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3 O NADA COMO O UTÓPICO POSITIVO EM NGOENHA E BLOCH

3.1 NGOENHA E A HISTÓRIA LINEAR OU CIRCULAR

Essa possibilidade de passagem de um presente escandaloso para um futuro melhor ou de um mundo escandaloso a um mundo diferente mostrará que, conforme Ngoenha, “a História é por sua vez circular e linear” 198. sobre a missão de nova geração de jovens moçambicanos, entendia como missão-futuro podemos ainda tecer algumas considerações. Em primeiro lugar

“Na concepção tradicional africana, a História não se move para frente, ou seja, para um futuro de progresso ou para o «fim do mundo como tal».

Soares explica a posição de Éric Weil dizendo que “a História é circular no sentido de que as mesmas atitudes e categorias são repetidas em todo o discurso, isto é, como condição de compreensão das novas categorias199”. Por exemplo, em Ngoenha: em 1974, em Moçambique independente “Quantas vezes ouvimos repetir que o futuro dependia de nós? A Frelimo convidava-nos a participar, e de uma maneira que se queria ativa, na construção do futuro”200.

Segundo Soares 1998, p. 58 “Essa certeza nos permite compreender nosso passado. Se tudo fosse novo, qual seria o ponto de ligação com o passado?201 ”. Esta passagem pode-se aproximar à obra Filosofia Africana (2014) evocando o passado, que é preciso pensar a partir do ponto da ligação claro-confuso entre o Estado Novo em Portugal (1928) e o Estado Novo em Moçambique (1974). Esses pontos são mais de continuidade do que ruptura. Quanto a questão de saber se somos ou não fautores da nossa própria história em particular, ele responde em particular, na Filosofia africana das independências às liberdades (2014), invocando as semelhanças daqueles Estados. Em ambos Estados, tratou-se muito do futuro de Moçambique. No tempo colonial, a participação dos moçambicanos na realização dos grandes projetos para Moçambique era passiva. Contrariamente ao Estado Colonial, essa participação torna-se ativa na era da independência de Moçambique (1974). Ngoenha questiona o que estava em jogo nesses Estados e responde evocando o papel do sujeito na história: “não nos foi perguntado como víamos o futuro”202. As semelhanças que unem os Estado colonial português implantado em Moçambique e o Estado independente, fruto da revolução moçambicana liderada pela

198. WEIL, Éric. Logique de la philosophie. 2ª éd. revue. Paris: Vrim, 1967, p. 80. Para mais informações cfr. SOARES, Marly Carvalho. O filósofo e o político segundo Éric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 58. 199 SOARES, Marly Carvalho. O filósofo e o político segundo Éric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 58. 200 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 9.

201SOARES, Marly Carvalho. O filósofo e o político segundo Éric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 58. 202 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 8-9.

Frelimo, podem ter lugar no país, na medida em que, em nenhum desses Estados, o homem de Moçambique foi chamado a escolher o tipo de futuro que queria para si e para seus filhos.

Para Ngoenha, o intervalo entre Estado Novo e independência nacional (1928 a 1993) é dominado pela presença dos militares que estavam em Moçambique para obrigar os moçambicanos a realizar a vontade dos outros e a realizar futuros planificados e inventados por colonizadores.

José Paulino Castiano é um filósofo moçambicano e autor de muitos livros para a compreensão do homem de Moçambique como também o pensamento africano no período contemporâneo. Isso não significa que Castiano seja conhecido em quase todos os aspetos de maneira aprofundada. Recordam-se, por exemplo, a crítica que Castiano dirige aos encontros entre africanos e europeus. Trata-se de questionamento acerca do crescimento de um sistema de relações ainda mais inumano. Castiano é considerado uma das figuras marcantes do pensamento africano e percursor da Escola moçambicana (de filosofia). Por exemplo, na obra, Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação ele expõe suas ideias políticas principais:

Em suma, os encontros pré-coloniais do Eu-africano com o Outro-asiático são de carácter material, tendo sido baseados no respeito mútuo dos sujeitos. Em contrapartida, o encontro entre o Eu-africano e o Outro-europeu traduziu-se em dominação do corpo e da alma. Não existe espaço para o reconhecimento da dignidade do Eu-africano. Por isso que o Eu-africano começa a pensar em mudar os meios para reconquistar o seu reconhecimento, a sua dignidade, enfim a sua liberdade como sujeito da sua história e pensamento203.

Durante o período anterior a esses encontros, sob a capa de encontro mercantil dos povos africanos e asiáticos, podia-se ter esperança de avançar para o reconhecimento do homem africano como sujeito de sua própria história. Agora, o encontro africano-europeu tornou-se encontro de duas categorias: mundializador e mundializados, quer dizer, de dominação física e psicológica de europeus para africanos.

No período da independência, houve um alívio para o homem de Moçambique: “Lamento, saúde, rancor ou alívio. O alívio, em mim, prevalece faz tempo. Aos vinte anos, tinha a sensação de que o pior já tinha passado. Estava enganado. Nem por isso deixo de empurrar a minha infância para a frente, como todo o mundo. O alívio pesa mais do que imaginamos”204.

