas possibilidades de realização dependem de cada sujeito dentro da lógica das possíveis no seio do seio próprio tempo em que o sujeito é dado a viver. O tempo do presente e do seu destino, que o sujeito é chamado a escolher, não deve ser o mesmo do passado. Diferentemente do mundo do passado, portador de escandaloso, de fome e de desigualdades sociais, o presente deve ser portador de um mundo novo, de novo começo.

233BLOCH Ernst, L'athéisme dans le christianisme. La religion de l'Exode et du Royaume. Trad, de l'allemand par Eliane Kaufholz et Gérard Raulet. Notes de Gérard Raulet (Bibliothèque de philosophie). Un vol. Paris: Gallimard, 1978, p. 277. ABBAGNANO, Nicole. Dicionário de Filosofia. Tradução coordenada e ver. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurice Cunio et al. 2ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1962, p.728. “A perspectiva significa uma antecipação qualquer do futuro: projeto, esperança, ideal, utopia”. O termo perspectiva em Ngoenha, exprime o mesmo conceito de possibilidade em Bloch. Em ambos filósofos, o termo possibilidade ou perspectiva emprega-se de num ponto de vista mais genérico para não comprometer a esperança no futuro, dado que pode aparecer o futuro como conjunto de projetos que não tem consistência para serem possibilidades autênticas.

Como Sócrates, Ngoenha tenta levar a comunidade humana a tomar consciência; ele tenta abrir ao homem a via em direção a ele mesmo. Ele quer levar o homem a refletir sobre si mesmo. Depois dos 50 anos das independências africanas, a opressão e as instrumentalizações continuam a registrar-se um pouco por todo o continente. Tal fato levou Ngoenha a escrever os seus livros o Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana e Filosofia Africana – das independências às liberdades, para levar o homem africano a tomar consciência de si e de sua posição de sujeito da história, de realizador não de vontades alheias, mas fator do seu destino.

Como Levinas, ele tenta levar o homem em direção à comunidade e à individualidade, ao outro do outro, isto é, em direção ao eu sou porque nós somos. Trata-se de uma abertura vital em direção aos outros. Neste sentido, Ngoenha faz a sua filosofia africana, em função de um reconhecimento possível do outro do outro. “A filosofia é uma reivindicação” da identidade, da diferença e da autonomia. A sua filosofia procura pensar o projeto do futuro de forma diferente, isto é, superar a filosofia de tipo etnofilosofia que se revela como ‘crise do Muntu’234.

Posicionando-se diante da fuga da tradição africana para o futuro, ou seja, “a submissão da tradição em função de um projeto futurista” em Ngoenha, José Paulino Castiano afirma existir motivo suficiente para fazer uma “crítica da crítica a etnofilosofia” e às etnociências, porque “(re)inventar” a antropologia235 dos povos africanos como sendo “filosofia africana”, amarra a filosofia africano ao passado e pode impedi-la de contribuir para o futuro. Com isso, recomenda-se a urgência de fazer um esboço que permite sustentar a tese de existir uma ligação entre as obras de Hountondji e Ngoenha especialmente as suas críticas à etnofilosofia e às etnociências. Por isso, sabendo-se que essa ligação representa um passo imprescindível, faz-se necessária a posição daqueles dois filósofos africanos que “almejam libertar a filosofia das amarras de um pensar que se quer filosofia”236.

234NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 106. Os filósofos da etnofilosofia limitam-se a usar uma linguagem abstrata, sem conteúdo histórico e referência a um lugar preciso.

235 Conforme afirmamos, a posição castianiana a Hountondji, na questão das entnociencias quanto a questão da verdade realiza-se no terreno preparado por este autor. Hountondji é bastante claro em relação aos objetivos centrais das etnociencias perante os “saberes locais/tradicionais”. Desde o início a refutação das etnociencias como um de seus objetivos principais: “O que fazem é descrever os saberes locais e deixá-los intactos”. Mas especificamente as discussões realizadas nos Referenciais da Filosofia Africana, tem como opositor direto o ceticismo em relação ao projeto do estudo de outras culturas, já que “não conseguem deixar de beneficiar às sociedades ocidentais porque é para esses países para onde fluem os resultados conseguidos pelas etnociências nos seus estudos etnográficos”. Cfr. p. 63

236 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 115.

As condições para a realização desse projeto são duas: a primeira passa por proclamar o fim da etnologia, pois tende a reduzir a temporalidade do Muntu num passado que não tem nenhuma relação com o presente e, por isso, sem futuro237. Assim, a etnofilosofia é incapaz de reivindicar uma filosofia autônoma do Muntu, dado que a etnofilosofia significa uma negação da linguagem humana e da historicidade do Muntu. A segunda condição de possibilidade para superação da etnofilosofia consiste em “começar pelo próprio Muntu, pela sua situação concreta e dirigir-se em direção do seu possível ‘devir livres’”238. Essa condição marca toda a Filosofia Africana de Ngoenha.

Sendo concebida a filosofia ubuntu-africana como uma epistemologia e devendo-se buscar o ponto de partida em Ramose, José Castiano apresenta o seu projeto no domínio da epistemologia e da ontologia alicerçado no ubuntu. Se, para Magobe Ramose, “sem a palavra do umuntu, o ubu- estaria condenado ao silêncio total”239. Trata-se do sentimento de cuidado da própria relação indissociável entre o termo umuntu e a palavra ubuntu. Essa relação é condição de possibilidade para a realização da atividade expressiva e comportamental de existência do ubuntu, pois processo de relação ficou claro que a relação não é, simplesmente expressão, mas condição de existência do ubuntu. E para José Castiano, este foi, precisamente, o resultado de sua epistemologia e ontologia que mostrou, para a consciência comum, que o “umuntu tem um compromisso naturalmente indissociável com o ubuntu”240.

Nesta perspectiva, é o desenvolvimento sistemático dos conceitos ontológicos e epistemológicos na filosofia ubuntu que determina a compreensão da expressão “Eu sou porque tu és”241. É neste contexto que José Paulino Castiano transforma os costumes morais em sistema de conhecimento que levanta a pretensão de explicar o autêntico sentido da filosofia ubuntu africana: eu sou porque nós somos.

A nossa existência como indivíduos, como José Castiano a entendeu, consiste em fundamentar esta existência no chão do espírito consciente dos “outros membros da comunidade”, o que

237 Cfr. Ngoenha NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014. A questão do passado e do futuro, sua relação tendo que conta que, para ele, a nossa missão é o futuro.

238 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 105.

239 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 157.

240 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 157-158.

241CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 158.

significa dizer, segundo Castiano, que “a nossa humanidade só é possível manifestar-se ao reconhecermos a humanidade dos outros. Portanto, um comportamento humano é a base das relações entre os homens”242. É grande o mérito de Magobe Ramose, segundo Castiano, ter percebido que “o ubuntu é a base ou fundamento da filosofia africana”243. A nova cientificidade que caracteriza a filosofia ubuntu consiste em que ela, tomando a Ontologia, a Epistemologia e a Ética ubuntu-africana como ponto de partida, desenvolve o universo dos “aspetos de uma e da mesma realidade”244.