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5 UBUNTU: “QUEM SOMOS”?

5.1 PARA ONDE QUEREMOS IR?

Por uma dimensão da consciência histórica moçambicana e Filosofia Africana – das independências às liberdades têm como objeto de estudo o conhecimento consciente e crítico da realidade histórica de Moçambique. Nas palavras de Ngoenha:

“Como escreve Hazen Ozbekhann, o problema não é onde vamos, mas onde queremos ir? Devemos distinguir entre o que será e o que queremos que seja. Importa fazer, em Moçambique, uma previsão normativa, isto é, centrada sobre o que queremos que seja o nosso futuro”378. Nesse trecho, para Ngoenha, como para Bloch, a expectativa, a esperança e a intenção são viradas para a possibilidade que ainda não veio a ser. Trata-se de uma característica fundamental da consciência humana.

Aqui Ngoenha, parece-nos que deixa de lado o seu habitual problema do futuro, do amanhã (hoje) como centro de interesse. Ele pausa o debate sobre o futuro, o amanhã definido como hoje. Ele já começa a sair da situação trágica do momento e o mundo presente em que se encontra a viver. Neste sentido, ele prioriza o estudo da relação entre o futuro e a vontade (o querer). É evidente que, filosoficamente, trata-se do ainda-não do mudo. Essa tomada de consciência do devir modifica completamente a compreensão do foco que ele tinha do tempo (presente). Isto tê-lo-á levado a interrogar-se sobre o sentido e o significado da sua vontade temporal como sujeito e não objeto da história.

Em outras palavras, a expressão “para onde vamos?” implicava participar passivamente na história e na realização de projetos inventados por outros. Pelo contrário, a expressão com “onde queremos ir?”. Ngoenha reivindica o direito de programar, querer e escolher o seu próprio destino, futuro. Dessa maneira, o conceito de princípio utópico positivo em Bloch torna-se o tema central nas obras de Ngoenha. Isto significa que a utopia passou a ser o tema central nas abordagens de consciência histórica e filosófica do futuro de Moçambique, porque nela apresentam-se os conteúdos dos afetos expectantes (o desespero, a esperança, a confiança, o desejo) voltados para a dignidade humana e a consciência humana.

Em outras palavras, o esforço da utopia e da filosofia de “tornar possível a vida do homem, de projetar o futuro e enfrentá-lo”379 – e isto implica evidentemente um certo desafio,

378 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 126.

379NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana - das independências as liberdades. Porto Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 11.

como Ngoenha sublinha num parágrafo de Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica: “O que queremos verdadeiramente? O que estamos radicalmente prontos a recusar? Em nome de finalidades pessoais e comunitárias? O futuro tem aqui a sua importância, segundo as nossas decisões quanto ao objetivo das nossas vidas”380.

Com essas três questões, o filosofo moçambicano quer evitar que a sua utopia passe de sonho para pesadelo. Aqui, reconhecemos imediatamente a importância da fantasia política que, em Ngoenha, designa a possibilidade de inventar a imagem do mundo novo e vivê-la hoje. Bloch também põe o acento ao fato de “o tema dos sonhos diurnos é sempre animado pela vontade de uma vida melhor”381, quer dizer, uma vontade que fica consciente de sua intensidade.

A utopia, em Ngoenha, representa um repensar crítico da cidadania étnica moçambicana no campo da moral e da política, pois, a razão desse desejo é que o conceito de etnicidade “junta cidadão de diferentes origens, mas com objetivos comuns”382 em suas vidas. Ela comporta uma crítica da ordem estabelecida, denuncia, sobretudo, o individualismo como marca da democracia moçambicana e propõe uma refundação das instituições democrática no país. Em matéria de direito, ele defende a preservação de relações sociais sãs em busca da justiça (enquanto busca do bem-comum).

“Todo querer é um querer-fazer. Aquele que quer já estabeleceu uma preferência: sabe o que prefere, a escolha ficou para trás. O querer é necessariamente um avançar ativo rumo a esse alvo, dirige-se para fora, tende-se medir unicamente com coisas realmente dadas”383. O que o povo moçambicano quer é uma democracia participativa, uma paz efetiva, uma justiça justa. Com isso, a preferência já foi estabelecida. Isto significa que o povo sabe o que prefere. Com isso, a guerra, a violência e a democracia popular ficaram para trás, a favor do interesse pelo conjunto, pela marcha coletiva da humanidade em direção ao mundo de um Moçambique novo, diferente do presente.

Nesse sentido, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica (1992), publicou uma resposta à questão: quem somos nós? Essa resposta foi de Heidegger. Com essa

380 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 127.

381 MUNSTER, Arno. Espérance, Rêve, Utopie dans la pensé d’Ernest Bloch, L’Harmattan, Paris, 2015, p. 39. 382 NGOENHA, Severino Elias. Terceira Questão – que leituras se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas? UDM, Maputo, Moçambique, 2015, p.109.

383BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Tradução. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 51.

obra, Ngoenha introduz, na história do pensamento moçambicano, uma questão a qual a filosofia moçambicana não tinha sido capaz de responder, mas que era inevitável. A filosofia de Kant e Bloch confrontaram-se com essa questão do Iluminismo que determinou uma parte do que somos, o que pensamos e qual é a nossa tarefa hoje. Ngoenha imaginando que os escândalos da guerra e a fome continuam até hoje, questiona os seus compatriotas: quem somos? Somos nós a fazer a história ou somos feitos objeto dos eventos temporais? A essa mesma questão, ele mesmo veio a responder na mesma obra:

A única possibilidade de podermos participar na edificação desse mundo novo, de que tanto se fala, é a possibilidade de termos forças e energias diferentes, que não sejam opostas às forças dos outros para poderem integrar-se, mas que sejam as mesmas, para poderem contribuir. Só assim podemos dizer, com Heidegger, somos ‘Seinmit de anderen’ – ser com os outros – na mesma dignidade do ser384.

Na nova ordem do tempo do fim do mono-partidarismo para o multipartidarismo, do fim da guerra civil para a paz que estavam submetidos os moçambicanos, o homem de Moçambique precisava consciencializar-se dessa mudança que se operava no seu estatuto histórico: deixar de ser objeto materializador da vontade dos outros para ser sujeito livre e fautor do seu futuro. Essa é uma condição indispensável para o homem moçambicano tentar participar na construção de um Moçambique novo, diferente do atual, de conflito (hoje em curso), de fome e de analfabetismo.

Temos que ter coragem de debruçar-nos sobre quem somos na esperança de descobrir os interesses individuais e coletivos necessários para a realização de um sentido e futuro comum. Quanto à questão: quem somos? Ngoenha foi fascinado pela resposta de Heidegger: “somos ser com os outros”. Isso mostra muito bem como, afinal de contas, para Ngoenha, Alteridade é muito importante. O que lhe interessa é principalmente a relação, quer dizer, o ser outro, o colocar-se ou constituir-se como outro é indispensável na construção de um mundo novo, melhor.

Através de uma análise municiosa dessa possibilidade de integrar o outro na edificação do mundo novo, emerge a questão da diferença, numa amálgama de forças e energias opostas. Como em Heidegger, também em Ngoenha, já se percebe uma relação, uma força de unidade.

384 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 23.

Nessa perspectiva, a diferença implica que as forças podem diferir só enquanto têm em comum a coisa em que diferem.

Em sentido geral e fundamental, o fulcro do direito em Ngoenha é a coexistência humana. Neste sentido, o jurista moçambicano é chamado a colaborar com a iniciativa de Gurvich: “O direito começa onde se inaugura a vida em sociedade: ‘ubi societas, ibi jus’”. Isto significa que o jurista deve empenhar-se jurídica e filosoficamente no esforço de tornar possível um mundo novo, melhor, onde reina a coexistência pacífica e harmoniosa entre os homens.

Como revela Ngoenha, na história do pensamento filosófico e jurídico moçambicano, o que está em causa não é conhecer os textos constitucionais ou adaptar a constituição à nova forma de modelos democráticos de Estado de direito, pelo contrário, o filósofo moçambicano sublinha que “Nós somos chamados a conhecer os textos constitucionais profundamente, mas mais ainda a nos conhecermos a nós mesmos (...). Só a partir de uma reflexão muito séria e coletiva do que de facto somos e queremos, é que podemos começar a pensar o direito”385.

Como demonstrou Ngoenha, a incapacidade de funcionamento adequado de um modelo constitucionalmente europeu adaptado à realidade africana para construir o mundo novo ou futuro melhor e, às vezes, até mesmo de partir de relações sociais observadas no meio cultural determinado. Centrado nesse defeito do direito, Ngoenha reconhece a importância dos modelos teóricos dos textos constitucionais europeus, pois permitem dar conta de todos os fatos observados e apresentam as propriedades formais comparadas e adaptadas a cada elemento da realidade africana. Mas ele não descarta a possibilidade de partir das questões filosóficas: primeiro, a do ser, e, por último, o problema do querer (entendido como afeto expectante positivo). Essas questões, portanto, são a melhor maneira de pensar o direito em Moçambique.

Em 1992, o seu livro Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica contém o Capítulo III – Política e Cultura, que se tornou o texto base da sua antropologia política. No desenvolvimento demonstrou que, em Moçambique, existia uma verdadeira filosofia do ser humano. Daí, resulta que o Estado moçambicano, pós-colonial, não deve limitar-se a copiar ou adaptar os modelos constitucionais europeus. Isto significa que 40 anos depois da independência, o Estado não pode apenas reatar uma continuidade histórica colonial, quer dizer, a realizar projetos inventados por povos de outros Estados em benefício deles.

385 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 96.