203 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 200.

204COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana. Desenhos SylvieThybert. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martinho Fontes, 2007, p. 32.

Para o homem, esse alívio é a própria independência do país. A liberdade do homem moçambicano, à época, era de lamentar pela sua limitação. Com a independência, o homem moçambicano pensava ter tido um alívio total e completo da humilhação, do sofrimento: “está enganado”. Nem por isso, os moçambicanos deixam de sonhar para frente, pois a independência pesa mais do que o colonialismo português.

É notadamente o caso do Moçambique atual de 1994 até a data hoje (2016) – tal como no Estado colonial português em Moçambique e no tempo da independência da nova república de Moçambique, está em jogo o lugar reservado ao povo moçambicano na escolha daquilo que deve ser o tipo de futuro, tal como desenham as suas esperanças. Isto significa que Ngoenha admite, uma vez mais, a presença dos militares, em particular, em todas as eleições Presidenciais e Legislativas do país para obrigar os eleitores a votarem futuros candidatos daqueles partidos armados, criados por outros em benefícios dos que têm o privilégio de saber qual é o melhor partido para todos. Em sua obra Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? (2015). Ngoenha mostra que a cultura da violência militar institucionalizou o anormal em Moçambique independente. Nota-se que na obra, Ngoenha utiliza o vocabulário de democracia militarizada ou aparatocraciano, sentido duma parte de congruência, que ele dá ao lugar ocupado pelo povo moçambicano desde a independência de Moçambique (1974) até 1994, data das primeiras eleições gerais no país para escolher o seu próprio futuro.

“A liberdade é menos um ponto de partida que um processo, menos um livre-arbítrio que uma liberação. Ninguém é uma escolha absoluta de si, mas ninguém tampouco pode eximir- se de escolher. Ninguém nasce livre, torna-se livre”205. Este termo quer designar a autonomia do homem colonizado em relação ao colonizador. Conforme adverte Elvilázio Borges Teixeira, “O homem confia a si mesmo e a sua subjetividade, abandonando às leis e às forças intrínsecas da histórica”206. É o modelo antropológico reinante de Ngoenha, para o qual o problema política é resolvido na antropologia: “ Se não quisermos reencontrar no moçambicano de amanhã o escravo, o colonizado, o bárbaro, o homem sem cultura e sem história, temos de partir dos homens que somos e procurar os meios da nossa democracia e do nosso progresso”207. A liberdade, como sabemos, é o anseio do homem africano.

205 COMTE-SPONVILLE, André. A vida humana. Desenhos SylvieThybert. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martinho Fontes, 2007, p. 26.

206 TEIXEIRA, Elvilázio Borges. Aventura pós-moderna e sua sombra. São Paulo: Paulus, 2005 p. 43. 207 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 99.

Assim, por muitos, José Paulino Castiano não é esquecido por sua definição acerca do intelectual africano. E um dos pontos aos quais se faz referência, aqui, é ao modo como Castiano concebe a relação entre “eventos-eixo”:

Nos três eventos-eixo: a escravidão, o colonialismo e a globalização o intelectual africano — mesmo que, nestas duas últimas entre como membro da elite — participa como uma espécie de porta-voz da condição dos africanos na história da humanidade como escravos, colonizados e globalizados. É, assim, natural que a preocupação fundamental e o eixo do que-fazer filosófico (oral e escrito) seja a fundamentação da liberdade, ou seja, o «paradigma libertário», como sustenta Ngoenha (2005)208.

Ngoenha é um pensador radical, a sua filosofia tem a coragem de escolher um modelo cultural africano que se propõe a valorizar a convergência dos princípios que constituem “a liberdade e a decisão de um querer viver juntos”209, na unidade, na paz e na democracia.

Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992) e Filosofia Africana – das independências às liberdades (1993) constituem, de certo modo, um ponto de partida. Radicalizada a questão da missão do homem na escolha do futuro melhor, democrático, e valorizada a contribuição da filosofia na afirmação e no progresso da sociedade, a coerência de seu discurso entre essas duas obras torna-se insuperável e presente na Terceira questão – Que leitura se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? (2015). Ngoenha escolheu ser filósofo, principalmente um “porta-voz do senso comum”210 e ocupa assim uma função elevada na sociedade.

Ser porta-voz significa ser homem que formula o que todo o mundo pensa: “Impõe-se, portanto, que a filosofia africana, neste momento de mudança, se institua porta-voz de um novo projeto: pacífico, construtivo e colaborativo”211. E ele ocupa devidamente o seu lugar e desempenha com cuidado a sua função elevada na sociedade para beneficiar toda a massa popular.

208CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 39.

209 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 88.

210SOARES, Marly Carvalho. O filósofo e o político segundo Éric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 19. 211 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 169. Na Terceira Questão – Que leituras se pode fazer das recentes Eleições Presidenciais e Legislativas? Maputo: UDM, 2005, p. 13 “Esta obra, então, fala do Moçambique atual. Mas também apresenta um estudo sobre as condições que garantem a convivência pacífica entre os diferentes grupos sociais, políticos, étnicos etc”.