Daqui resulta que a tomada de consciência de uma identidade própria consiste fundamentalmente em responder à questão de Kant, mais tarde, de Bloch: Quem somos? À medida que o tempo passa, o filósofo moçambicano admite que a tradição não é fechada, mas aberta à modernidade. O importante é evidenciar que existe, em Moçambique, antes do colonialismo português, uma cultura política Moçambicana que resistiu ao colonialismo e ao conflito entre a tradição e a modernidade.

O problema é saber por quê? Essas interpretações de Ngoenha tinham um alcance maior. Significavam implicitamente que, sob ponto de vista cultural e político, iam responder à questão do ser humano em Bloch: “nós somos fundamentalmente um Estado rural”386. Com isso, a realização do projeto de futuro melhor, sem guerra, capaz de estabelecer a unidade nacional e acordo de paz duradouro depende dos homens que nós somos.

Podemos, igualmente, encontrar esta como um ponto de transição em direção a uma concepção de homem. É o que descreve Ngoenha no Capítulo IV – Governar-se ou ser governado? A resposta que Ngoenha tem hoje sobre “quem somos?” ou, mais especificamente, “o homem quem ele é?” é a mais complexa que se opõe a várias concepções de alguns filósofos da civilização europeia.

Não somos uma sociedade de filósofos ou de cidadão virtuosos prospectados por Voltaire, nem os animais ferozes de Hobbes. Os nossos governantes não são os filósofos de Platão, mas nós – governados – não somos as ovelhas mansas da Bíblia. Não somos o homem novo de Marx, mas também não somos o homem sem escrúpulos de Maquiavel. Somos simplesmente homens, com tudo o que ele tem de divino e de diabólico387.

A maneira como Ngoenha responde à questão de quem somos é completamente diferente e complexa, pois ele começa por responder na primeira pessoa do plural, mas de forma negativa. O seu conceito de homem envolve todos aspectos positivos e negativos, ou seja, inclui o ser sagrado e profano dentro da figura humana. Isso significa que o homem, para Ngoenha, é bom e mau concomitantemente388. Nessa definição, vislumbra-se uma imagem de homem simples, mas complexa (contradição).

386 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 80.

387 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p.97.

388 CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação. Maputo: Sociedade Editorial Ndjira, 2010, p. 17. p. 48 A partir dessa observação, nos Referenciais da Filosofia Africana, Castiano passa a discutir a questão Hountondjiana sobre “quão africanos são os ditos «estudos africanos”? Isso

Assim, as concepções de Hobbes, da Bíblia, mesmo as definições de Marx e Maquiavel, são simultaneamente congregadas no único homem. Ngoenha começa por responder à questão de uma maneira inteiramente negativa, um não. Ele responde à pergunta kantiana e blochiana dizendo: em primeiro lugar, o que o homem de Moçambique não é, também o que os governantes não são; depois, termina dizendo o que o homem é e tudo o que ele compõe.

É necessário observar que essa definição de homem é apresentada por Ngoenha de forma muito enfática: “ Se não quisermos reencontrar no moçambicano de amanhã o escravo, o colonizado, o bárbaro, o homem sem cultura e sem história, temos de partir dos homens que somos e procurar os meios da nossa democracia e do nosso progresso”389.

As teorias do querer e do ser são uma peça central no pensamento filosófico de Severino Ngoenha, é nelas que se joga a dupla operação fundamental desse pensamento: a consciência da passagem das independências às liberdades para uma humanidade comum e, correlativamente, o estabelecimento do federalismo como condição para a reconstrução, não de uma oligarquia ou aristocracia, mas de uma democracia participativa, ativa e cívica como condição para a paz efetiva e o desenvolvimento de Moçambique.

A questão do tipo de sociedade que se pretende que os moçambicanos tenham amanhã, em Ngoenha, engaja a teoria socrática do “conhece-te a ti mesmo” e da teoria da alteridade. Vejamos como, Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica, opera a extensão do princípio da missão-futuro em que se dá uma formação da consciência: “O nosso projeto de sociedade deve fundar-se sobre o conhecimento sério de nós mesmos, das nossas diferenças e das nossas especificidades”390 Ele engaja a teoria do ser e do conhecimento. Daí que podemos constatar que existe uma preocupação pedagógica em que toda a questão gira em torno do saber, conhecimento que forma a invenção de um mundo futuro, melhor, pois só a educação permite integrar todos os domínios da sociedade.

parece indicar que a questão inicial acerca da matéria é uma questão acerca do genetivo objetivo das ciências sociais e humanas (da antropologia). A questão é: há ou não uma antropologia moçambicana? Castiano e Hountondj são de opinião de que a antropologia africana ou antropologia de África significa um discurso antropológico sobre África e não uma tradição antropológica desenvolvida por africanos.

389 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 99.

390 NGOENHA, Severino Elias. Por uma dimensão moçambicana da consciência histórica. Porto: Edições Salesianas, 1992, p. 126.